O número de candidatas e candidatos transexuais bateu recorde em todo o Brasil em 2020, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), que mapeou 271 candidaturas no país, um aumento de 195% em relação a 2016. Em Porto Alegre, são sete candidatas à Câmara de Vereadores, concorrendo por cinco partidos, das quais uma integra uma candidatura coletiva com outros militantes da causa LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais).
As candidatas querem igualdade de direitos para a população trans, mas também lutam por diversas outras pautas. Ana Paula Sander (PSOL) é aliada da causa animal; Atena Beauvoir (PDT) é militante pela arte, cultura e educação; Giovanna Pytton (PCdoB) é microempreendedora e luta pelas pessoas em extrema pobreza; Natasha Ferreira (PSOL) quer a auditoria da dívida pública e a taxação das grandes fortunas; Fê Amaro (PCB) se preocupa com a existência de lugares públicos voltados para a cultura; Nikaya Vidor (PSTU) propõe conselhos populares como forma de se pensar e gerir a cidade.
A maioria delas concorre pela primeira vez, à exceção de Ana Paula, que já foi candidata pelo PSOL em 2016, e Natasha, que se candidatou a deputada em 2018 pelo PCdoB, antes de entrar no PSOL. Uma delas, Maria Regina Pouzer, compõe a bancada Aaivista (PCdoB), encabeçada pelo coordenador do grupo Desobedeça LGBT, Roberto Seitenfus, que já concorreu sozinho pelo PCdoB anteriormente. O Sul21 conversou com as seis candidatas à Câmara de Vereadores de Porto Alegre que concorrem de forma individual.
A ‘veterana’ em eleições e a mais velha dentre as candidatas é Ana Paula, que aos 46 anos está concluindo a primeira graduação. Após conseguir terminar o ensino médio em 2015 e fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2016, ela tornou-se aluna de Licenciatura em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e atualmente divide seu tempo entre a campanha, a conclusão do curso, que está no último semestre, e trabalhos voluntários. Todas as quartas-feiras, dedica-se ao projeto Solidariedade em Ação, da ONG Igualdade – RS, que se propõe a distribuir cestas básicas para pessoas transexuais e travestis em situação de vulnerabilidade social.
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Sua candidatura também é focada na defesa da causa animal, em especial direcionada para a importância da castração e acolhimento dos animais abandonados. Uma das propostas da candidata é o retorno de clínicas municipais que realizem a castração de animais de rua e daqueles cujos tutores não tenham condições de pagar. “A ideia é retomar isso ou fazer acordo entre as clínicas veterinárias dos bairros e a prefeitura para promover a castração a baixo custo. Seria tipo uma conveniada”, explica Ana Paula.
Já Natasha, sua colega do PSOL, também concorre pela segunda vez, mas sua trajetória política vem de anos. Começou a militar ainda adolescente no movimento estudantil em Novo Hamburgo, onde foi criada, e assim se aproximou do PT. Já foi presidente da União Nacional LGBT no Rio Grande do Sul, trabalhou no Centro de Referência Nacional de Direitos Humanos e rompeu com o PT por volta de 2016, fazendo uma passagem de um ano pelo PCdoB, quando se candidatou a deputada estadual. Quando pensava em desistir da política, uma atividade na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em 2018, a fez mudar de ideia.
Na ocasião, conversou com Luciana Genro, que a disse para não desistir da política e em seguida a contatou para falar do partido. “Ela me contou do PSOL desde a fundação, explicou alguns posicionamentos polêmicos que o partido já teve. No final de semana seguinte a Fernanda [Melchionna] me chamou para conversar. Esse acolhimento eu nunca tinha tido em nenhum partido. A partir dali, decidi me juntar ao PSOL”, conta Natasha, que ano passado se tornou a primeira pessoa trans nomeada em um gabinete na Assembleia Legislativa do Estado ao ingressar na assessoria de Luciana Genro.
Nikaya também começou cedo como militante: foi estudante do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o ‘Julinho’, onde conheceu algumas organizações e partidos de esquerda. De família conservadora, ela começou a participar de protestos contra o aumento da passagem em 2013, e após algumas tentativas no vestibular e já tendo afinidade com o Movimento Revolucionário de Trabalhadores (MRT), passou a estudar Sociologia em 2017.
