A intolerância religiosa no Brasil relaciona-se ao racismo
No final de setembro, ao discursar na ONU, Jair Bolsonaro fez “um apelo pela liberdade religiosa” e pediu apoio para combater o que chamou de “cristofobia”. Pronto! Foi dada a largada para o novo jargão da disputa social em torno de tema de fundo moral. A locução parte do pressuposto segundo o qual haveria um preconceito exacerbado contra cristãos no Brasil.
Não se preocupou o presidente em evidenciar, por qualquer meio, de onde extraíra sua conclusão, porque sua intenção está dentro da estratégia de comunicação com sua base dita “cristã”, de estimular uma resposta e militância ativa na posição de vítimas.
Bolsonaro faz um discurso com direcionamento, mascarado como verdade objetiva, em evidente falsa retórica, de que estaria defendendo o princípio constitucional da liberdade, quando sua fala não passa de uma postura midiática em busca de ação ativa de atores sociais específicos e objetivos definidos.
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Os relatos da História da humanidade mostram que a intolerância religiosa já atingiu todas as crenças, a depender do lugar e época, tendo sido motivo de inúmeras guerras e conflitos ao longo do tempo.
No Brasil, país em que mais de 80% da população é cristã, segundo o censo do IBGE, existe intolerância religiosa, não restam dúvidas. Mas, certamente não são os cristãos as vítimas em potencial, bem ao contrário. Os templos se multiplicam no país. Igrejas possuem benefícios como imunidade tributária, programas de rádio e televisão, quando não são pastores os proprietários. Religiões, sobretudo as evangélicas, possuem influência cada vez mais decisiva na política, inclusive com bancadas nos parlamentos.
A intolerância religiosa no Brasil relaciona-se ao racismo, atingindo em larga escala os adeptos das religiões de matriz africana. São agressões que vão de verbais a outras de caráter violento e físico, incluindo incêndios nos terreiros e destruição de símbolos. Dados oficiais, quando divulgados pelos órgãos públicos federais, eram alarmantes.
O Brasil, por definição jurídico-constitucional é um país laico. O artigo 5º, VI, da nossa Constituição atual prevê que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. O conceito de laicidade veio justamente para vetar a interferência da religião na política e para pregar o igual respeito a todos os credos.
Na verdade, quando Bolsonaro fala em “cristofobia” expressa o exato oposto da liberdade religiosa. Não há qualquer intenção de tratar da aceitação de todos os credos, mas sim à pregação, mesmo que camuflada, de que uma religião é legítima e deve se sobrepor à outras, postura que está relacionada à ideia de fundamentalismo religioso. Faz a pregação segundo a qual seria o cristianismo a única religião legítima, que deveria se sobrepor às demais.
É nessa inversão de assentimentos que Bolsonaro cria um debate, uma polêmica pública, mesmo que a pauta não corresponda a nenhum critério de realidade. Mas não é apenas isso. Se fosse estaríamos repetidamente diante do fato do líder e seus seguidores. A questão é que as falas de Bolsonaro possuem, em regra, uma conexão com o uso do aparelho de Estado e o desenvolvimento da sua política de guerra, com inimigos públicos a destruir.
Não por acaso, o Advogado-Geral da União (AGU), José Levi Melo do Amaral, apresentou, no dia 14 de outubro último, embargos de declaração à decisão do Supremo Tribunal Federal que criminalizou a homofobia e a transfobia, equiparando-as ao crime de racismo. Argumenta o AGU que o STF (Supremo Tribunal Federal) deve disciplinar excludentes de ilicitude sobre LGBTfobia, ampliando a garantia de liberdade religiosa em falas que não se incluam em discurso de ódio sobre pessoas LGBTQ+. Pondera, ainda, a necessidade de que, no exercício pleno de liberdade religiosa, o STF deve permitir a expulsão de pessoas cujo comportamento e orientação sexual não "estejam de acordo com a filosofia de vida das religiões".
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Na linha reta com o chefe, o Advogado-Geral da União cria, na construção de uma peça jurídica, uma inversão que intenta apresentar o “direito” ao discurso de ódio e à prática da intolerância contra determinado grupo social como “liberdade de expressão”. Um pedido de autorização legal para a prática da linguagem - seja escrita ou verbal - ofensiva, raivosa, abusiva e discriminatória.
Não difere das falas do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, que, entre inúmeras aberrações de negação do racismo e defesa da escravidão, entende que há um vitimismo do movimento negro, que possuía, segundo afirma, “tratamento privilegiado” nas políticas públicas nos governos anteriores. A fala do racismo reverso também possui uma aparência de manifestação racional, utilizando eufemismos.
“Cristofobia” é a busca de um estereótipo negativo para contrapor o fundamentalismo religioso, esse sim praticado de forma evidente para demonizar pessoas cujos pensamentos, comportamentos e ações se diferenciam daqueles praticados por adeptos de determinadas Igrejas. Busca o bolsonarismo um novo marketing para a guerra que trava, não contra aqueles que usa de bodes expiatórios, acusando de “comunistas” e alcunhas afins, mas contra sua real inimiga: a democracia.
Edição: Rogério Jordão