As eleições de 2020 trazem as candidaturas coletivas como um fenômeno em crescimento em todo o país. Têm se apresentado como uma forma de aprofundar a democracia, oxigenando o modo tradicional de fazer política. Os mandatos coletivos são uma alternativa para diversos segmentos que normalmente se veem excluídos da participação política. Esses grupos enxergam nessa modalidade de candidatura uma forma de potencializar as forças.
Em Porto Alegre, pelo menos sete candidaturas coletivas concorrem a uma vaga na Câmara de Vereadores neste ano. Todas elas ligadas a partidos de esquerda. Abrindo a microssérie de reportagens sobre esse tipo de iniciativa, o Brasil de Fato RS apresenta quatro candidaturas coletivas da capital compostas somente por mulheres, sendo duas de mulheres negras.
Pela primeira vez na história, as candidaturas negras são maioria nas eleições 2020, o que revela algum avanço. Mas quando se olha o gênero, a realidade é outra. Apesar das mulheres serem mais da metade do eleitorado brasileiro (52,49% das 147,9 milhões de pessoas aptas a votar nestas eleições) e de todos os avanços e conquistas, como a cota de 30% para mulheres no Fundo Partidário, ainda é tímida a presença delas na política e na disputa por espaços de poder.
Nas atuais eleições, são mulheres somente cerca de 13% das pessoas que concorrem às prefeituras e de 34% das que concorrem às câmaras municipais. No Rio Grande do Sul, a realidade é de 123 (9,11%) candidaturas à prefeitura, 236 à vice, e 10.957 (35,87%) à vereança.
::Mandatos coletivos: uma alternativa à participação política para grupos minoritários::
Precursoras em Porto Alegre
A história do Legislativo Municipal de Porto Alegre iniciou-se no ano de 1773, mas a participação das mulheres nesse espaço de poder levou quase dois séculos para acontecer. Dercy Furtado foi a primeira mulher a ser eleita para a titularidade na Câmara de Porto Alegre, em 1972, pelo partido Arena. Antes dela, a ex-vereadora Julieta Battistioli (Partido Social Progressista) havia atuado no legislativo municipal, em alguns momentos entre 1947 e 1951, como suplente. Militante comunista e operária, Julieta defendeu as causas dos trabalhadores, como melhoria salarial e cumprimento da licença-maternidade nas fábricas.
Já a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira como titular foi Teresa Franco, a Nega Diaba (de acordo com o site da Câmara, ela ganhou o apelido, pois quando ainda morava nas ruas, saiu em defesa de uma de suas amigas em um bar, cujo dono comentou “Essa nega é o próprio diabo”), entre 1997 e 2000, pelo PTB. Desempenhou o cargo de vice-presidente da Comissão de Defesa do Consumidor e Direitos Humanos nos anos de 1997, 1998 e 2000. Faleceu em 2001.
Após ela, só houve mais duas mulheres negras a ocupar o cargo, Saraí Soares (PT) e Karen Santos (PSOL), ambas como suplentes. Saraí elegeu-se vereadora suplente, entre 1997 e 2000, assumindo a vereança em diversas ocasiões. Teve forte atuação nas pautas em defesa do direito à moradia e dos direitos sociais da população negra. Faleceu em 2013. Karen continua ativa e concorre mais uma vez à uma cadeira na câmara.
A seguir, conheça as quatro candidaturas à Câmara de Porto Alegre, compostas somente por mulheres, que buscam mudar esse cenário através do trabalho coletivo.
::"Eles não. Tem que ser a gente mesmo": candidaturas coletivas se espalham pelo país::
Vamos Juntas com Reginete Bispo (PT)
O coletivo surgiu a partir de uma articulação de cinco mulheres negras que já há algum tempo vêm caminhando juntas. Todas as candidatas são oriundas do curso de formação política Dandaras, um dos projetos do Instituto Akanni, organização da qual Reginete Bispo é sócia-fundadora e que coordenou por muito tempo. Além da caminhada conjunta e de uma trajetória de ancestralidade, lutas e resistências, o que as une também é o combate ao racismo e a democratização dos espaços.
