Vendedores ambulantes têm sido enxotados pela Polícia Militar (PM) da Rodoviária do Plano Piloto, no centro de Brasília, para dar espaço a corredores comerciais “clean” e lojas envidraçadas com ar de shopping center.
A substituição dos trabalhadores por um ambiente “moderno” atende ao plano do Governo do Distrito Federal (GDF) de conceder a administração do terminal à iniciativa privada. A proposta prevê um contrato com duração de 20 anos e investimento de R$ 190,6 milhões em obras.
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O projeto de reforma já está pronto – tem laje “steel deck”, venezianas em alumínio, vidros temperados incolores, mirante de passarela subterrânea e jardineiras externas com 12 espécies diferentes de árvores. Nos croquis, no entanto, os ambulantes são apagados e substituídos por pessoas de roupa social.
Para retirar os camelôs, a administração de Brasília expediu a Ordem de Serviço número 135, no fim de 2019, proibindo o comércio informal em áreas públicas do Plano Piloto. A justificativa é que a presença deles põe em risco o patrimônio histórico do Conjunto Urbanístico de Brasília (CUB). Nenhuma alternativa foi apresentada aos trabalhadores.
A administradora do Plano Piloto, Ilka Teodoro, afirma que a medida apenas cumpre a legislação já antes vigente em relação ao comércio informal. Segundo ela, por não existir lei que permita a presença de ambulantes na rodoviária, não é possível autorizá-la. Leia a explicação completa da administração.
Há cerca de dois meses, a ordem é cumprida mais à risca. Segundo os ambulantes, desde então a Polícia Militar age com violência e pouquíssima conversa, quase que diariamente. Eles fazem rondas, pisam no pano com os produtos, seguram os trabalhadores à força e chamam por rádio o DF Legal, órgão responsável por apreender as mercadorias.
“Tudo isso é um grande projeto higienista de elitização das áreas centrais do Plano Piloto”, diz a arquiteta e urbanista Anie Caroline Figueira, diretora de assuntos trabalhistas do Sindicato dos Arquitetos do Distrito Federal.
“A Polícia Militar está descendo o sarrafo neles. Está, inclusive, ultrapassando aquilo que é de atribuição da Polícia Militar, está apreendendo mercadoria”, afirma Anie, que faz parte de um grupo da sociedade civil que fiscaliza ações repressivas na rodoviária.
A vendedora ambulante de roupas Claudiane de Nazaré relata que a rodoviária virou “um inferno”. “Ultimamente, a gente quase não consegue trabalhar. Geralmente, trabalhamos no horário que eles vão almoçar, antes de eles chegarem, de manhã, ou depois que eles vão embora, à noite. Durante o dia, são poucos que se aventuram”.
Ela diz sentir muito medo dos policiais. “Muito [medo]. Infelizmente, é aqui que a gente trabalha. Eu trabalho aqui há quatro anos e é assim que eu levo o sustento para a minha casa. Meu marido está desempregado, minha filha desempregada, então trabalhamos aqui porque realmente precisa. Dá muito medo. Às vezes a gente não tem nem coragem de colocar o nosso pano para trabalhar”, lamenta.
Hoje, quando ela olha a polícia, entra em pânico.
Claudiane, o marido e a filha mais velha, de 23 anos, trabalham como camelôs na rodoviária. Ela conta que os filhos menores, de 14 e 11 anos, acompanhavam a família, mas agora são obrigados a ficar em casa após se chocarem com a violência policial contra o pai.
“Um dia eu vim com ela [a filha de 11 anos] e ela viu a ação da polícia. Inclusive, tinham pego meu marido. Ela entrou em desespero, começou a chorar, chorar, desesperada. Hoje, quando ela olha a polícia, entra em pânico”.
Josielma Amaral Nunes, a Josy, outra vendedora de roupas na rodoviária, narra outras cenas de agressão. “A gente teve até um confronto com eles, porque tinha uma amiga nossa que vende Açaí. Enquanto ela foi comprar um gelo, deixou a filha dela, de 14 anos, no carrinho. Foi quando a polícia veio e bateu com a moto na perna dela [a filha], derrubou a menina no chão. A mãe dela saiu daqui presa, porque mãe nenhuma vai aceitar isso”.
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Josy lembra que, em outra ofensiva da PM, um ambulante paquistanês só viu alternativa no suicídio após ter suas mercadorias apreendidas.
“Fecharam a rodoviária, fizeram um cordão de policiais. Um policial segurou o nosso amigo paquistanês e tomou a mercadoria dele. Esse nosso amigo ficou desesperado e tentou o suicídio. Tentamos convencer ele a não fazer isso, e ele chorando, dizendo que era a única coisa que ele tinha. Nós chegamos no limite”, diz ela.
