Elementos como imparcialidade e vinculação à constituição podem ser violados por aplicadores da lei
Por Martonio Mont'Alverne*
Para os setores progressistas da América do Sul, o mês de outubro não poderia ser mais alvissareiro. A vitória significativa do Movimento ao Socialismo boliviano, o MAS, sobre o golpismo aberto contra o ex-presidente Evo Morales e que contou com decisivo apoio de forças políticas internas e externas à política boliviana, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), é a primeira das boas notícias.
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A segunda veio do Chile. Igualmente com inquestionável vitória plebiscitária, os chilenos desencadearam o processo que escreverá uma nova constituição para o Chile. Trata-se da despedida do último bastião retórico da ditadura de Pinochet: a constituição em vigor desde 1980. O Chile terá uma assembleia constituinte exclusiva e com garantia do equilíbrio de gênero, para desespero de conservadores e do obscurantismo religioso.
Nos dois casos, as sociedades foram protagonistas de seus destinos. Aceitaram o desafio da democracia em seus espaços territoriais e fizeram suas escolhas. Ratificaram sua inclinação, no mínimo, pela social democracia, o que se traduz na reprovação do liberalismo e do dependencismo econômico.
Diante de um quadro tão positivo para a democracia sul-americana, caberia algum receio? Sim, infelizmente. A dúvida recai sobre o poder judiciário. Não se deve esquecer do papel do poder judiciário não somente durante os tempos das ditaduras militares. Não há como perder do horizonte que o poder judiciário foi colaborador de vários golpes ocorridos no Continente: Bolívia, Brasil, Equador são exemplos mais recentes.
Evo Morales precisou deixar seu país e exilar-se na Argentina, assim como Rafael Correa (ex-presidente do Equador) encontra-se até hoje na Bélgica, interditado de seus direitos políticos. Lula foi preso e não foram poucas as vozes que o aconselharam a deixar o Brasil antes de sua ordem de prisão. O esforço judicial é para deixar essas legítimas lideranças fora do jogo eleitoral e político. Há um consenso que alcança aqueles que se reivindicam democráticos: “sou a favor de eleições, desde que Correa, Lula ou Morales não participem de eleições”.
O judiciário geralmente se encarrega de cuidar da aparência de estado de direito e o devido processo legal para decisões judiciais que perseguem, excluem ou prendem tais lideranças. Definir tal fragilidade institucional como democracia tem sido o exercício predileto a que jornalistas e intelectuais de Vichy se dedicam todos os dias.
A reflexão democrática e política sobre o poder judiciário não pode sair da agenda desta nova onda que se apresenta neste ano pandêmico de 2020. Sem a reestruturação democrática da organização burocrática do poder judiciário, sem o esforço para a formação de uma cultura democrática neste poder não haverá democracia que se consolide. No poder judiciário encontram os atores reacionários, internos e externos, a chave para sua atuação.
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Do ponto de vista do discurso político, exige-se muito para que se explique aos cidadãos que elementos centrais como imparcialidade, vinculação à constituição democrática podem ser violados pelos aplicadores da lei. O halo de justiça que paira sobre o poder judiciário tem impedido que todos compreendam e assimilem que o poder judiciário não cai do céu, que possui seus interesses econômicos e políticos no âmbito da burocracia e do estado, e que ele é também forjado politicamente e assim atua.
Não que tal quadro não apresente alternativa: há, sim, propostas que redirecionam o poder judiciário e seus integrantes à cultura democrática. O desafio é compreender esse ponto e implementá-lo. Muitos governos da chamada “maré rosa” sul-americana iniciada no começo do século XXI não aceitaram, ou se recusaram a enfrentar o dilema, e tiveram a ilusão de que o ganho eleitoral se estenderia ao espaço judicial.
A objetividade dos fatos e o tempo provaram o engano dessa análise. Nessa recusa, tiveram a fonte de todos os martírios da democracia que ajudaram a construir. É aqui que se pode aprender com os erros, e compreender definitivamente que a renovação do poder judiciário integra a agenda de reconquista da democracia.
*Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é Professor Titular da Universidade de Fortaleza e Procurador do Município de Fortaleza. Jurista membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.
Edição: Rogério Jordão