O livro “A questão da ideologia”, publicado originalmente em 2002 pelo filósofo brasileiro Leandro Konder, ganhou nova edição. Desta vez, pela editora Expressão Popular, com o objetivo de trazer novamente para o centro do debate a relevância do termo, principalmente quando associado ao conceito de ideologia trabalhado por Karl Marx.
Hoje, ideologia é um daqueles termos cujo significado pode variar muito de um dicionário para o outro. Pode ser um conjunto de valores que cada indivíduo usa para orientar e dar sentido a sua presença no mundo – como a ideologia que Cazuza queria para viver –, ou pode ser uma orientação política, como ser de esquerda ou de direita.
Nos últimos anos, no entanto, o termo tem sido tachado de um viés pejorativo. Está na boca de líderes da extrema direita que qualificam toda a esquerda como ideológica, como se ideologia fosse uma característica intrínseca e exclusiva àqueles que são de esquerda.
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, é um exemplo claro disso. No discurso de posse, no dia primeiro de janeiro de 2019, o capitão reformado prometeu libertar o país das "amarras ideológicas" e da “submissão ideológica”, combater a “ideologia de gênero”, além de conduzir uma política econômica livre de “viés ideológico”, relacionando o termo ideologia à condução do país pelos governos de esquerda liderados pelo Partido dos Trabalhadores.
Novos sentidos
A ideologia é uma forma distorcida de conhecer a realidade, ou seja, que não leva à verdade, mas a uma versão dela. Segundo Cristina Simões Bezerra, professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), esse é o sentido dado ao termo pelos alemães Karl Marx e Friedrich Engels, no livro “A Ideologia Alemã”.
“Durante muito tempo esse foi o sentido de ideologia, o sentido extremamente pejorativo no que se referia dizer que a realidade estava sendo conhecida por um caminho equivocado. Uma falsa consciência, uma forma enviesada de conhecer a realidade”, afirma Bezerra.
Somente no fim de sua vida, Marx apresenta um outro sentido para o termo ideologia: um conjunto de ideias que fundamentam uma ação, sabendo que esse escopo nasce da própria realidade.
“Um conjunto de ideias que nasceu da própria realidade e que volta para a realidade para poder conhecê-la e transformá-la. Mesmo Marx e Engels já têm um sentido positivo de ideologia no final da sua produção”, mas que será desenvolvido por outros autores, como o filósofo italiano Antonio Gramsci e Vladimir Lênin.
Divisor de águas
Segundo Bezerra, Gramsci foi um divisor de águas para o termo ganhar de vez um sentido positivo, de que existe uma batalha de ideias a ser feita, que faz parte do processo de manutenção ou transformação da sociedade.
Existe uma batalha de ideologias na sociedade, todas na busca de conquistar a hegemonia
“Ganhar as consciências, construir um conjunto coerente de ideias que permitam se organizar. Aí se ganhou um sentido positivo de ideologia dentro da cultura marxista, dentro da perspectiva marxista”, explica Bezerra. Não há, no entanto, uma distinção entre esquerda e direita. Novamente, ideologia é tida aqui como um conjunto coerente de ideias fundamentam a ação de qualquer grupo, não importa a posição política.
Desde a ascensão do nazifascismo na Europa, na primeira metade do século 20, passou-se a entender ideologia como única e exclusivamente de esquerda. “Mas os marxistas nunca tinham dito isso. Eles tinham dito que ideologia é um conjunto de ideias que fundamentam uma prática, mas também existe uma ideologia conservadora, também existe uma ideologia nazista", elucida.
"Ou seja, existe uma batalha de ideologias na sociedade, todas na busca de conquistar a hegemonia das lutas sociais que se dão nessa sociedade.”
Atualidade
Para Bezerra, esses são caminhos do termo ideologia que demonstram sua importância e a do livro de Leandro Konder na atualidade, uma vez que a ideologia está fundamentando determinadas práticas, quaisquer que sejam. Por essa perspectiva, ideologia tem a ver com a busca pela verdade, algo que existe desde os gregos: O que é a verdade? Onde a gente encontra a verdade? Como a verdade se materializa? São com essas e outras perguntas quem descem à mente de quem acaba de ler a obra de Konder.
“A gente termina esse e outros livros do Leandro com essa sensação de que ele nos provocou, por isso eu destaco sempre o termo “questão”, a pensar a nossa realidade. O leitor sai com mais perguntas do que respostas, porque o leitor sai questionando a própria realidade, problematizando a própria realidade”, conclui Bezerra.
Edição: Rodrigo Chagas