Após outubro de 2019 ter marcado a América Latina com diversas mobilizações de rua em vários países da região, outubro de 2020 traz resultados que demonstram que só a permanente mobilização popular converte-se em conquistas para os povos.
Enquanto, no último dia 18, o povo boliviano derrotou o golpismo, com a vitória do MAS nas eleições presidenciais; no domingo, 25 de outubro, 78,27% dos chilenos que foram às urnas votaram pelo "Apruebo" de uma nova Constituição para o Chile. Esse resultado é o início do sepultamento da Constituição de Pinochet. Além disso, 79 % votou pela eleição da Convenção Constitucional.
O Plebiscito foi realizado graças à onda histórica de protestos populares, iniciados em outubro do ano passado, que ocorreram sob violenta repressão das forças policiais e militares contra os mais de 6 milhões de chilenos e chilenas que foram às ruas.
Em uma das manifestações, 15% da população de Santiago ocupou as ruas da capital exigindo mudanças estruturais no país. Acuado pela pressão do povo, o governo de Piñera teve que ceder, dando início ao processo de convocação do plebiscito.
Diante das sombras de Pinochet que continuam presentes na atual Constituição chilena herdada do período ditatorial, mais de 7 milhões de chilenos e chilenas foram às urnas, mesmo diante da pandemia do coronavírus.
O povo compareceu em peso para votar pelo sim à criação da Convenção Constitucional, marcando uma das maiores eleições da história do país. Entre as reformas estruturais demandadas pela população, saúde e educação públicas e gratuitas, um novo sistema previdenciário, acesso à política habitacional e a desmilitarização da polícia estão no centro das reivindicações dos setores populares e progressistas.
Conhecido por ser o laboratório do neoliberalismo, o Estado chileno carrega estruturas profundamente autoritárias. A Constituição vigente no país é de 1980, escrita em plena ditadura do general Augusto Pinochet.
Segundo os dados da Comissão Nacional de Prisão Política e Tortura do Chile, a tragédia da ditadura chilena vitimou mais de 40 mil pessoas, sendo mais de 3 mil mortas ou desaparecidas.
É sempre importante lembrar que, além de ser reverenciado por Bolsonaro, Pinochet tornou-se presidente do Chile a partir de um golpe de Estado sangrento em 11 de setembro de 1973, bombardeando a sede governo (Palácio La Moneda) e assassinando o presidente socialista democraticamente eleito em 1970, Salvador Allende.
Graças ao apoio dos Estados Unidos e Israel à Pinochet -- que recebeu recursos financeiros, armas, soldados e agentes da CIA e Mossad (serviços de inteligência dos EUA e Israel) -- a estrutura do Estado chileno foi profundamente transformada para garantir a implementação do neoliberalismo ao mesmo tempo em que perseguia, torturava e assassinava seus opositores.
Além de não assegurar direitos sociais ao povo chileno, a Constituição de 1980 é fruto deste processo autoritário de violação dos Direitos Humanos.
É para pôr fim a estas estruturas que o povo chileno lutou e pressionou as estruturas do Estado para a realização do Plebiscito. O resultado demonstrou a vitória da soberania popular. Mas esse é só o início de um longo processo. Das duas questões que as/os chilenas/os responderam nas urnas neste domingo, a segunda era onde se previa mais disputas.
Enquanto a primeira abordava se queriam ou não uma nova Constituição, a segunda referia-se ao mecanismo de construção dessa nova Constituição. Para entendermos melhor, existiam duas possibilidades: i) uma convenção exclusivamente constitucional formada por membros eleitos para redigir a nova Constituição ou ii) uma convenção mista, 50% eleita exclusivamente para esse fim e 50% de parlamentares que já exercem mandatos.
Nesse contexto de disputas, como se organizam as forças sociais no Chile? Mais do que garantir a vitória do “sim” para uma nova Constituição, o desafio das forças populares era aprovar a opção que definia o sistema de Convenção Constitucional para que 100% dos/as deputados/as constituintes sejam eleitos única e exclusivamente para a tarefa de escrever a nova Carta Magna.
Enquanto isso, a Convenção Mista era apoiada pelas forças conservadoras, já que implicaria em metade dos deputados constituintes serem de parlamentares da atual legislatura.
