O anuário revela ainda que nunca a polícia brasileira matou tanto como no ano passado
Olá,
Não há nenhuma surpresa que a República militar e miliciana do Brasil seja um país violento e desigual. Mas quem será a oposição capaz de enfrentar este projeto nas urnas? Esquerda e direita esperam responder esta questão nas eleições deste ano.
1. O sobrevivente. Se há algo prenunciado há muito na política brasileira é a crise do PT. Ao longo de seus mais de treze anos de governo, o partido sofreu sucessivos ataques da direita, como a denúncia do mensalão, a Lava Jato e o impeachment de Dilma. Apesar dos prognósticos mais negativos, o PT não apenas sobreviveu como se manteve no centro da disputa eleitoral de 2018.
No entanto, com o prosseguimento da perseguição jurídico-política a Lula, mais uma vez, o tema da crise ressurge. O PT segue sendo o partido com maior bancada na Câmara Federal, mas os prognósticos indicam um fraco desempenho nas eleições municipais, importantes para enfraquecer ou fortalecer a máquina partidária para as disputas nacionais.
Dos 26 estados da federação, apenas em três capitais as candidaturas encabeçadas pelo PT aparecem entre os dois primeiros colocados: em Vitória (ES), Fortaleza (CE) e Salvador (BA), e nos três casos estão em segunda posição. E nas demais capitais os candidatos petistas não chegam nem a 10% da intenção de voto.
Este quadro reafirma o cenário consolidado em 2016, já que hoje o PT não governa nenhuma capital e nenhuma das cem maiores cidades do país. Ou seja, pode ser que estas eleições não representem uma mudança radical nas bases locais do partido. Mais preocupante é o fato de que no Nordeste o PT tenha lançado menos da metade de candidatos às prefeituras este ano em relação a 2016.
Isto pode ser um indicativo de perda das bases que davam conteúdo popular à sigla, especialmente na região, que ainda é uma das regiões mais pobres do país. Muitos fatores contribuíram para esta situação. Rudá Ricci aponta que, depois de anos no poder, houve uma mudança na composição de militantes e quadros em direção a um perfil mais moderado, gerencial e personalista de liderança. Mas não apenas isso. O povo brasileiro também mudou, se tornou menos fabril, mais velho, mais evangélico e tem se mostrado mais conservador.
2. Esquerda no plural. Se olharmos a esquerda de forma mais ampla, considerando que o cenário é de avanço da direita, as perspectivas eleitorais até agora são menos catastróficas do que se poderia imaginar. O PSOL, o PSB e o próprio PCdoB aparecem também como alternativas para o eleitorado progressista.
É o que ocorre em Macapá (AP), Rio Branco (AC), Belém (PA), Recife (PE), Maceió (AL), São Paulo (SP) e Porto Alegre (RS), onde candidatos desses partidos estão bem posicionados na disputa. Em alguns casos, como em Porto Alegre (RS), o PT faz parte da coligação.
Em outros, como em Recife (PE), a disputa divide a esquerda, tendo de um lado João Campos (PSB), em primeiro colocado, e de outro Marília Arraes (PT), em terceiro. Outro exemplo paradigmático desta segunda situação é a capital paulista.
Lá Guilherme Boulos (PSOL) parece ter-se consolidado como o candidato da esquerda, ocupando a terceira posição, enquanto Jilmar Tatto (PT) tem dificuldades de decolar. Um indicativo dessa popularidade é que Boulos é o candidato que mais arrecadou recursos com vaquinhas virtuais em todo Brasil.
A situação gerou fogo amigo e desconforto interno no PT quando alguns quadros, como Lindbergh Farias, chegaram a cogitar a retirada da candidatura de Tatto em favor de Boulos.
3. O triunfo do centro. O PT não é o único grande partido brasileiro com dificuldades nestas eleições. Para seu arquirrival histórico, o PSDB, a conjuntura também não está fácil. As eleições estão no primeiro tempo, o jogo está sendo jogado, mas alguns sinais vão ficando mais claros. Um deles é que a cláusula de barreiras pode vir a favorecer o chamado “centrão”.
Houve um reposicionamento no espectro partidário. Dos candidatos que participaram da eleição de 2016 e estão novamente no pleito, a maioria trocou de partido. Os que saíram em vantagem e cooptaram mais candidatos foram DEM, PP, PSD, Podemos e Republicanos. Os que mais perderam foram PV, PSDB, PSB, DC e PTC. Como observa Celso Rocha de Barros, a conjunção de uma legislação eleitoral mais restritiva com o clima antipolítica dos últimos anos deixou alguns partidos que tinham um perfil ideológico mais definido em desvantagem frente àqueles de perfil mais oportunista e fisiológico.