“A candidatura coletiva para nós representa muito isso, um coletivo de mulheres negras que trazem consigo toda uma história, uma trajetória de lutas, resistência, mas também de construção. Estamos propondo, a partir desse coletivo, ampliar o debate e democratizar o exercício de poder, em que as decisões deixam de ser monocráticas, de um único parlamentar. As estruturas partidárias, o racismo institucional, o racismo estrutural está orientado a nos impedir de ocupar esses espaços. Por isso o mandato coletivo vem com o objetivo de romper essa barreira que está estabelecida. Para nós representa a continuidade da nossa luta”, afirma a cientista social, especialista em Direitos Humanos (UFRGS), suplente do senador Paulo Paim e representante da chapa, Reginete Bispo.
Somam-se à Reginete, a Iyalorixá Nara de Oxalá, 47, empreendedora quituteira, coordenadora do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana no Rio Grande do Sul; Thayna Brasil, mãe do Pedro, graduada em Turismo com ênfase em Hotelaria (IPA Metodista do Sul), pós-graduada em Gestão de Negócios (SENACRS), afroempreendedora e idealizadora do Projeto Empreenda Real; Josiane França, mulher cega (deficiência visual adquirida por meningite), mãe de um casal, modelo profissional, integrante do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre, do Fórum Municipal de Mulheres, do 8M, e do Deficientes Visuais em Cristo – RS; e Karina Ellias, quilombola, mãe de três meninos, fundadora e dirigente da Associação do Quilombo dos Alpes, técnica em Enfermagem (Escola Profissional da Fundação Universitária de Cardiologia), agente comunitária em Saúde no Posto do IMESF Estrada dos Alpes.
Reginete destaca que o grupo quer um mandato que, para além de ser voltado a pensar e propor políticas públicas e fiscalizar o executivo em Porto Alegre, “também seja um mandato de fortalecimento da luta das mulheres, do fortalecimento da luta antirracista, no fortalecimento da luta LGBTQI+, no fortalecimento da luta em defesa dos territórios tradicionais, em defesa daqueles que nunca estiveram nos espaços de decisão e poder”.
Sobre fazer campanha neste período de pandemia, a cientista política diz que não tem sido nada fácil, mas as dificuldades são superadas de forma coletiva. Segundo ela, a campanha vem ganhando visibilidade fora da comunidade negra. “Isso para mim é a grande novidade, de que tem uma parcela significativa de não negros, hoje, comprometidos com a pauta racial e que reconhecem a importância de ter mulheres, e mulheres negras”, comenta.
De acordo com Reginete, 2020 é um ano fundamental para definir os rumos do futuro da cidade e do país. “Será a primeira eleição que o governo racista, fascista, machista do Bolsonaro enfrentará. O resultado das eleições também vai definir muito o cenário de 2022. São eleições básicas para gente retomar o processo democrático deste país”, opina.
“Nesse momento eu sou porque outras mulheres negras são. Estão enfrentando o mesmo desafio, com a mesma expectativa de que neste ano a gente consiga nesse país ocupar alguns espaços para começar a reverter esse quadro de ódio racial, de ódio à pobreza, de desprezo ao patrimônio público”, finaliza.
Coletivo Cuca Congo (PCdoB)
A defesa do serviço público de qualidade é uma das principais bandeiras do coletivo Cuca Congo, formado por quatro mulheres negras, professoras e servidoras públicas. A chapa é encabeçada por Luciane Congo, a Cuca. Professora da rede municipal, pedagoga, especialista em Educação Integral, sindicalista, militante do movimento de mulheres e movimento negro, mãe, preta e diretora licenciada do Sindicato dos Municipários e Municipárias de Porto Alegre (Simpa), ela iniciou a militância política ainda no movimento estudantil e conheceu as outras três integrantes da candidatura ao longo da vida acadêmica e profissional.
Segundo Cuca, as quatro integrantes possuem uma longa caminhada na questão da educação antirrascista em Porto Alegre. Além dela, fazem parte do coletivo Carolina Chagas Schneider (professora da rede municipal, pedagoga dos anos iniciais, pesquisadora, mãe, filha, esposa, negra); Estela Benevenuto (professora da rede municipal de Porto Alegre, historiadora e pesquisadora. Mestre e doutoranda em História na UFRGS); e Carmem Jecy (professora de Educação Física aposentada, mãe, mulher, preta).
Ela conta que a proposta de candidatura coletiva veio a partir da avaliação dos companheiros e companheiras de partido de ter uma candidata mulher, negra, servidora pública e professora. “Fomos pesquisar e a cada notícia que tinha sobre isso, dessas experiências, mais a gente se convencia de que era um caminho muito frutífero a constituição de uma candidatura coletiva. Fortalecia nossa pauta, além de ser algo muito comum entre nós, construir coletivos. Nós entendemos, inclusive, como um valor civilizatório e afrobrasileiro a questão da coletividade.”