Na mesma época, foi morar com uma amiga, iniciou sua transição de gênero e passou a ter um maior interesse em participação política. “Acho que ter estado na faculdade e ter tido a oportunidade de não estar com a minha família me libertou em vários sentidos”, explica Nikaya, hoje com 25 anos. Quando o grupo de amigos com quem militava começou a se destituir, ela e outro colega decidiram entrar no PSTU, partido que a convidou a concorrer este ano. “Eu fiquei na dúvida, porque é muita tarefa, muita responsabilidade, mas acabei aceitando porque é importante localizar um polo socialista referenciado numa mulher trans”, resume.
Já Giovana pode não ter começado a sua trajetória quando era adolescente, mas afirma que sempre se viu como uma pessoa de esquerda. “Eu morei numa cidade pequena em que eram sempre os mesmos políticos de direita que ganhavam, e quando eu era pequena eu já dizia que não dava pra ser assim”, conta. Conheceu o PCdoB a partir do movimento Comuns, e sempre teve simpatia pela atual candidata à prefeitura, Manuela D’Ávila.
Ativista da causa LGBT, Giovana também é cabeleireira, microempreendora e cantora – ela conta que já se apresentou em diversos eventos na cidade e no interior. Além disso, também é mãe de santo, o que colaborou no desejo de entrar para a política. Enquanto transexual, também acredita na importância da representatividade e de se ter um maior número de candidaturas diversas. “Essa é uma capa que a gente não tira nunca, ser uma mulher trans já é um ato político. Mas eu quero que as pessoas me enxerguem para além disso, que eu consiga ser uma política completa, trabalhar para a cidade de um modo geral”, argumenta.
Atena também se define como uma candidata que vai além das pautas LGBTs: escritora, poeta e professora, ela iniciou sua trajetória política como militante da educação e da arte. Neste momento, compõe o grupo que luta pela manutenção da Escola Estadual Rio Grande do Sul, que o governo de Eduardo Leite (PSDB) pretendia fechar. Ela própria e seu irmão estudaram na instituição, fundada por Leonel Brizola, que foi governador do Estado, fundador do PDT. Atena encabeçou a Campanha da Legalidade e é também o nome que representa a afinidade da candidata com o partido pelo qual concorre.
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“A nossa candidatura está baseada na carta de Lisboa, que foi quando exilados [da ditadura militar, nos anos 1970] em Lisboa, encabeçados pelo Brizola, geriram o que viria a ser o PDT. Então não é só uma candidatura LGBT, isso é muito pouco. O nosso programa de propostas tem quatro grandes eixos: pela democracia, pela educação, pela cultura e pela diversidade”, coloca Atena. Tendo se aproximado do partido pelos ideais brizolistas, ela conta ter sido muito bem recebida e, atualmente, é presidente estadual do PDT Diversidade.
A bandeira do acesso à cultura também é uma das levantadas por Fê Amaro (PCB). Especificamente, a militante comunista está preocupada com a revitalização da Usina do Gasômetro de forma 100% estatal e a manutenção da Cinemateca Capitólio como um local público. “Atualmente, a cultura que a gente consome não é feita por artistas locais, ou mesmo brasileiros, é cultura norte-americana. E isso se dá também porque não existe oportunidade para artistas na nossa cidade”, diz a candidata.
Oriunda dos movimentos LGBT e estudantil, Fê Amaro atualmente é diretora de universidades públicas na União Nacional dos Estudantes (UNE), mas sua trajetória escolar nem sempre foi fácil. Devido à LGBTfobia, chegou a abandonar o Ensino Médio e conseguiu conclui-lo através do Enem. “A população LGBT seguidamente passa pelo processo de expulsão de casa, de evasão escolar, sofremos muito dentro da escola”, aponta.
Vulnerabilidade e falta de acesso a emprego
A trajetória de dificuldades para conseguir educação formal sentida por Fê ao ter que abandonar os estudos por um período a levou a pensar em outras pessoas nessa situação. Ela aponta a empregabilidade das pessoas trans como uma de suas principais bandeiras. “Essa é a realidade de muitos jovens LGBTs que são expulsos de casa, não conseguem se manter na escola e por não ter nenhuma alternativa de emprego, acaba indo para a prostituição. As mulheres trans têm que ter toda a possibilidade de ir para outras áreas, não ficar presa na prostituição ou trabalhos precários”, defende a candidata.
Embora se identifiquem com diversas outras pautas, todas as candidatas também se atentam muito à questão das vulnerabilidades sofridas pelas pessoas transexuais, especialmente a falta de emprego e a pobreza. “Eu faço esse debate com bastante incidência, porque a população trans, as mulheres trans em particular, 90% estão na prostituição no Brasil, então tem uma condição de classe muito determinada. Quem mais está no desemprego, prostituição, informalidade, são as trans e outras pessoas LGBTs, especialmente as negras”, aponta Nikaya (PSTU).
A preocupação com melhores condições de trabalho para a população LGBT é também uma das questões trazidas por Ana Paula, que a partir do trabalho voluntário conheceu as diversas realidades econômicas e as vulnerabilidades de muitas pessoas trans. “Na ação da qual eu participo com a Igualdade, aparecem trans de tudo quanto é lugar, elas são bem pobres, e daí a gente vê como a situação está crítica. Nesse ponto, eu vejo da parte das pessoas trans e travestis, mas isso afeta a população em geral”, reflete Ana Paula, citando a piora na situação econômica da população com a pandemia da covid-19.
De forma semelhante, Giovana também atua em causas sociais e se preocupa com as pessoas em situação de vulnerabilidade social. “As minhas principais pautas são os direitos fundamentais das mulheres, dos LGBTQIA+ e das pessoas em extrema pobreza. O que realmente me motiva são as pessoas mais pobres, quando a gente anda pela periferia entregando cesta, a gente vê uma Porto Alegre que muita gente não conhece”, resume a candidata, que faz da própria casa uma espaço para receber doações e organizar cestas a serem distribuídas para pessoas em vulnerabilidade.
Nesse sentido, Natasha (PSOL) propõe que a cidade tenha uma casa de acolhimento para pessoas LGBTs em vulnerabilidade, destacando que a cidade tem quase quatro mil imóveis sem destinação social que poderiam servir para esse propósito. Um local que conte a história LGBT da cidade também está dentre suas propostas. “Precisamos homenagear os grandes nomes do nosso movimento na cidade, com uma casa que conte essa história e que estudantes possam ir conhecer. Quando se entende que a luta LGBT é uma luta pela vida, isso faz com que crianças não sejam LGBTfóbicas”, afirma.
Para Atena, o “respeito ao sentido de justiça social” passa pelo combate aos governos de Jair Bolsonaro (PSL), Eduardo Leite (PSDB) e Nelson Marchezan Júnior. (PSDB). “Para nós, em 2020, as eleições do município pro legislativo são as mais importantes, porque hoje em dia não basta o vereador e a vereadora fiscalizarem, tem que lembrar que não existe apenas um conhecimento técnico, mas sim humano. A política tem que ser existencialista, o corpo político tem que ser real e não teórico”, reflete.
Apoio dos partidos
Todas as candidatas relataram ter recebido apoio dos partidos pelos quais concorrem, seja financeiro ou emocional. Giovana, Nikaya e Fê não tomaram a iniciativa de concorrer, mas foram convidadas pelas legendas – as duas últimas, escolhidas em convenções coletivas. Enquanto o PCB não tem verbas do fundo partidário, os outros partidos auxiliam as candidatas pelo menos com materiais de campanha e inserções nas propagandas de televisão. Atena relata que está aguardando o recebimento de verbas que irão chegar por meio do PDT Diversidade, enquanto o PSOL tem como princípio encaminhar parte das verbas partidárias para as candidaturas LGBTs.
Confira trechos das falas de cada candidata
Ana Paula Sander, PSOL
“Essa nova geração tem muito mais oportunidade. Eu morei muitos anos na Europa, lá consegui guardar dinheiro. Fui casada, depois eu vim embora. A gente fica muitos anos sem estudar e não tem mais a mesma memória. Ano passado eu perdi minha mãe, que era minha melhor amiga. De repente, um câncer hormonal e, em dois meses… daí tirou meu chão, achei até que não ia concluir a faculdade. Eu perdi a motivação, porque ela me motivava muito. Com a minha família, nunca tive problema nenhum, eles moram no interior. Sabe que eu até penso em tentar começar a escrever um livro sobre as histórias que eu vi de várias trans, vivências e sobrevivências de outras mulheres trans e minhas. Na Europa também se passa muito perrengue, não é um mar de rosas”.
Atena Beauvoir, PDT
“Enquanto escritora, professora de Filosofia, eu acabava sempre fazendo esse vínculo através de formações, palestras, rodas de slam na cidade e no interior do Rio Grande do Sul. E, para mim, a política tem que ser existencialista, o corpo político tem que ser real e não teórico, a gente tem muito mais corpo político virtual do que real. E é o que a gente tem feito em espaços culturais, aqui na ocupação da Escola Rio Grande do Sul, ou indo em escolas dar aulas e fazer formações sem solicitar remuneração, para fazer a mudança através do próprio corpo. Eu nunca vou precisar de uma vaga para que me dê o poder que já é meu, de fazer mudança na sociedade. Agora, o Legislativo precisa de mim para que faça sentido a Câmara Municipal, para que faça sentido a estrutura desses três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário”.
Fê Amaro, PCB
“Em 2013 eu participei das manifestações, mas não estava organizada. Namorava um menino que era do partido na época e fui me aproximando e conhecendo mais as bases do PCB. Fui percebendo também que a dor que eu sentia como trans é conectada. Antes, eu sentia a dor como uma ilha, fui compreendendo que é uma ponte que me une a outras pessoas e a partir daí vamos criando conexões, ligações, que são muito firmes. E a gente consegue avançar na luta justamente quando consegue criar unidade na adversidade. Queremos mostrar cada vez mais como o comunismo, que muitas vezes é posto como uma coisa muito dura, fechada, saudosista da União Soviética, consegue abraçar a diversidade. O partido e o marxismo como uma ciência viva, que tem que reivindicar as lutas, principalmente do movimento LGBT”.
Giovana Pytton, PCdoB
“Eu sou uma militante e vou obviamente buscar as outras pautas, mas acredito que o feminismo em si ele agrega muito, acho que uma cidade boa para mulheres é boa para todo mundo, então é muito importante levantar essas bandeiras e tentar fazer essa mudança através do olhar. O fato de a gente poder estar participando agora, no Antra mesmo tem essa pesquisa com o número enorme de candidaturas de pessoas trans, o fato da gente estar dando cara a tapa, estar tentando se inserir é muito importante. O que eu não quero são cargos, me colar com político. Agora, continuar assim, me candidatando para as pessoas me elegerem, sim. Eu quero continuar na política e trilhar os caminhos nesse sentido, porque acho muito importante. E com certeza a gente vai ser muito negada, então uma vez que a gente conseguiu começar a se inserir, não podemos nos omitir”.
Natasha Ferreira, PSOL
“Fazer parte da vida partidária e ver o partido como um instrumento. Porque os partidos não são igrejas, eu comecei a ver que partido é feito de pessoas, e pessoa erra, e que as visões dentro do partido nem sempre são as mesmas. Comecei a ler sobre o peronismo argentino, que tem setores de esquerda e direita no mesmo partido. Comecei a perceber, no Brasil, que a gente necessitava da esquerda radical, mas colocando a pauta LGBT no centro desse debate que era somente pela questão econômica. Inclusive, eu falo muito disso e sou muito chata nesses espaços, porque não tem como falar de política de acolhimento sem falar em economia e em como o Estado gere esses recursos. Fui aprendendo mais nos cursos do PSOL. E não dá pra governar com todo mundo, porque fazer isso é submeter a comunidade LGBT a ser instrumento de barganha no Congresso”.
Nikaya Vidor, PSTU
“O socialismo não é uma ideia universal da classe trabalhadora como apenas os homens cissexuais* héteros brancos. Acreditamos que para construir o socialismo, a gente precisa combater as discriminações e opressores, que acreditamos ser formas alienantes da sociedade que impedem a união da classe trabalhadora. Como uma trans vai confiar num companheiro cis que a discrimina? Como uma trabalhadora vai confiar num trabalhador se ele a assedia quando ela entra na fábrica? Pra gente conseguir a unidade da classe trabalhadora, precisamos combater esses preconceitos. Defendemos a criação de conselhos populares, a partir da gestão dos próprios trabalhadores na cidade, e o nosso mandato iria surgir em defesa de todas as auto-organizações, de escolas, de LGBTs, estaria em defesa dos explorados e dos oprimidos. Mas é difícil prometer conseguir as coisas no parlamento porque sabemos a quem o parlamento serve”.
* cissexuais (ou cis) são todas as pessoas que não são transexuais, ou seja, aquelas cuja identidade de gênero é a mesma do gênero atribuído ao nascer.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Sul 21