ENTREVISTA

Duterte e Bolsonaro: os irmãos siameses da extrema direita

Para cientista política filipina, há muito em comum na ascensão de governos autoritários nas Filipinas e no Brasil

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Rodrigo Duterte, presidente filipino: autoritarismo como marca da extrema direta, em sintonia com Bolsonaro - Foto: Mikhail Klimentev/AFP

Defesa dos cidadãos de bem, discursos que exaltam a violência, perseguição a ativistas dos direitos humanos, populismo, militância virtual radicalizada, proximidade com militares, medidas econômicas neoliberais, filhos na política e um governo que acumula denúncias de corrupção. 

Apesar das similaridades e de ser o primeiro nome que provavelmente vem à mente, Jair Bolsonaro não é o único presidente de extrema direita com tais características. Esses são também os principais elementos que marcam a trajetória de Rodrigo Duterte, presidente das Filipinas, no Sudeste Asiático, no poder desde 2016. 

Assim como o capitão reformado, Duterte ocupou cargos políticos por décadas e, sem que especialistas, pesquisadores e setores tradicionais da direita esperassem, chegou ao cargo mais alto do país com discursos punitivistas e o apoio de parcela considerável da população. 

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Segundo a filipina Cecilia Lero, cientista política pela Universidade de Notre Dame e pós-doutoranda no Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (USP), o modus operandi autoritário de Duterte e Bolsonaro é o mesmo, alvo de duras críticas da comunidade internacional.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a pesquisadora descreve o atual contexto político das Filipinas e traça paralelos entre a ascensão da extrema direita nos dois países. 

“A campanha [de Duterte] foi muito similar à de Bolsonaro. ‘Vamos tirar os políticos antigos, todos são corruptos, não fazem nada. Sou diferente porque falo o que penso’. Muito similar a Trump. Direitos para o cidadão de bem. Fala que ONGs e militantes de direitos humanos só se preocupam com criminosos e não com suas vítimas. Fala que nós, que nos importamos com direitos humanos, somos obstáculos ao desenvolvimento das Filipinas porque não deixamos ele fazer o que é necessário para ‘limpar o país’”, conta Lero. 

Desde o início de seu governo, Duterte tem causado choque por ordenar milhares de assassinatos em nome da “guerra contra as drogas”, sua principal bandeira. 

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Em 2019, durante conferência do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, os europeus pediram a abertura de investigação internacional contra as políticas de execução de Duterte, que já havia, então, vitimado 27 mil pessoas. A resolução foi aprovada por 18 votos a favor e 14 contra, com abstenção do Brasil.

“Ele se elegeu dizendo: ‘Vou matar todas as pessoas de mal. Todos os viciados e traficantes.’ Durante a campanha, disse que quando fosse eleito, a Baía da Manila seria vermelha de sangue dos ‘criminosos vagabundos’”, lembra a pesquisadora.

Ainda de acordo com a cientista política, o favorecimento ao capital financeiro internacional, um nacionalismo oportunista e proximidade com os militares também são elementos compartilhados pelos presidentes. Assim como a tentativa de atenuar os impactos da pandemia do novo coronavírus no início da pandemia e a ausência de insumos para a área da saúde. Conforme monitoramento da Universidade Johns Hopkins, mais de 378 mil pessoas foram infectadas pela covid-19 nas Filipinas, até o final de outubro, com mais de sete mil mortes mortes

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato - Qual o atual contexto político e socioeconômico das Filipinas?

Cecilia Lero - Muitas pessoas não percebem, mas as Filipinas têm muito a ver com o Brasil e  a América Latina no geral. Fomos colônia espanhola por mais de 300 anos e tivemos uma ditadura nas mesmas décadas que aqui no Brasil e em outros países da região.

Uma ditadura similar, com foco nos militares, mas lá era uma família e não um conjunto de generais. Uma ditadura de extrema direita que implementou uma série de sistemas, entre ele o que chamamos de autoritarismo burocrático. São tecnocratas desenhando sistemas complicados para poder controlar as pessoas.