A vendedora afirma se sentir enganada pelo governador Ibaneis Rocha (MDB), que prometeu, durante a campanha de 2018, que regularizaria a profissão dos ambulantes e lhes daria um espaço para trabalhar. “Eu, como mãe de família, me sinto injustiçada, porque nós votamos nesse governador”.
Nós chegamos no limite.
Preconceito
Hoje, cerca de 300 famílias tiram sustento das vendas ambulantes na Rodoviária do Plano Piloto. De acordo com Anie Figueira, há um padrão lá: a maioria é de mulheres, negras, periféricas e muitas vezes mães solo. Também há muitos imigrantes do continente africano, principalmente senegaleses.
Ela identifica racismo e preconceito na decisão do governo. “O processo de desumanização passa por achar que existem pessoas ali que são inferiores a outras pessoas, que também vivem aquele espaço. A verdade é que não são. Aí eles se utilizam de um discurso de segurança pública que não é verídico para respaldar o seu posicionamento elitista e preconceito com aquelas pessoas”.
Para a arquiteta e urbanista, o processo de retirada dos ambulantes fere o direito fundamental à cidade. “Brasília é a cara da segregação espacial e urbana. Você vai aprofundar uma crise, quando essas pessoas só querem trabalhar, só querem morar, só querem existir? Que cidade é essa? É para quem?”, questiona.
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Estudo contradiz ordem
Acuados pela violência, os trabalhadores ambulantes pediram ajuda ao Sindicato dos Arquitetos de Brasília, que se propôs a fazer um estudo técnico sobre as leis aplicadas à área da rodoviária.
A análise foi feita em uma construção coletiva de profissionais de arquitetura e urbanismo, especialistas e doutores em patrimônio histórico e planejamento urbano, com assessoria jurídica.
O resultado aponta que a atividade ambulante não afeta o tombamento da cidade e, pelo contrário, pode até ser considerada como patrimônio imaterial da cidade, visto que é resgata a história e memória da capital.
“Essa [a ordem de serviço] é uma norma infralegal que não se sustenta nas normas de patrimônio. Ela usa como argumento o patrimônio, mas não se sustenta em nenhuma norma superior do patrimônio histórico, por isso que concluímos que essa norma deve ser revogada”, defende Luciana Jobim Navarro, coordenadora do Sindicato dos Arquitetos.
Essas pessoas só querem trabalhar, só querem morar, só querem existir.
O estudo foi levado à Secretaria de Cidades do Governo do Distrito Federal em 6 de outubro, mas, desde então, várias reuniões para discutir a ordem com o secretário-executivo da pasta, Valmir Lemos de Oliveira, foram desmarcadas.
“Eles estão protelando. Estão simplesmente colocando para frente com uma promessa vazia de que vão analisar e, ao mesmo tempo, continuam massacrando os ambulantes que tentam trabalhar em um momento de pandemia”, ressalta Luciana.
Outro lado
Questionado pelo Brasil de Fato sobre as ações violentas e a validade da Ordem de Serviço, o Governo do Distrito Federal afirmou que as ações servem para "organizar o espaço" e evitar o comércio ilegal de produtos para não prejudicar quem paga imposto. Leia a resposta completa:
"A PMDF informa que as ações realizadas na Rodoviária de Brasília são fruto de um trabalho conjunto com outros órgãos, no intuito de organizar o espaço, evitando o comércio ilegal de produtos, que prejudica o trabalho dos comerciantes que pagam os impostos.
Além disso, o comércio irregular dificulta o fluxo de pedestres na Rodoviária, uma vez que os ambulantes ocupam o espaço de forma desordenada. Por fim, a PMDF ressalta que atua há anos no local, com ações pautadas na legalidade.
Com relação à pergunta sobre se a retirada dos ambulantes atende ao processo de concessão do complexo da rodoviária à iniciativa privada, a Secretaria de Transporte e Mobilidade informa que a concessionária poderá negociar auxílio para os ambulantes".
Em outra nota enviada, sobre o documento apresentado pelo Sindicato dos Arquitetos, o GDF disse que "os órgãos estão fazendo as análises dentro das atribuições legais pertinentes a cada um. Por se tratar de documento técnico, a Secid [Secretaria de Estado do DF] não tem como definir o prazo para a conclusão dos trabalhos". Segundo o governo, o processo de análise é aberto e pode ser acompanhado na internet, com o número de processo 04018-00001434/2020-71.
Por fim, a Secretaria de Desenvolvimento Social informou que, em casos de retirada de ambulantes "geralmente, as equipes da Sedes não são acionadas. Mas destaca que todas as 27 unidades de Centro de Referência de Assistência Social (Cras) do DF estão funcionando, por teleatendimento, para que as famílias em situação de vulnerabilidade social possam ter acesso aos serviços, programas e benefícios assistenciais".
Edição: Rodrigo Chagas