O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou, no dia 30 de setembro, o decreto 10.502 que institui a Política Nacional de Educação Especial, apresentada como “equitativa” e “inclusiva”. Desde então, no entanto, movimentos de Pessoas com Deficiência (PCD) e seus representantes defendem que a medida, além de ser inconstitucional, segrega os estudantes.
Isso porque, na prática, a nova legislação desobriga as escolas regulares a matricularem os estudantes com deficiência. Esse modelo de escola é aquele para o qual todos os alunos são direcionados, sejam PCD ou não. Com o decreto do presidente, os estudantes com deficiência têm a opção das escolas especiais e bilíngues, que ensinam libras.
“É muito provável, para não dizer que é certo, que as pessoas com deficiência considerada grave serão encaminhadas para as instituições especializadas, como se isso fosse uma escolha e não justamente a falta dela”, afirma Mariana Rosa, educadora, ativista e mãe da Alice, que é PCD.
O que o governo apresenta como “opção” e “avanço”, Rosa vê como segregação. “Esse é um discurso bastante sedutor mas igualmente perigoso, porque educação não é uma questão de escolha, é uma questão de direito. Não são escolas, são instituições separadas”, afirmou Rosa ao Brasil de Fato.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Quais são os pontos críticos desse decreto que tornam a política segregadora e não inclusiva como promete ser?
Mariana Rosa: Primeiro, é um decreto inconstitucional. Nós temos a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, que foi celebrada na Organização das Nações Unidas (ONU), com a participação de pessoas com deficiência e assinada por 160 países. No Brasil, essa convenção, que existe desde 2006, tem força de lei, é uma emenda constitucional. Nessa emenda, está garantido que nenhuma pessoa pode ser discriminada em razão de sua deficiência e que deve ser garantido o acesso aos estudantes com deficiência ao sistema educacional comum. O decreto, então, fere a legislação e, portanto, é inconstitucional.
O outro problema é que foi elaborado sem a ampla participação da sociedade, sobretudo, dos movimentos sociais das pessoas com deficiência e seus representantes. Nos pegou de surpresa.
Essas instituições segregadas que se chamam escolas especiais, não são escolas
Uma outra questão é que o decreto traz a ideia de que as famílias poderão escolher se querem matricular os filhos nas escolas regulares, especiais ou bilíngues, que também ensinam libras. Esse é um discurso bastante sedutor mas igualmente perigoso, porque educação não é uma questão de escolha, é uma questão de direito.
E essas instituições segregadas que se chamam escolas especiais não são escolas, porque não levam adiante o currículo tal qual a gente conhece, como patrimônio da humanidade. São instituições separadas que vão passar a receber recursos das pastas da Educação, da Saúde e da assistência social.
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Então, um investimento que já era pequeno na escola comum vai ficar ainda menor porque os recursos serão deslocados para essas instituições. Até hoje a gente tinha a garantia da lei que podia acessar a escola regular, mas isso já era difícil, imagina agora nessa situação. É muito provável, para não dizer que é certo, que as pessoas com deficiência considerada grave serão encaminhadas para as instituições especializadas, como se isso fosse uma escolha e não justamente a falta dela.
Isso desobriga as escolas regulares a matricularem esses estudantes PCD, certo?
Sim, porque agora vai haver essa possibilidade de encaminhar para as instituições especializadas como se elas fossem cumprir o papel da escola, o que não é verdade.
Esse decreto que se diz a “nova política de educação especial” não traz nada de novo. Esse é o modelo que existia no Brasil até mais de 30 anos atrás [Em 1973, o Ministério da Educação criou o Centro Nacional de Educação Especial, que foi responsável pela gerência da educação especial no Brasil]. Nós estamos retrocedendo 30 anos em relação aos direitos das pessoas com deficiência.
A 'nova política de educação especial' não traz nada de novo, estamos retrocedendo 30 anos
É claro que a gente tem muitas lacunas na educação inclusiva. É claro que a gente ainda tem muitas dificuldades para que as pessoas com deficiência tenham a oportunidade de aprender e estudar em pé de igualdade de condições com as demais pessoas. Mas isso não é um problema dessas pessoas que justifica elas serem retiradas das escolas. Pelo contrário, elas precisam estar dentro da escola para acusar as falhas desse sistema e para que esse sistema possa melhorar, receber investimentos, tecnologias assistivas, em acessibilidade, para que esse ambiente possa ser para todas as pessoas, como está preconizado na lei.
