No dia 22 de outubro, o chanceler Ernesto Araújo repudiou as críticas à política externa do governo Bolsonaro durante formatura de diplomatas do Itamaraty. Na ocasião, o embaixador citou que na última Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU), somente o presidente americano Donald Trump e Jair Bolsonaro falaram em liberdade.
“O Brasil fala em liberdade através do mundo, se isso nos faz ser um pária internacional, então que sejamos um pária”, defendeu o embaixador.
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Entretanto, na outra ponta, trabalhadores do Itamaraty estariam buscando atenuar os impactos do isolamento do país diante do alinhamento estreito com o trumpismo e da defesa de pautas conservadoras em fóruns multilaterais.
É o que afirma o diplomata Antonio Cottas Freitas, que atua no ministério das Relações Exteriores desde 2004, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato. Segundo ele, os que servem o Estado na carreira diplomática sentem diretamente as consequências da atuação ideologizada de Araújo e recebem as decisões políticas com preocupação.
Atualmente se criam conflitos por determinações que contrariam abertamente o interesse nacional
“Aqueles que estão no exterior representam essa política externa, representam o Brasil lá. São cobrados e questionados. É difícil. Por um lado, há o dever de cumprir as instruções e ser um bom profissional. Pelo outro, há um conflito e não só de consciência política. Ser um governo de direita e a pessoa ser mais à esquerda, por exemplo, isso acontece… mas atualmente se criam conflitos por determinações que contrariam abertamente o interesse nacional”, diz Freitas.
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“É difícil. Mas tem que se resignar e procurar, no limite das possibilidades, atuar para minimizar danos. É a redução de danos na ponta, quando possível. Mas a estrutura do Itamaraty não facilita”.
Em sua carreira diplomática, o servidor do Itamaraty atuou em Brasília, Pequim e Washington. Desde 2015 está em licença não remunerada e se re-apresentará ao órgão em 2021.
Sobre a declaração do chanceler há uma semana durante formatura do Instituto Rio Branco, Freitas ressalta que ser um pária internacional tem consequências concretas para a população, para empresas e outros interesses nacionais.
Não é positivo ser pária internacional, excluído das rodas enquanto países definem fluxos de comércio, investimentos e parcerias
A exclusão de fluxos de investimentos, dificuldades em negociações comerciais e no relacionamento com países vizinhos, empecilhos que não existiam, sublinha o diplomata, devem se intensificar.
“Não é positivo de maneira alguma ser pária internacional. Estar excluído das rodas, ficar sozinho em um canto enquanto países que somam a maior parcela do PIB mundial estão no outro negociando normas e regras internacionais, definindo fluxos de comércio, investimentos e parcerias”, diz Freitas.
Na mesma ocasião, Ernesto Araújo teceu críticas ao multilateralismo e à diplomacia das gestões anteriores e disse que o Brasil estava perdendo a sua identidade antes de o presidente Jair Bolsonaro assumir o mandato pois ficou "muito tempo dentro de si mesmo, cantando glórias passadas, lustrando troféus antigos e esquecendo-se de jogar o campeonato deste ano".
Durante o pronunciamento, o chanceler negou negou integrar a chamada ala ideológica do governo, ainda que tenha criticado o “marxismo sem Deus”.
No entanto, debates promovidos pela Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), fundação pública vinculada ao Itamaraty que promove conferências e formações sobre as relações internacionais, mostram o contrário.
Temas como o combate ao chamado globalismo e ao comunismo, além de outras ideias anti científicas e alardeadas pelo chamado olavismo - como são conhecidos os seguidores do escritor e astrólogo Olavo de Carvalho - integram a agenda de eventos da Fundação. Embaixadores e professores de Relações Internacionais perderam espaço para blogueiros, militantes pró governo federal e colunistas.
Para Cottas Freitas, a política externa do governo Bolsonaro é contraditória e atua a partir do confronto com um suposto inimigo, em que aqueles que questionam ou discordam de seus posicionamentos são perseguidos, constrangidos e atacados.
Estão sacrificando tudo para propaganda política interna, muito duvidosa, problemática, divisionista
De acordo com ele, o discurso apodera-se cada vez mais da máquina estatal para potencializar a distribuição de narrativas reacionárias.
“Estão sacrificando tudo para propaganda política interna, muito duvidosa, problemática, divisionista, que cria conflitos e confrontos no próprio país. É um pesadelo”, comenta o diplomata.
Em maio deste ano, durante a pandemia e frente ao redirecionamento do Itamaraty, Freitas fundou o Instituto Diplomacia para a Democracia. A organização promove uma série de debates sobre política externa com especialistas, dando espaço para vozes dissonantes da área.