As principais pautas do coletivo são educação, serviço público e mulheres negras. Segundo Cuca, o mandato não se restringe ao que pensam as quatro. Desde o início as propostas foram construídas em diálogo com “colegas da educação, servidores públicos, mulheres negras, afroempreendedoras, mulheres do axé”. Para ela, a candidatura coletiva fortalece e amplia o nosso entendimento. “Dialoga com uma concepção partilhada, de visão de poder, de representação, rompe uma cultura mais individualizada, personalista. Não está se votando numa pessoa, está se votando num projeto, numa ideia de partilha de poder e representatividade.”
Cuca afirma que a campanha está sendo extremamente positiva. “Só o fato de tu dizer que é coletivo, as pessoas já se inserem de forma diferente nesse projeto. É um mandato que vai se dar de forma compartilhada com todos e todas que constituíram conosco até agora as propostas. Então os movimentos desse coletivo vão ser constituídos também de forma compartilhada”, explica, reforçando que a ideia é aproximar as pessoas do cotidiano do poder Legislativo.
A candidatura busca ocupar os espaços historicamente restritos a homens brancos. “As mulheres são metade da população, as mulheres negras são 25%, já que a população negra é mais que metade da população brasileira. Nós as mulheres somos sub-representadas nos espaços de poder, no legislativo, no executivo ainda mais. Nós precisamos ocupar esses espaços para levar nossas pautas e ter a possibilidade de garantir políticas públicas que atinjam nosso povo”, pondera.
Como bem lembra, são as mulheres, as mulheres negras e a população negra a maior dependente do serviço público, por ser a parcela da população mais vulnerável. “Nós vivemos uma Porto Alegre que tem a maior desigualdade racial do Brasil, desigualdade educacional, e nós precisamos ocupar espaços para poder buscar caminhos para superar essas desigualdades. O racismo estrutural opera, é determinante para que a gente não esteja nesses espaços. Então ainda temos muito caminho para andar, por isso que a gente tem propostas de políticas afirmativas de forma transversal, para que a população negra tenha acesso a todos os serviços e políticas”, conclui.
Mulheres de Luta (PSOL)
A candidatura denominada Mulheres de Luta é formada por um coletivo da periferia da zona Sul da capital que nasceu da luta por moradia. O coletivo, bem como a candidatura, é liderado pela Jaqueline de Castro, conhecida como Jaque da Tinga, em referência ao bairro Restinga, um dos maiores e mais populosos da cidade. O grupo se formou justamente nessa comunidade, quando surgiu a necessidade de montar uma associação de moradores para reivindicar condições básicas de vida.
Também compõem a candidatura coletiva Kathielly Pereira, Zoé Braz, Clarice Silva e Rosane Pereira. Juntas, atuam na Associação de Moradores Vida Nova, onde Jaque é presidente. Na associação foi onde se conheceram, principalmente no processo de regularização fundiária da comunidade em que vivem. “Quando chegamos na comunidade não tínhamos nada. Foi necessário lutar junto com alguns parceiros que fizeram um trabalho voluntário para termos acesso a tratamento médico (por exemplo)”, conta Jaque.
Diversas pautas se demonstravam urgentes e necessitavam de mobilização popular para serem efetivadas. Entre elas, destacam a necessidade de um posto de saúde, a falta de água, direitos para os trabalhadores informais, etc. Porém, uma pauta que parece receber especial atenção do coletivo é o direito à terra e à moradia. Jaque conta que parte da trajetória de formação do coletivo Mulheres de Luta se deu em meio à atuação no Conselho Regional por Moradia Popular, onde ela e outras integrantes do coletivo são conselheiras.
Jaque afirma que a união aumenta as forças do grupo, muito além do que se poderia alcançar individualmente. Com a aproximação do período eleitoral, o coletivo enxergou na candidatura coletiva uma forma de seguir na luta. Além disso, na candidatura convencional considera que se gasta tempo buscando quem transmita as ideias adiante, sendo que na forma coletiva já se tem um grupo disposto a trabalhar em conjunto, cada integrante participando a partir da sua área de atuação.