Há também muita corrupção. Derrubamos nossa ditadura em 1986 e o presidente foi eleito em 1987. Na mesma época do Brasil (1985, quando acabou a série de governos militares que vinha desde o golpe de 1964).

E assim como o Brasil, as Filipinas, no sudeste da Ásia, era a estrela da região. Um lugar que sentíamos que estávamos indo para frente. Obviamente ainda que com muita miséria. É um país onde mais de 20% dos cidadãos vivem em situação de pobreza.

O consenso é que estávamos evoluindo e chegaríamos a ser uma democracia consolidada. Até por isso comecei a fazer minha carreira estudando e fazendo comparações entre movimentos sociais no Brasil e nas Filipinas. Os dois países têm tradição de movimentos sociais, ONGs, da luta pelos direitos humanos muito forte.

Muitos brasileiros não sabem, mas nós que estudamos ciência política internacional, vemos o Brasil como um país cheio de lições quando pensamos em outros países menos desenvolvidos.

Em 2016, foi eleito o presidente Rodrigo Duterte. Um processo muito similar ao de Bolsonaro. Um ano antes de ser eleito, ninguém achava que fosse possível. Era uma piada elegê-lo. 

Ele foi prefeito de Davao, uma cidade no extremo sul, por 30 anos, desde a volta da democracia. As Filipinas são um lugar em que a política tem muito coronelismo. Na maioria dos lugares são famílias antigas e ricas que mandam. 

Duterte já era relacionado ao uso de violência de sua cidade. Por ter esquadrões de morte que vão atrás de criminosos pequenos, que roubam celulares ou carteiras. 

Em 2016, no começo, ele fingiu que não queria, mas se candidatou. Estávamos saindo da gestão do presidente Aquino, uma gestão do partido liberal, com programas sociais mas com visão pró-mercado. Aquela ideia de diminuir a pobreza sem mexer com o capital global. Ele era muito popular, saiu com mais de 50 % de aprovação. Mas nas Filipinas não tem reeleição para presidente e aquele que foi colocado pelo partido dele para se candidatar não era alguém popular. O outro candidato estava envolvido com acusações de corrupções, o que deu oportunidade para Duterte.

Mas não acho que sua eleição se deu só pela ausência de outro candidato forte, são causas estruturais também.

Quais seriam os outros fatores que levaram à ascensão de Duterte?

A campanha dele foi muito similar à de Bolsonaro. "Vamos tirar os políticos antigos, todos são corruptos, não fazem nada. Sou diferente porque falo o que penso". Muito similar a Trump.

E também porque ele disse: "Vou matar todas as pessoas de mal. Todos os viciados e traficantes." Durante a campanha, disse que quando fosse eleito, a Baía da Manila seria vermelha de sangue dos "criminosos vagabundos".

Essa mensagem foi atraente para muitas pessoas. É interessante notar que antes da candidatura dele, as pessoas estavam preocupadas com o crime, mas nas pesquisas, essa não era uma das principais preocupações. Em primeiro sempre figuravam trabalho e renda.

Acho que essa mensagem foi eficaz porque nos anos 1990 e 2000, a economia das Filipinas cresceu muito. Existe uma nova classe média baixa, uma nova classe trabalhadora, que pela primeira vez tem como falar que é diferente daqueles da favela.

Sabemos também que a ideologia do capitalismo dá incentivo para essa ideia da meritocracia. O Duterte teve muito êxito em convencer as pessoas de que as Filipinas, como país, não estavam indo para frente por causa das pessoas de mal, que ele define como traficantes e usuários de drogas.

Vou matar todas as pessoas de mal. Todos os viciados e traficantes.

É importante dizer que isso não tem nada a ver com os dados oficiais que temos sobre droga, que mostra que menos de 2% do país usou drogas ilegais. A droga que as pessoas preferem é metanfetamina e a taxa de uso das Filipinas é muito mais baixa do que Estados Unidos ou Inglaterra, por exemplo. Mas é essa construção do outro, do inimigo.

