O atual líder do governo de extrema direita do Brasil, Ricardo Barros (PP-PR), que foi ministro da Saúde do ilegítimo governo de Michel Temer, manifestou, quase em tom de deboche, que a Constituição de 1988 somente prevê direitos para os cidadãos. E por isso, numa jogada aventureira, feita sob medida para testar as reações, lançou a ideia da convocação de uma nova constituinte, com o propósito claro de se aproveitar do processo revolucionário popular em curso no Chile e na vitória do Movimento ao Socialismo na Bolívia, ambos construídos por autênticas forças progressistas, ao contrário do que se passa hoje no governo do Brasil.
A manifestação do referido parlamentar é muito semelhante à externada pelo general vice-presidente, durante a campanha eleitoral de 2018, quando afirmou que no Brasil há muitos direitos e poucos deveres, referindo-se a toda a legislação de proteção da classe trabalhadora, construída ao longo de décadas e conquistada mediante muita luta, que os governos de Temer e Bolsonaro estão destruindo, sem qualquer pudor. Por isso, tal proposta está a serviço do retrocesso político e social, que nada tem de revolucionário para justificar a convocação de um processo constituinte.
É preciso esclarecer que uma constituinte originária, para fundar um Estado, somente deve ser convocada diante do quadro de ascensão de uma nova ordem política, a exemplo do que se sucedeu no Brasil, a partir de 1985, com o fim do regime ditatorial de 1964-1985, quando se impôs a ruptura da antiga ordem autoritária comandada pelos militares, a fim de restaurar a democracia e os direitos humanos.
Na verdade, não é o que se passa agora no Brasil, com o atual governo apoiado pelos militares, mercado financeiro, agronegócio, pastores pentecostais, negacionistas etc. A mesma classe dominante, que defende descaradamente o estado de exploração e destrói a democracia e os direitos sociais, através de seus representantes no parlamento, lança a ideia de uma constituinte, sem respaldo nem legitimação pelas forças populares; em mais uma jogada de cima para baixo, própria de um regime autoritário.
Com efeito, esse mesmo tipo de poder constituinte originário, de natureza puramente retórica, que de tempos em tempos é imposto ao país pelos que se encontram no poder, foi estampado na justificativa do Ato Institucional número 1/1964, quando os golpistas da ocasião se diziam investidos (quase como deuses) de um poder constituinte e assim afirmavam: “Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular.” (sic)
Ressalte-se que tudo aquilo não passou de uma construção racional e foi apenas uma autoproclamação, porque não houve revolução popular nem conduziu à edificação de um novo país/estado.
Ao contrário, foram retiradas as liberdades individuais e imposta uma ditadura que durou vinte e um anos, ao longo dos quais se aprofundou a recessão econômica, a população empobreceu ainda mais e houve farta repartição de infelicidade por todos os segmentos, sendo o país, ao final, devolvido às forças civis com a economia esfacelada, com uma hiperinflação que corroía os salários e só promovia ganhos reais para os que apostavam diariamente na jogatina do mercado financeiro; enquanto os ricos ganhavam no over-night, os salários perdiam seu parco poder de pôr comida na mesa dos mais pobres; sem falar no escabroso registro de desaparecimentos, assassinatos, torturas, etc.
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Em tudo e por tudo, muito semelhante ao que está ocorrendo nos dias atuais no Brasil, estamos diante de um governo saudosista do regime da ditadura civil-militar de 1964-1985, que lança a esdrúxula proposta de uma constituinte com o específico objetivo de sacralizar a retirada total de direitos dos trabalhadores e certamente facilitar a venda, na bacia das almas, do que ainda resta das riquezas do país, em mais um golpe contra o Brasil, cuja população está empobrecida e precarizada e com sua juventude sem esperança de futuro.
A proposta contida no golpe da constituinte pretende o retorno ao passado; quando, na realidade, uma constituinte propõe a construção do novo, conforme o processo dialético.
Sem dúvida, o golpe do impeachment perpetrado contra a presidenta Dilma Roussef, em 2016, enfraqueceu muito a autoridade da Constituição de 1988 e das instituições políticas brasileiras, que colaboraram diretamente na conspiração contra a carta política que juraram defender;[1] contudo, um governo e um parlamento que trabalham sistematicamente contra os interesses dos cidadãos não estão e nunca estarão legitimados para convocar e tentar instituir uma nova ordem constitucional.
O ataque do líder do atual do governo deve-se ao fato de que na Constituição de 1988 está estabelecido um vasto programa de direitos humanos, como o Sistema Único de Saúde (que Bolsonaro quer privatizar), a proteção ao meio ambiente sadio para as gerações presente e futura (que Bolsonaro e seu ministro do Meio Ambiente sabotam sistematicamente), o direito à educação pública (que Bolsonaro e seus sucessivos ministros da Educação querem privatizar), o direito à Previdência Social Pública (que Bolsonaro e Paulo Guedes querem privatizar), o direito à pluralidade e à diversidade (dos quais Bolsonaro e seus seguidores debocham diariamente), dentre outros casos, que são cláusulas pétreas (que, em tese, não podem ser revogadas).
Na verdade, o que o atual governo de Bolsonaro, dos militares e de Paulo Guedes (representante do mercado financeiro) deseja é acabar com o Estado brasileiro e todo o sistema de proteção social.
Porém, querem fazê-lo sem que isto represente a ruptura da atual ordem exploratória, imposta contra os interesses da maioria da população, que sequer tem acesso aos direitos previstos na Constituição, que não foram integralmente implementados pela ação direta da classe dominante brasileira, que sabota desde o início a nossa Carta Política porque deseja somente para si o controle e a fruição das riquezas do país, em desacordo com o que ajustou o Constituinte de 1987/1988, na medida em que a Constituição é para proteger o povo brasileiro.[2]
É para lutar pela implementação dos direitos previstos na Constituição de 1988 que nos dedicamos a escrever, toda semana, em defesa da Constituição, com o objetivo de contribuir para a emancipação das forças populares, para que a maioria do povo perceba que o Estado brasileiro somos todos nós, o conjunto da sociedade, e compreenda que juntos somos fortes e capazes de estabelecer uma nova ordem, fundada na solidariedade, na justiça social e sem exploração do homem pelo homem!
Por fim, prestamos nossa homenagem à expressiva maioria do povo boliviano e chileno, que estão se insurgindo contra a classe dominante (que sempre se apropriou das riquezas pertencentes a todos) e lutando para construir, em seus respectivos países, um Estado que efetivamente os represente em toda a sua diversidade e que faça prevalecer a soberania popular.
[1] Jorge Rubem Folena de Oliveira. Desmanche da Constituição e das Instituições. In Destruição dos princípios liberais: suicídio da elite brasileira (ensaios e Direito). Letra Capital: Rio de Janeiro, 2020, p. 79.
[2] Jorge Rubem Folena de Oliveira. A Constituição é para proteger o povo brasileiro. Revista Conjur, 01 jul 2020. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jul-01/jorge-folena-constituicao-povo-brasileiro
*Jorge Folena é advogado e cientista político. Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros e da coordenação do SOS Brasil Soberano.
*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Daniel Lamir