O termo “centrão” aqui é variado e até enganador, pois nele cabem tanto o DEM, tradicional partido da direita, que se tornou o fiel da balança do governo Bolsonaro, quanto o Patriota, um dos nanicos mais ligados à bancada evangélica.
Em compensação, o MDB que já foi o próprio centro do sistema político, saiu enfraquecido depois do fiasco do governo Temer. Trocando em miúdos, o centro mudou, está mais fragmentado e foi mais para a direita. O espírito desse novo centro talvez esteja mais próximo dos candidatos do PSL, do PL e do PP em Boa Vista (RR) que estão inovando com o discurso xenofóbico contra os imigrantes venezuelanos.
4. Brasil colônia. A subserviência não para. Mesmo depois do fiasco da visita do secretário de Estado estadunidense Mike Pompeo ao Brasil em setembro passado para fazer ameaças à Venezuela, às pressas, Paulo Guedes assinou um acordo de cerca de 1 bilhão de dólares com o Banco de Importação e Exportação dos Estados Unidos que promete investir em telecomunicações, energia, infraestrutura, logística, mineração e manufatura.
Mas o verdadeiro interesse dos Estados Unidos é impedir que o governo brasileiro feche um acordo com a China, país que saiu na frente no desenvolvimento da nova tecnologia 5G. O conselheiro de segurança Robert O’Brien, falou em reunião na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) dos riscos de espionagem e perda da privacidade que o Brasil correria se ficasse dependente da tecnologia 5G da corporação chinesa Hauwei.
Este argumento simplesmente ignora os atos de espionagem que os Estados Unidos praticaram contra o Brasil denunciados pelo WikiLeaks em 2015, envolvendo inclusive o grampeamento de telefones da então presidenta Dilma Rousseff. O representante chinês, em resposta, denunciou a mentalidade de guerra fria da política norte-americana.
Além de ir contra nossos interesses nacionais, o anúncio ignora que os Estados Unidos estão em processo eleitoral, onde o mais sensato seria esperar o resultado, o que soou como provocação e zombaria para a oposição à Donald Trump.
Ignorando isto, Bolsonaro aproveitou a ocasião para elogiar Donald Trump e apoiar sua reeleição, comprometendo também a diplomacia brasileira. Em sintonia fina com o ídolo, Bolsonaro afirmou também que o Brasil não comprará a vacina chinesa Coronavac, contrariando a decisão que havia sido tomada pelo ministro da saúde Eduardo Pazuello.
Neste caso, o presidente pretende também desgastar o governador de São Paulo João Dória, seu adversário político, que apoia o acordo fechado entre a empresa chinesa e o Instituto Butantan para produzir a Coronavac no Brasil.
Um dia depois da manifestação do presidente, a Anvisa começou a criar empecilhos para a importação da matéria-prima para a produção da vacina. Isto exatamente no momento em que a Europa passa pela segunda onda da covid-19 e em que o Brasil deveria estar se preparando para um novo surto, como alerta o cientista Miguel Nicolelis.
5. Genocídios. Com a pandemia, a expectativa era de que a redução da mobilidade diminuísse também os índices de violência. Mas, ao contrário, não bastassem os milhares de mortos pela omissão do governo em relação à covid-19, o número de mortes violentas aumentou em 7,1% em relação ao primeiro semestre do ano passado, revela o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
O anuário revela ainda que nunca a polícia brasileira matou tanto como no ano passado: foram 6.357 mortos pela polícia em 2019, contra 6.175 em 2018. Os dados escancaram também o racismo estrutural: quase 80% dos mortos eram negros. Em 2019, 74,4% das 39.561 vítimas de homicídio eram negros. O índice sobe, para 79,1% quando o autor do assassinato foi um policial.
A absoluta maioria são homens (99%) e jovens até 29 anos (74%). O anuário também demonstra que a proporção de negros no sistema carcerário cresceu 14%, enquanto a de brancos diminuiu 19% nos últimos 15 anos. Outra pesquisa, coordenada pela socióloga Jacqueline Sinhoretto (UFSCar), comprova que são traços físicos estigmatizados e estereótipos de cor e raça que justificam as ações policiais de prisão e letalidade.
No Rio Grande do Sul, policiais negros da Brigada Militar relataram ter medo de serem abordados pelos colegas quando estão na rua e sem farda. Entre os policiais mortos, os negros são também maioria: 65% dos policiais assassinados eram pretos ou pardos, segundo a pesquisa.
Para cada policial assassinado no Brasil, 37 civis foram mortos por policiais. Para fins de comparação, o FBI, nos Estados Unidos, considera "aceitável" a proporção de um policial morto a cada 10 civis mortos por policiais. Se há dúvidas da influência do governo, em seu primeiro ano, nos índices de violência, basta notar que o registro de armas de fogo aumentou em 120%, enquanto as mortes por este tipo de arma foram responsáveis por 72% dos assassinatos.
6. Dilema de Tostines. Se os decretos e declarações de Bolsonaro tem impacto no aumento da violência, no caso do poder das milícias cariocas, a pergunta é: Bolsonaro chegou à Presidência graças ao crescimento do poder político das milícias ou as milícias cresceram mais depois da chegada de Bolsonaro ao Planalto?
Uma pesquisa inédita do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) demonstra que as milícias já controlam 57,5% do território da cidade do Rio de Janeiro. Um poder superior ao tráfico de drogas, já que as três principais facções criminosas do Rio, juntas, controlam 15,4% do território. De alguma maneira, 3,7 milhões de cariocas (57% da população) vivem em algum local controlado por algum grupo criminoso.
O crescimento miliciano é proporcional à degradação política do Estado, aponta a pesquisa. Com tanta presença territorial, obviamente, os interesses das milícias se cruzam com a disputa eleitoral. Nas localidades dominadas pelos paramilitares, o controle do voto é realizado de três formas, revela reportagem da Folha: pela via do assistencialismo, vendendo a imagem de que os milicianos são benfeitores; por meio de ameaças e pela proibição de que outros concorrentes façam campanhas nesses territórios.
Exemplo desta terceira forma pode ser encontrado em São Paulo, onde o crime organizado é dominado há anos pelo PCC. Em represália à transferência de suas lideranças para presídios federais por ordem do governador João Dória, o PCC emitiu um “salve” proibindo que suas bases na capital e no ABC paulista façam campanha para candidatos do PSDB.
Para além dos vínculos parlamentares e financeiros, a relação entre as milícias e a família Bolsonaro é ideológica, afirma o jornalista Bruno Paes Manso, autor do livro A República das Milícias, em entrevista ao Brasil de Fato.
“Eles representam a ordem e a visão de uma ordem violenta, que não acredita na política. Essas pessoas não acreditam na capacidade da política de criar contatos coletivos que as pessoas obedeçam, desacreditam das autoridades políticas da Nova República e acham que essa ordem só chega pela violência e imposição da força. E que se colocam como autores e responsáveis por estabelecer a ordem em um território, ganham muito dinheiro para sustentar essa governança territorial, independente dos crimes que estejam cometendo”, analisa.
7. Orquestra do Titanic. Os dados da economia brasileira seguem pouco auspiciosos. A previsão de queda do Produto Interno Bruto (PIB) entre 4,5 e 5%, o desemprego deve atingir 13% da população e o preço dos alimentos continua subindo graças à combinação de especulação pelo agronegócio e desvalorização do Real, agora puxado pelo óleo de soja.
Ao mesmo tempo em que retira aceleradamente os recursos daqui, em uma semana R$13 bilhões deixaram os fundos de renda fixa, o mercado financeiro mantém a chantagem de que sem as reformas exigidas e manutenção do "tetos de gastos", a sangria pode ser maior.
Se o país navega em direção ao iceberg, Paulo Guedes, Rodrigo Maia e Campos Neto seguem tocando a valsa da austeridade que parece ter uma nota só. A estratégia parece ser ampliar incessantemente o leque de medidas de desmonte para ver se alguma coisa passa. Como observa o economista Paulo Kliass, nem mesmo o FMI tem sido tão ortodoxo quanto a equipe econômica do governo.
No repertório brasileiro, estão a lei de falências, mudanças na lei de cabotagem e novos marcos regulatórios do gás e para ferrovias. Guedes fala também da possibilidade de criar um banco digital da Caixa e abrir o capital da instituição para o investimento privado. Porém, falta força à equipe para que estas medidas sejam votadas pelo Congresso neste ano.