Quando pessoas com objetivos semelhantes se unem em uma equipe, as possibilidades de resistência ao sistema aumentam: “A partir do coletivo, não é somente a minha voz, é a voz da mulherada toda. Nós carregamos o mesmo sofrimento, o mesmo despeito do poder público, mas sonhando e tendo os mesmos ideais”.
Jaqueline ressalta o quão bonita tem sido a caminhada do coletivo até aqui. Ela relata que, com o começo da campanha, tem ouvido de conhecidos e outras pessoas que, finalmente, encontraram a possibilidade de serem representadas por alguém de dentro da comunidade, da periferia. Relata também que, mesmo vindo de um lugar onde se pisa no barro, muitas vezes quando chega no asfalto as pessoas já a conhecem, pois as vozes chegaram antes.
Nós, Mandato Coletivo (PSOL)
Outra candidatura coletiva que reúne um grupo de mulheres em Porto Alegre é a Nós, Mandato Coletivo. O grupo conta com sete integrantes e se define como de “mulheres lutadoras, em sua maioria negras, somos diferentes, moramos em bairros diferentes, mas temos objetivos comuns”. As integrantes têm na educação sua pauta de unidade.
Uma das integrantes do coletivo, a moradora do Jardim Leopoldina, na zona Norte da Capital, Laís Camisolão, se define como mulher negra, mãe de dois rapazes, municipária e coordenadora de assuntos de aposentadoria do Sindicato dos Técnico-administrativos em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e Instituto Federal do Rio Grande do Sul (Assufrgs). Ela explica que o grupo trabalha junto há muitos anos. “Nós somos um grupo de companheiras que se reúne toda semana para planejar, apoiar as lutas, mobilizações, fazer ações de solidariedade como agora na pandemia.”
Também compõe o grupo a professora de Geografia da rede municipal Simone Flores, a professora da rede estadual, atual vice-diretora do Colégio Emílio Massot e ex-vice-presidenta do CPERS, Neiva Lazzarotto; a mulher negra, trabalhadora terceirizada na UFRGS, mãe solteira de quatro filhos e moradora de ocupação na Zona Leste, Adriana Cunha; a dirigente do Sindicato dos Servidores Técnico-administrativos em Educação da UFRGS, UFCSPA e IFRS (Assufrgs) e ex-vereadora de Porto Alegre, Berna Menezes; a servidora da UFRGS e coordenadora da Assufrgs Tamyres Filgueira; e a estudante e estagiária Victória Miranda.
Foi a partir dessa experiência de trabalho coletivo que surgiu a ideia de apresentar um mandato coletivo. Conforme Laís, o grupo atua coletivamente em sindicato, associações e lutas pela defesa de direitos dos trabalhadores. No atual momento da pandemia, apoia a greve sanitária dos professores municipais “como preocupação com a saúde dos familiares e nossos alunos. O prefeito está obrigando retorno das escolas mesmo sabendo que mais de 70% da população é contrária a isso”.
“Nós estamos sempre estimulando que o povo se organize, se mobilize pelos seus direitos. Não tem nenhum salvador da pátria. O salvador da pátria é o povo, é a juventude organizada nos bairros, nas categorias, no município, no estado. Esse é o nosso trabalho, colocar nossa disposição de mobilização e de luta para organizar o povo para que ele tenha voz e poder na sociedade”, frisa.
A representante do coletivo avalia que o povo está cansado da velha política. “O povo foi enganado muitas vezes com falsas esperanças e com pequenas conquistas e não conquistas de verdade, com democracia de verdade. Democracia é direito à habitação, saúde, educação, emprego, enfim dignidade!” Na sua avaliação, o mandato coletivo não vai resolver esse problema, mas pode mostrar que as saídas são coletivas e não de indivíduos: “Não é o grande poderoso vereador, o grande poderoso deputado, grande poderoso presidente da República, senador, prefeito ou governador. Somos nós! Nós de forma organizada, coletivamente que podemos fazer a mudança!”
Neste início da campanha, o Nós, Mandato Coletivo tem registrado apoio e carinho muito grande pela população. Laís conta que as pessoas se interessam, perguntam o que é, gostam da ideia e acham importante. “A ideia não é nossa, o PSOL já tem três mandatos coletivos funcionando: São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco”, recorda.
Para ela, é importante a participação das mulheres na política, principalmente as mulheres negras. “Não é uma revolução, mas começa a apresentar alternativas à população daquela ideia do super poderoso indivíduo sobre o coletivo. Nós achamos que o coletivo tem que estar acima dos indivíduos”, conclui.
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Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko