As crônicas do cotidiano nunca foram vistas como um gênero literário de maior importância, já dizia Antônio Cândido ao nos explicar porque cronistas nunca tiveram o mesmo brilho que romancistas e poetas. Ao menos, ele nos defende ao dizer que assim, talvez com mais força, o porquê da crônica se aproximar tanto da vida real.
:: Entenda: Governo do DF expulsa ambulantes violentamente para dar cara de shopping a rodoviária ::
Já nós, subversivos por natureza (e por ofício), pecamos por não sabermos mesmo o nosso lugar no mundo. O subversivo é acima de tudo um descontente com a ordem posta das coisas, o subversivo é o contente no caos, porém não é qualquer caos. É quase como um instinto primitivo que nos compele a transgredir a normalidade, de não aceitar papéis previamente escrito por outrem a nós e então nos regozijamos no desafio de sermos o que não se esperava de nós, rimos mesmo na desgraça e choramos quando tudo o que se esperava de nós era o riso. E nos apaixonamos pelas pessoas invisíveis aos olhos deslumbrados do capital, que para nós, nunca serviu para nada que não fosse para apagar e oprimir.
E o que me proponho a fazer é contar essas histórias que poderiam até ficar no apagamento sistêmico, de vidas tantas já solapadas por esse esquecimento capitalista intencional, se não fosse eu mesma uma mulher subversiva que me ponho a escrever de um lugar raramente ocupado por mulheres, esse lugar da flânerie, da mulher que vive a cidade e que a experiência numa dimensão geralmente negada as mulheres. Mas que como boa transgressora de normas que sou, não apenas vivo a cidade como também escrevo os meus olhares não pacificados sobre ela.
Aliás, escrevo exatamente por isso: em mim quase nada nunca é paz. E não há paz em mim, porque tampouco há paz na cidade, e eu começo onde a cidade termina e termino onde a cidade começa. O que, diga-se de passagem, nessa cidade em constante guerrilha urbana, esse não é, ainda bem, um privilégio só meu. E se a cidade, assim como a sociologia, é um esporte de combate, com Brasília essa disputa não seria diferente. Brasília nasce do pensamento cartesiano de Lúcio Costa, mas o coração de Brasília é pulsado veia por veia na Rodoviária do Plano Piloto, por gente comum, gente de verdade, gente muito mais bonita do que quem ocupa os Palácios dos Poderosos e afins.
É na vivência do cotidiano da Rodoviária que eu vejo que não fomos vencidos pelo projeto de colonização violenta que nos propõe a todo momento, é através da humanidade contraventora dos meus personagens da vida real que eu me encontro na verdade, nem caricata e nem burlesca, do meu país. Da cidade projetada que jamais imaginou, nas palavras do próprio Lúcio Costa, que a Rodoviária seria o cerne da Bastilha brasiliense com seus camelôs e ambulantes que a todo momento bradam suas gírias ferozes de melhores preços, melhores mercadorias e clamores de sobrevivência.
Essa organicidade da cidade real hoje se encontra em perigo pelos desejos de "shoppingzação" da vida cotidiana de quase 700 mil transeuntes que passam pela Rodoviária do Plano Piloto. O projeto não é nada diferente daquilo que já conhecemos há séculos na história das cidades, um grande plano higienizador e "embranquecedor" das regiões centrais. O Barão de Hausmann, junto com Pereira Passos, que me perdoem, do inferno dantesco onde sem dúvida do ponto de vista judaico-cristã, que eu definitivamente não tenho, se encontram agora. Esse não é nem mesmo, mais um plano minimamente original.
A vida transgressora, todavia, a despeito do desejo dos tecnocratas de plantão, essa força tamanha que sujeito de farda algum apreende, ela tem essa mania bonita de escapar entre as mãos. De libertar sujeitos outros que não se encontram nos cafés chiques da Asa Sul, muito menos nos lugares descolados da Asa Norte, mas nos tapetes estendidos aos montes todos os dias na Rodoviária. As histórias dos meus personagens reais que alumbram os meus olhos de amante da vida dos comuns que me contam de sobrevivências que se relatas na sua totalidade não caberiam nas poucas folhas que me cabem. Escolho assim, as minhas mais tocantes vivências até agora e espero, por conseguinte, cativar o meu leitor na mesma medida que a qual fui cativada.
Helena tem quatro filhos, trabalha como camelô na Rodoviária há 21 anos. Ela não gosta muito que a gente diga que ela tem quatro filhos, diz que vamos espantar os pretendes dela e assim, talvez ela nunca arrume o marido rico que ela quer. Um dia, voltando de uma reunião na Câmara Legislativa, me queixei de sentir saudades de uma festa junina, já que em ano de pandemia eu não havia visto nenhuma. Ela riu de mim e disse que ela não era muito boa em cumprir promessas, ou regras, não só tinha ido para uma boa festa junina como tinha bebido todas, mesmo tendo prometido para o pastor que não ia mais beber.
A Helena é a cara explícita da galhofa, chega a rir na cara do perigo ao desafiar as autoridades do Estado Policial instalado na Rodoviária apenas para oprimir tantos outros como ela mesma. Mas ela é o espirito vivo da malandragem brasileira, aponta as contradições no autoritarismo tupiniquim que encontra gozo nos seus pequenos poderes, e ainda os convence de que uma boa ideia mesmo é lhes fazer pagar uma nova cesta básica para ela sobreviver, afinal são os mesmos fardados que todos os dias lhe impedem de conseguir trabalhar. A verdade é que essa felicidade transloucada da Helena é a única arma quente que ela possui para enfrentar a precariedade da vida pandêmica a qual foi submetida, com muita escassez para todos os lados e filhos que dependem da sua irreverência desafiadora para dar conta de uma realidade a qual ninguém deveria ser submetido.
Outro dos meus personagens que me fascina é o Joan, ora vendedor dos próprios quadros, ora funcionário da Galega, Joan não se enquadra facilmente em estereótipo algum, de uma inteligência fina, nos relata indignado que os espaços centrais de Brasília nunca lhe cabem, seja de dia como vendedor ambulante, seja à noite como membro da comunidade LGBTQIA+, não importa quem o Joan seja, ele ultraja sempre o projeto hetero-cisnormativo, majoritariamente branco e preconceituoso de cidade que a elite de Brasília vislumbra para esse espaço, e teima em chamar de revitalização, quando o que mais se tem ali é vida e vida em abundância. O Joan, não se curva, e diz de boca cheia sempre que tem a oportunidade, que acredita que a vida é sobre ser, e não sobre ter, para àqueles que entendem a vida capitalista como uma religião, a verdade do Joan parece estar a léguas de ser compreendida, e cá entre nós, eu fico mesmo é com a verdade dele.
E para quem ainda tem dúvidas sobre as curiosas dinâmicas da vida a rés do chão, que nunca deixa de me surpreender, a juventude rodoviarista se entrelaça em nós quase tele dramatúrgicos, que ora me enlouquecem, mas que invariavelmente se vistos através de outras perspectivas são mesmo risíveis como quase todo drama juvenil. A verdade é que existe uma espécie de dinâmica amorosa entre os trabalhadores precarizados, sejam eles jovens camelôs ou jovens terceirizados contratados pelo DF Legal (órgão que geralmente apreende as mercadorias dos camelôs), é conhecido como um fetiche local, as garotas vendedoras ambulantes sonham em namorar os jovens fiscais, e os fiscais a todo momento caem de amores pelas jovens, que em tese eles deveriam fiscalizar. É o gozo pelo proibido que mora nas relações que o Estado patriarcal acha ser capaz de tutelar, quase como uma quirela shakespeariana. Que vira e mexe acaba em cenas amor e de ciúmes tórridas. Como quando os casais se misturam e quem costumava cara namorar um cara do apoio (fiscais do DF Legal) acaba namorando um cara que é camelô, é então que as fofocas rolam soltas, fazendo sorrir e chorar os envolvidos em cada uma dessas situações que por vezes ameaça implodir a coletividade. Mas que nós telespectadores torcemos bravamente, para que acabe tudo bem no final.
Quem proporcionalmente sempre me encanta é Cacá, outra irreverente líder comunitária nata, que incredulamente é avó de um menino de 8 anos, quando ela mesma, tem apenas 40 anos. Mas ela não se faz de rogada, ela não é apenas avó, é mãe, de um jeito muito próprio, ela se faz mãe de toda aquela molecada que não é apenas carente de meios de sobrevivência, mas carente de afeto e de tutela.
Seja camelô ou, como ela mesma chama, os meninos do apoio, a história da Cacá está sempre as voltas de puxar a orelha de Xuxu (a sua própria filha, também trabalhadora ambulante) e mediar os conflitos da juventude, enquanto carrega nas costas, junto com a Josy, a representatividade de um dos núcleos de trabalho organizados da rodoviária. E acolhe não apenas os mais novos, como também os mais velhos, que cansados de uma luta que já dura anos a fio, entra governo e sai governo, depositam na Cacá a força que eles mesmos já não aguentam mais suportar.
E se tem alguém que orgulhosamente não sabe mesmo qual é o seu lugar no mundo (ainda bem), esse alguém é a Josy. Dona de um rastafári imponente e de uma eloquência não usual, a Josy é uma revelação como uma força militante que raramente eu vi alguém ser capaz de desenvolver e de descobrir em si mesma em tão pouco tempo. Ela filma de maneira incansável as violações policiais de direitos humanos todos os dias, e é capaz de dizer o nome dos policiais que as cometeram com uma rapidez impressionante.
Aos 35 anos, técnica em radiologia, mãe de um garoto de 10 anos e de uma bebê de apenas um ano de idade, Josy fala sem identitarismos baratos qual é o lugar da mulher negra na nossa sociedade, e o que significa vivenciar esse lugar na pele, para muito além da retórica empolada de muitas na internet e nas redes sociais. Ela é a cara da representatividade real da Rodoviária, e com uma potência própria de quem sabe que é preciso ocupar espaços para sobreviver, a Josy deixa qualquer Spivak no chinelo, ao dizer que sim, o subalternizado, pode sim, falar.
Além das pessoas já relatadas, quem me ensina a olhar o mundo para além do meu olhar colonizado (olhar que todos nós temos, em maior ou menor medida) é Osmane, um imigrante senegalês que representa o seu núcleo de vendas no calçadão quase com o mesmo afinco e representatividade como que o faz ao falar do seu país e do seu povo. A força do Osmane, não reside na sua impressionante robustez física, muito embora à primeira vista, seja exatamente isso que impressione, mas na integridade na qual ele relata quem é o seu povo.
Ao ouvir Osmane falar do Senegal, foi a primeira vez que eu escutei alguém dizer com tanta convicção o quanto o Norte dele, era mesmo o hemisfério Sul, o seu país, a sua cultura, a sua comida e a sua gente. Osmane, me ensina todos os dias mais um pouquinho sobre um país cujo discurso hegemônico me impediu de conhecer, me conta da capital Dacar, mas também da sua cidade natal Kébémer e da fascinante ilha de Gorée, um lugar paradisíaco que os Estados Unidos teima em querer comprar e o Senegal teima em não querer vender, para o bem da consciência deles que a ilha não se torne uma outra Cuba, pré-revolução.
É através das histórias deles que encontro a minha, a de amante profunda da cidade, porém não qualquer cidade, mas a cidade real, a cidade não projetada, a cidade que não imaginou os pisos do calçadão da Rodoviária e dos terminais de embarque coalhados de tapetes com mercadorias que para essas pessoas significam muito mais do que apenas o pão de cada dia, mas que abrigam o sonho, o devaneio, o riso e o deboche. E pelo direito a essa cidade, que a luta não pode ser abandonada ou perdida, meus personagens da vida real, são isso mesmo, reais. E é de fome perpetrada pelo Estado que nós estamos falando.
Quando o Estado aponta o seu aparato bélico e violento justificados através de novas regras (Ordem de Serviço número 135) inventadas de maneira torpe para reivindicar o seu desejo de mercantilização da vida cotidiana, são essas vidas que são violentadas, vidas cujas as histórias já não são de fácil deglutição para os estômagos mais sensíveis, mas que são genuínas, são vidas de poder mágico e fascinante que tem a capacidade de nos lembrar todos os dias de um Brasil que o poder vigente despreza e deseja apagar e que eu como boa subversiva que sou, me recuso terminantemente a esquecer. A despeito dos desejos do Estado do Distrito Federal, a Rodoviária real resiste, e nós munidos apenas da nossa coragem, resistimos junto com ela.
*Anie Caroline Figueira é arquiteta e urbanista e diretora de assuntos trabalhistas do Sindicato dos Arquitetos do Distrito Federal.
Edição: Rodrigo Chagas