O governo esperava por exemplo aprovar o projeto de autonomia do Banco Central nesta quinta-feira (22) mas o Senado adiou a votação para novembro. A proposta circula por aí desde os anos 1990, como uma forma de entregar não apenas de fato mas também de direito a autoridade monetária para o grande capital financeiro.
Por fim, ainda procurando onde cortar no andar de baixo, Guedes revogou numa tacada 50 normas trabalhistas consideradas “inúteis” pelo ministro, enquanto o governo agora discute desvincular o reajuste do piso dos professores da variação do valor por aluno do Fundo Nacional de Educação Básica (Fundeb). A proposta é vincular o reajuste à inflação, o que elimina o ganho real garantido pela lei atual.
8. Unanimidade de manada. Ainda que Ricardo Salles seja a figura pública, o projeto de destruição física e legal do meio ambiente é um dos pontos de unidade dentro do governo Bolsonaro. Para a ala militar e o General Mourão, o meio ambiente serve de justificativa para engordar o orçamento das Forças Armadas e reforçar o discurso de ameaça na Amazônia.
No caso da destruição do Pantanal, investigações da Polícia Federal indicam que a maior responsável pelos incêndios é uma empresa que tem ligações com o BTG Pactual, do ministro Paulo Guedes, e que doou R$300 mil para a campanha ao parlamento da atual ministra da agricultura, Tereza Cristina.
Por isso, a suposta falta de comunicação na reunião ministerial entre Salles e os demais ministros sobre a iminente falta de recursos para o Ibama, que levou à retirada dos brigadistas das atividades de combate a incêndios, pode ter sido jogada ensaiada. Hamilton Mourão, Paulo Guedes e Braga Neto alegam não terem sido informados sobre a situação, o que não os impede de compartilhar do mesmo projeto de desmonte liderado por Salles.
Os vínculos orgânicos entre o atual ministro do Meio Ambiente e os interesses do agronegócio seguem firmes, como demonstra a indicação da advogada Laura Abbá para chefiar o departamento de áreas protegidas subordinado ao ministério, departamento responsável pelas unidades de conservação, parques, florestas e corredores ecológicos.
A advogada é notoriamente conhecida pelo agronegócio, tendo atuado nas áreas de consultoria jurídica e técnica na regularização de imóveis rurais e negócios jurídicos. Ainda assim, há quem ache Salles lento: Naban Garcia, da UDR, defende a fusão dos ministérios do Meio Ambiente com a Agricultura para acelerar a passagem da “boiada”.
Garcia quer que os ruralistas tenham ainda mais ingerência sobre a área ambiental. Injustiça com Salles, que não só oficializou a derrubada de resoluções de proteção à manguezais, facilitando a instalação de resorts e a desregulamentação do uso da água na irrigação, como segue a passos largos o projeto de exploração mineral na Amazônia, que novamente agrada Mourão, ruralistas e Bolsonaro.
9. Ponto Final: nossas recomendações de leitura
.Sucessão de crimes e erros da direita “devolveu” hegemonia ao MAS na Bolívia. No Brasil de Fato, Daniel Giovanaz analisa os acertos da resistência popular ao golpe na Bolívia e os erros dos setores golpistas que levaram à vitória do MAS nas eleições.
.Eleição, democracia, imperialismo e milícias, por Roberto Bitencourt da Silva. As eleições são cada vez mais limitadas para realizar as transformações estruturais no Brasil, um ritual empobrecido e esvaziado, mas que a oposição segue participando como se estivéssemos em plena normalidade, escreve Roberto Bitencourt da Silva no Jornal GGN.
.Militarização de agência de dados abre caminho para vigilância em vez de proteção. Na Folha de S. Paulo, Bruno Boghossian alerta que mais do que ocupação de cargos, a nomeação de militares para a Agência Nacional de Proteção de Dados revela um projeto de vigilância e autoritarismo.
.Política Neoliberal e os direitos do Trabalho no Brasil. José Álvaro de Lima Cardoso escreve no Outras Palavras sobre como a política única de atacar salários, reduzindo consumo, a produção e os lucros gera uma espiral de crise permanente.
.Anatomia da ultradireita, versão Steve Bannon. No Outras Palavras, Esteban Magnani escreve que é preciso analisar a ultradireita para além das redes sociais e se pergunta até aonde este modelo de destruição dos adversários e mobilização da base social se sustenta.
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Edição: Leandro Melito