Aliados ao trumpismo
Ao dirigir a palavra aos formandos na semana passada, Ernesto Araújo disse que os novos diplomatas chegam a um “Itamaraty que se renova", que angariou acordos comerciais com as maiores economias do mundo e países de alta tecnologia, como Japão e Israel, além de parcerias com grandes centros de capital como Arábia Saudita e Emirados Árabes.
Mas, desde a chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto, o alinhamento aos Estados Unidos na política externa tem sido destaque e alvo de críticas.
A começar pelo fato de o Brasil abrir mão do status de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio (OMC) em troca do apoio formal da potência norte-americana para ingresso na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o clube dos “países ricos”.
O discurso anti-China, por sua vez, também copiado do atual governo dos Estados Unidos, interferiu no processo de produção da vacina Coronavac, desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan.
Na opinião de Antonio Freitas, ecoada por outros especialistas, outras negociações bilaterais foram favoráveis apenas aos Estados Unidos, como o da exportação de aço.
Não é uma aliança com os Estados Unidos. É uma aliança com uma facção extremista do sistema político norte-americano
Ele frisa que, em nenhuma hipótese, um país das dimensões do Brasil poderia se sujeitar de tal forma a outra nação, independente de qual seja.
“Não é uma aliança com os Estados Unidos. É uma aliança com uma facção extremista do sistema político norte-americano. Não é com o partido republicano, é com o trumpismo. Esse é o mais óbvio e mais colossal erro ou violência contra a tradição diplomática brasileira e contra os interesses da população”, ressalta o diplomata.
Um cenário de provável não reeleição de Trump em 3 de novembro próximo, nas eleições presidenciais, também impactaria a posição mundial brasileira.
Sem o republicano na Casa Branca, o diplomata avalia que embora os Estados Unidos sigam como uma potência imperialista e intervencionista, o governo Bolsonaro enfrentará maiores dificuldades diante das questões ambientais e de direitos humanos, cujos posicionamentos conservadores já são criticados em nível global.
Como a aposta no Trump foi muito profunda, sem dúvida eles [os governos de EUA e Brasil] vão ter que tentar reconstruir canais de diálogo
“Como a aposta no Trump foi muito profunda, sem dúvida eles [os governos de EUA e Brasil] vão ter que tentar reconstruir canais de diálogo. Mas no curto prazo, a questão ambiental pode se tornar um calcanhar de Aquiles importante na relação entre Brasil e Estados Unidos. E como os Estados Unidos influenciam o mundo inteiro, [devem influenciar também] a relação do Brasil com o mundo”.
Entre as outras consequências concretas da política adotada pelo Itamaraty, Freitas destaca graves danos à integração latino-americana, principalmente pela perda de diálogo com a Argentina e a incapacidade de influenciar positivamente a conjuntura da Venezuela.
Ele também acredita que a implementação de uma “política externa cristã”, profundamente conservadora, fere a laicidade da Constituição Federal de 1988.
Tradição diplomática descartada
A retórica revolucionária e as apostas do “Itamaraty renovado”, que rechaça a atuação dos governos republicanos anteriores, chegam à metade do governo sem grandes conquistas e dependendo da eleição presidencial de outro país para traçar seu futuro.
Apesar do discurso de Ernesto Araújo, o quanto a nova política externa está de fato unificada internamente é uma grande dúvida.
“O quanto as pessoas do Itamaraty, os diplomatas seniors, estão ali levando isso adiante por oportunismo ou realmente por alinhamento? O quanto isso está assentado no Itamaraty? O quão isso está estruturado em outros órgãos do governo que também praticam política externa e diplomacia como os próprios militares ou áreas como o Ministério da Economia?”, questiona o diplomata.
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Cottas Freitas reforça que a diplomacia, em primeiro lugar, deve seguir as orientações e princípios constitucionais objetivando a garantia dos direitos dos brasileiros.
Para isso, nas relações internacionais, defende uma diplomacia que busca a autonomia do Brasil, a cooperação com os países vizinhos, que compreenda a América Latina unida como potência.
Não é bom ser pária e ficar isolado. Pelo contrário: isso é um desastre
Uma diplomacia universalista, que converse com todos os países, incluindo China, Rússia, Estados Unidos e União Europeia, dando atenção especial para as relações com os países africanos, que compartilham laços históricos e sociais com o Brasil.
Essa é a grande tradição brasileira. É o arroz com feijão que sempre fizemos. O Brasil não é um país com grandes meios militares, não temos ambições imperialistas territoriais. O que precisamos fazer é dar melhores condições de vida para a população brasileira. Para isso, é preciso ter um bom relacionamento. Não é bom ser pária e ficar isolado. Pelo contrário: isso é um desastre”.
O Brasil de Fato aguarda posicionamento do Itamaraty.
Edição: Rogério Jordão