“Muito prazer, estou aqui pra dizer que canto pra minha aldeia, sou parte da teia, da aranha sou par". É assim que Neuber Uchôa, um dos principais nomes da música roraimense abre a música Cruviana, uma de suas mais famosas composições. Uchôa, ou lado de Eliakin Rufino e Zeca Preto protagonizou o lendário Trio Roraimeira, expressão pertencente ao Movimento Roraimeira fundado no início dos anos 80 na região Norte do país.
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No youtube, Cruviana é descrita pelos ouvintes como “a cara de Boa Vista”. Um outro comentário diz “ouvi essa música pela primeira vez em 1996, no Fecani de Itacoatiara, e nunca tirei da cabeça”.
Mas a música em Roraima não começou em 1980. Segundo a tese “Música e Educação em Roraima”, os primeiros registros de música são datados do século 18, com a colonização do Rio Branco e a chegada das expedições missionárias Carmelitas, que foram as responsáveis por introduzir os conceitos de música européia aos indígenas através da catequização. Hoje a cultura musical regional de Roraima é fruto do Movimento Roraimeira, responsável por unificar um estilo.
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Com inspiração da Semana de Arte Moderna, no sentido de deixar de consumir aquilo que era de fora e acabar produzindo sua própria arte com uma cara e uma identidade local, o movimento se tornou referência.
Preto, que teve muito influência de Simpatia, explica que "não importa que seja um sertanejo, que seja um samba, o que importa é que tem que tratar dessa cultura roraimense - onde aparece em primeiro lugar essa influência indigena, que a gente tem como mais original, e mesclado de tantas coisas de pessoas que vivem aqui, como gaúchos, paraenses, cearenses, todos".
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"O Movimento Roraimeira foi uma ação coletiva que atuou na construção cultural de uma identidade local amparada, sobretudo, nos elementos culturais e da paisagem regional. O movimento reuniu músicos, escritores, dançarinos, poetas, fotógrafos e artistas de várias vertentes. Tendo como fundadores o Trio Roraimeira formado pelos cantores Uchôa, Rufino e Preto”, explica Jackson de Souza Félix, jornalista e Mestre em Letras na linha de pesquisa Literatura, Artes e Cultura Regional pela Universidade Federal de Roraima (UFRR).
Com a linha de pesquisa “Música e regionalismo, as contribuições dos festivais de música na formação da cultura roraimense”, o pesquisador explica que “é importante destacar também que a expressão ‘roraimeira’ surgiu a partir de uma canção homônima do Zeca Preto, considerada entre os artistas locais como a primeira a falar sobre o povo e a paisagem do estado". Em 2015 a canção foi sancionada como hino cultural do Estado de Roraima.
"O povo sentiu um orgulho muito grande de ver um movimento onde ele, o roraimense, era protagonista, e que pudemos colocar essa força desse amor por Roraima", contou o artista Zeca Preto.
"'É uma terra feita de pajés e corações de cada canto do país', esse é um trecho de uma música minha com Uchôa e isso aí pra mim é a música tradicional porque é o tratamento que a gente dá, não tem um ritmo específico", continuou.
Preto e Uchôa classificam que a cultura indígena é o que se tem de mais sagrado. Eles, que chegaram a realizar uma pesquisa para aprender as batidas utilizadas, explicam que muito dessa sabedoria inspirou as músicas do movimento.
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Félix, cuja pesquisa faz uma relação direta entre festivais de música e movimentos culturais, trazendo detalhes dos movimentos socioculturais na América Latina, explica que num primeiro momento o cenário musical de Roraima esteve muito ligado à relação entre a igreja e os indígenas. E que depois com a rádio, já na década de 60 e, mais tarde em 1980, com os festivais de música - no caso o Festival de Música de Roraima, o FEMUR.
"A partir desse período, de 1980, que a temática regionalista começa a ser tratada e discutida num tom de afirmação identitária com a questão de gerar uma visibilidade sobre o tema. E só a partir de 1984 que nasce o Movimento Roraimeira - que surgiu não por conta só de uma inconformidade ou ausência de uma identidade local, mas também como uma manobra de resistência à dominação do governo central”, explica.
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Segundo o pesquisador, naquela época o contexto político social era totalmente diferente, já que Roraima era território e fazia parte do território da União, refletindo aos interesses do governo.
Foi em meio ao período da Ditadura Militar que o Movimento Roraimeira lutou pela inserção do indígena na sociedade na figura de cidadão. Félix explica dois momentos marcam o movimento: o antes dos anos 2000, onde o trio principal focava suas composições em relatar o cenário local, falar das belezas naturais com elementos indígenas; e depois dos anos 2000, quando cada um dos compositores passaram a fazer críticas sociais diretas - cada um à sua maneira.
Os grandes festivais de música e arte do estado deixaram de existir por falta de investimento. Hoje a música regional resiste através das redes, saraus e apresentações menores.
Com 61 anos de idade e 40 de carreira, Uchôa explica que mesmo sem apoio do Mercado e do Estado, os artistas continuam com fôlego para continuar compondo, cantando, representando, pintando e etc. "Essa coisa mercadológica, brasileiramente e mundialmente falando, é o que nos falta. É essa facilidade pra conseguir ir de um lugar ao outro... porque aqui a nossa densidade demográfica também contribui negativamente para esse intercâmbio", explica.
"Para se ter uma ideia, a distância mais perto que estamos de Boa Vista é 750km, que é Manaus. Então as distâncias das cidades são muito grandes e tem lugares que inclusive é difícil ir e voltar, as passagens são muito caro. Mas mesmo com tudo isso temos feito o possível. Eu tenho 5 discos gravados aqui, viajando, vou à Belém, Manaus, Porto Velho, Macapá... E a gente vai fazendo amizades, vai agregando valores, vai também compondo parceiras e fazendo a nossa parte. A parte que nos cabe nesse latifúndio é o que está aí escrito e tocado", finaliza o compositor e cantor.