Quais são as consequências dessa segregação? E porque é importante incluir estudantes PCD em escolas regulares para todos os alunos?
A principal consequência é o retrocesso social, considerar que esse modelo já existiu, já cumpriu seu papel, em uma época em que a sociedade tinha outros fundamentos, outros princípios, outro modo de organizar a legislação. As pessoas com deficiência eram vistas como pessoas incapazes, como falhas, como problemas e era tido como razoável recolhê-las a instituições segregadas ou até em manicômios, hospitais psiquiátricos.
Essas instituições cumpriram um papel importante. Mas recentemente, com o avanço da legislação e com o movimento social das pessoas com deficiência, isso foi caindo por terra. A gente foi entendendo que, quando a gente segrega um grupo, a gente está na verdade discriminando, elegendo quais são as pessoas que podem acessar os espaços comuns e merecem estar no convívio e quais são aquelas que não merecem, não podem.
Quando a gente não pode conviver com as diferenças, o nosso repertório de mundo se apequena
Isso é uma hierarquização da vida. É um princípio não só ilegal, é também imoral. Não pode ser um horizonte ético da nossa humanidade, porque todos perdemos com isso. Quando a gente não pode conviver com as diferenças, o nosso repertório de mundo se empobrece, se apequena.
Também não estamos dizendo que essas instituições especializadas tenham de ser fechadas abruptamente, o que é muito diferente de voltar a investir nelas, a investir como modelo. É necessário uma transição, que era o que vinha acontecendo, tanto que a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de São Paulo fez uma migração, se tornou o Instituto João Clemente, que funciona não em substituição à escola, mas como complementaridade, como um lugar em que os alunos podem ter o atendimento educacional especializado no contraturno da escola.
São modelos e propostas que estão em transição e que poderiam continuar acontecendo caso houvesse uma vontade política e um compromisso do governo federal em de fato incluir as pessoas e garantir dignidade e direito para todos, o que não parece ser o caso.
Sem contar que PCD inclui um universo de diferenças.
É muito difícil que as escolas primeiro se preparem para depois receberem esses estudantes, porque cada estudante é único, e isso não se dá só com os estudantes com deficiência. É preciso que esses estudantes estejam dentro da escola para que essas escolas possam se reorganizar, reformular o currículo, melhorar o repertório. A escola que acolhe a diferença, e não estou me referindo só às pessoas com deficiência, mas de uma maneira mais ampliada, é uma escola boa para todo mundo.
A escola que aí está hoje com esse modelo de educação que parece uma linha fabril, uma linha produtiva, um modelo bancário de transferência de conhecimento, com jeito único de ensinar não serve não só para quem tem deficiência, não serve para ninguém. Vários alunos estão sendo expulsos das escolas no sentido de que é difícil permanecer em uma escola que cumpre um modelo tão excludente, tão rígido, tão focado nessa ideia de produtividade.
A inclusão é um modo da gente rever o modelo educacional, melhorar a escola, fazer de fato que seja para todas as pessoas e com qualidade.
A senhora falou um pouco sobre isso, mas, retomando, quais são os problemas das escolas? O que deveria ser feito para melhorar e atingir o melhor modelo de educação?
Pensando na educação especial, na perspectiva da educação inclusiva, que é essa que aposta na escola regular, é importante garantir o atendimento educacional especializado a todas as escolas. O que é o atendimento educacional especializado? É aquele profissional focado em identificar as barreiras de aprendizagem, que não estão no indivíduo, mas no ambiente, para organizar os recursos de modo que possam garantir a todos os alunos o aprendizado.
Uma escola boa para para os estudantes com deficiência é boa para todo mundo
Esse atendimento hoje acontece em menos de 30% das escolas. Menos de 40% das escolas brasileiras têm acessibilidade. O currículo é inflexível, rígido. O método de avaliação não consegue abranger as diferenças todas e o jeito com que cada uma aprende. Tudo isso precisa ser revisitado e revisto para que a gente tenha de fato uma escola que é para todas as pessoas.
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Se esse recurso, que supostamente vai ser deslocado com esse decreto, pudesse ficar na escola regular, certamente as escolas estariam em melhor condições para receber não só os estudantes com deficiência, mas todos. Uma escola que é boa para os estudantes com deficiência é uma escola boa para todos os alunos
Edição: Rogério Jordão