Essa luta remete à memória do Plebiscito pela Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político, organizada por vários movimentos e organizações populares no Brasil, em 2014. Naquele contexto, as forças populares pautavam uma Constituinte na qual os deputados fossem eleitos exclusivamente para esta tarefa.
Na ocasião, o plebiscito popular obteve 7.754.436 de votos, e 97% dos participantes responderam "Sim". Lembramos dessa ocasião, porque isso remete à centralidade da disputa sobre qual o formato do organismo que irá redigir a nova Constituição.
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A possibilidade de eleger membros exclusivamente para isso, ajuda a colocar o debate no seio da sociedade e politiza a construção do processo de disputa sobre os rumos da nova Constituição. Nesse sentido, a vitória da Convenção Constitucional foi uma conquista central para as forças populares.
Desde o início dos protestos no Chile, em outubro do ano passado, os setores populares sabem que é somente com uma nova Constituição, escrita por uma convenção paritária, eleita única e exclusivamente para este fim, que haverá condições mínimas de desenvolvimento social com justiça, dignidade e trabalho para o povo chileno.
Em entrevista, Claudia Mix, deputada da Frente Ampla, aponta que a luta é central para que essa nova Constituição "tenha a expressão de uma geração de 20 anos e que garanta os direitos pelos quais a população chilena foi às ruas desde o ano passado".
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A partir do resultado do Plebiscito, inaugura-se uma nova etapa para o povo chileno na luta para construir uma nova Constituição que garanta direitos sociais ao povo chileno e mecanismos de maior participação popular. A disputa sobre os rumos da Constituição está aberta.
Em 11 de abril de 2021, os chilenos voltam às urnas para eleger os deputados constituintes, que terão um ano para redigir o novo texto constitucional. Após finalizado, o texto da nova Constituição será "aprovado" ou "não aprovado" em um novo Plebiscito no qual a população chilena teria que ir às urnas obrigatoriamente.
Esse processo de construção do novo texto constitucional precisa ser debatido amplamente pelo povo chileno. É uma grande oportunidade das forças populares disputarem os rumos do país. Por isso, mais do que nunca, é necessária mobilização permanente. A tarefa não é fácil, pois a burguesia chilena nunca esteve disposta a negociar seus privilégios.
Não podemos esquecer que a classe dominante chilena conta com poderosas estruturas de dominação e de repressão. Ela conta com os apoios políticos e econômicos do imperialismo dos Estados Unidos e de Israel, combinados à colaboração de governos de direita e de extrema-direita da região (Brasil, Equador e Colômbia).
A violência e a repressão arbitrária da polícia durante as manifestações populares e legítimas do povo chileno resultou em mais de 2 mil prisões arbitrárias, dezenas de mortes e mais de 450 pessoas que ficaram cegas de ao menos um olho.
Cabe também ressaltar que, mesmo diante dessas graves violações de direitos humanos, a mesma OEA que contribuiu decisivamente para o golpe de 2019 na Bolívia, é a mesma que permanece em silêncio frente essas arbitrariedades no Chile.
Somados, todos esses atores formam e sustentam o bloco de oposição às manifestações populares que exigem uma profunda mudança nas estruturas do Estado chileno. Por isso, a permanente mobilização popular nas ruas é a arma central nesse processo.
Este domingo, 25 de outubro de 2020, ficará marcado na história de luta do povo latino-americano, como a data na qual nossos irmãos e irmãs chilenas deram mais um passo rumo ao sepultamento da Constituição da ditadura de Pinochet e avançaram no caminho da construção de estruturas democráticas de poder e de participação popular.
Além disso, o resultado do Plebiscito é a prova de que as conquistas do povo advém da intensa, ininterrupta e aguerrida mobilização popular. Que os ventos e o legado da Unidade Popular de 1970 continuem entre os chilenos nos próximos passos para construção da nova Constituição!
*Giovani Del Prete é bacharel em relações internacionais pela UFABC e militante internacionalista e Mariana Davi Ferreira é cientista social, internacionalista e militante do Levante Popular da Juventude.
Edição: Leandro Melito