Nova geração e suas influências
Na nova geração, Preto destaca os cantores e compositores Kell Silva, Miro Gárgia, Euterpe e Júnior Caçari, entre outros. Segundo o artista, o estado tem hoje representantes importantes dessa cultura regional.
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Um poema e um arranjo musical foram o pontapé inicial da Jamrock, de Roraima. A banda, que surgiu em 2009 da união de alguns amigos, é formada hoje por quatro pessoas. Hyago na guitarra, Hugo no baixo e vocal, Ana Gabriela na guitarra e vocal e Everson na bateria. Com composições próprias, o grupo já se lançou no cenário musical com 10 músicas autorais.
Segundo um dos integrantes do grupo, Hyago Moura Jaworski, a banda começou de uma mistura do hardcore com reggae, com influência de Forfun, Scracho, Gilberto Gil, Caetano Veloso e outros nomes da música brasileira. Com o tempo, Neuber Uchôa, Eliakin Rufino, Zeca Preto, Ben Charles, Sérgio Barros, George Farias, Bebeco Pujucan e outros cantores e compositores do estado também passaram a inspirar a banda.
Com discos lançados em 2012, 2013 e 2018, a Jamrock viajou por 10 estados mostrando a cultura de Roraima. Em 2019, o grupo adentrou o centro-oeste e foi parar em Goiânia ao lado de outras três bandas: Urutu do Olho Fundo, Bodó Valorizado e Modesto à Parte. Chamado de Invasão Nortista, o movimento se propôs levar a música regional de Roraima para outros estados.
“Fora do nosso território, pelo que chega pra gente, a música do Norte ainda é muito guiada pelo Pará e pelo Amazonas. São nessas regiões que os artistas têm mais projeção nacional, desde a Banda Calypso no final dos anos 90, até Gaby Amarantos, Felipe Cordeiro, Fafá de Belém. Então o Pará vem como o carro-chefe na minha visão”, explica Moura.
O músico explica que há muitas influências musicais na região que vem, também, de fora do Brasil. Ele cita Venezuela e Guiana como países de grandes contribuições culturais. “Essa imigração dos últimos anos têm enriquecido o cenário musical de uma forma muito grande. Na parte caribeña, da salsa que vem de lá, do merengue, isso tudo influencia junto com a parte reggae forte que vem do Norte. A gente tem um representante muito forte dessa música que é o Mike Guy-Brás, que representa há muitos anos essa visão da fronteira Guiana Brasil”, aponta.
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Félix também destaca influências como Ricardo Nogueira, Banda Bolivar Blues - criada na Califórnia e que hoje atua na Venezuela e Israel Pereira - cantor venezuelano que canta rock.
"As influências estão nos ritmos. Durante o Movimento Roraimeira, o grupo tentou instituir um estilo musical chamado ‘Macunaimeira’ que misturava salsa, merengue, carimbó, baião e até mesmo vaneirão gaúcho - justamente por conta das influências dessas pessoas que viviam no estado, avalia.
De acordo com o pesquisador, Roraima "sempre teve imigrantes venezuelanos, guianenses e demais pessoas que entravam por essas fronteiras. A gente também teve um bum migratório do Nordeste para o Norte, por conta do garimpo, e do Sul, para o cultivo de terras aqui no estado. Então meio que foi pegando uma referência de cada um, dessas pessoas de lugares diferentes”, explica.
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Percussão, congas, bongôs e violão estão presentes nas produções locais. O Carimbó também é muito citado pelos moradores de Roraima como um estilo presente no dia a dia. Um ritmo musical típico da região amazônica, patrimônio cultural brasileiro e também um gênero de dança de roda de origem indígena típica da região norte brasileira, foi criado no século 17 no estado do Pará. Influenciado por negros (percussão) e portugueses (palmas e sopro), o nome Carimbó é oriundo do instrumento musical, um tambor artesanal utilizado nesse estilo musical, chamado de "Curimbó".
Juventude
A música roraimeira não era conhecida pela juventude até o ano de 2010, explica Moura. Mas com a internet os jovens começaram a conhecer e se interessar por pelas composições regionais.
A Banda Garden também teve um papel importantíssimo na divulgação das composições regionais. Uma das principais músicas de Uchôa, Cruviana, foi regravada pela banda em ritmo de rock'n'roll, o que fez com que a juventude do território se aproximasse das produções locais.
Algumas outras bancas como Urutu do Olho Fundo, Marambaia e Bodó Valorizado também contribuem com a nova geração de músicos regionais. O famoso Bloco do Mujica anima o carnaval e ajuda na disseminação da cultura local, que é bem bem apreciada pela população.
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"Não é fácil você viver de música no Norte do país, fora de todo esse mercado, fora de todo esse trabalho que é feito na mídia. Mas em compensação, na Amazônia aqui no Norte nós temos mais de 20 milhões de habitantes e eu gostaria de acrescentar esse meu sonho de um dia essa Amazônia se tornar um caldeirão cultural com música, teatro, poesia. Um negócio quase que independente do Brasil propriamente dito".
Zeca Preto diz esperar ainda que a Amazônia "tenha esse mercado onde se possa escoar através da mídia, das redes sociais, se escoar muito, porque são mais de 20 milhões de pessoas. Fazer o povo entender que tem gente que luta, que seus textos musicais são direcionados à eles. A gente já colocou esse amor por Roraima e a gente tá tentando colocar muito mais”, finaliza.
Edição: Douglas Matos