Percebemos também em outros países em que ocorre essa virada para a extrema direita, que essa é a ferramenta que usam, que os tornam diferentes de outros autoritários ao longo da história: eles definem quem é o povo de bem e quem não é. E criam esse sentido de que existe uma cegueira na sociedade que justifica usar o Estado para exterminar as pessoas "do mal".


A filipina Cecilia Lero é cientista política e pós-doutoranda na Universidade de São Paulo (USP) / Foto: Luis Simione

O discurso nacionalista também é muito presente? Há uma perseguição aos defensores dos direitos humanos do país?

Os direitos humanos são muito ameaçados. Usa-se o mesmo papo que o Bolsonaro usa. Direitos para o cidadão de bem, que são mais humanos. Nos discursos dele (de Duterte), ele fala várias vezes que as ONGs e os militantes de direitos humanos só se preocupam com criminosos, não se preocupam com suas vítimas.

Fala que nós, que nos importamos com direitos humanos, somos obstáculo ao desenvolvimento porque não deixamos ele fazer o que é necessário para "limpar o país."

Chegaram a enviar defensores dos direitos humanos para a prisão. O exemplo mais forte é o da senadora Laila de Lima, eleita no mesmo ano que Duterte. 

Antes disso, ela era secretária de Justiça e chefe da Comissão de Direitos Humanos. Mas quando entrou no Senado, ela já estava pretendendo criar uma CPI sobre os assassinatos em nome da guerra às drogas de Duterte.

O que o regime Duterte fez? Levantou uma série de acusações contra ela e a acusou de ser traficante. 

O nacionalismo também é muito usado. Duterte faz o mesmo teatro que Bolsonaro e Trump fazem. Abraçam a bandeira, beijam a bandeira. Outra coisa que vemos de similaridade entre Estados Unidos, Brasil, Filipinas, Hungria, Turquia e Índia, é a imagem de ser o "pai", o protetor do país. "Não se pode mexer com meu país. Vou fazer de tudo para protegê-lo".

As pesquisas mostram que filipinos gostam mais dos EUA do que os próprios estadunidenses.

É até irônico. Usa-se muito esse sentido de nacionalismo quando fala dos Estados Unidos. Mas historicamente as Filipinas são muito próximas deles. Éramos colônia deles depois dos espanhóis. Até as pesquisas mostram que filipinos gostam mais dos EUA do que os próprios estadunidenses.

Quando Duterte foi eleito, (Barack) Obama ainda era presidente (dos EUA). E o Obama por meio de seu departamento de relações externas mandou comunicados afirmando que estavam preocupados com a situação dos direitos humanos com Duterte na presidência e ele não gostou nada. 

Ele usou o papo do nacionalismo nessa época, mas não fala a mesma coisa quando tem a ver com a China. Como os Estados Unidos de Trump estão saindo muito da região, a China está animada para entrar e não tem isso de precisar dados dos direitos humanos para manter relações. 

Além disso, há uma disputa territorial com a China e você não vai ouvir o Duterte usando a bandeira nacionalista para defender o território. Só vai usar como ferramenta emocional para mexer com as pessoas, como se só ele tivesse o direito de definir o que é o país.

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Além do populismo, perseguição aos direitos humanos e esse perfil que ninguém considerava que chegaria ao poder, quais são as outras similaridades?

A economia. Duterte também fala "não sei nada de economia, coloco toda a minha fé no meu ministro". Que também é um cara super neoliberal. Sua estratégia de desenvolvimento é acolher o capital estrangeiro.

Quando ele era candidato, falou que não deixaria crescer a mineração. Depois de eleito, liberou a mineração, liberou a compra de territórios das Filipinas pela China. É uma estratégia de desenvolvimento totalmente voltada para o capital financeiro internacional.

Ambos [Duterte e Bolsonaro] não respeitam as instituições democráticas. Desde partidos, até outras instituições. Nessa onda que estamos passando de extrema direita, muita gente fala que é fascismo, mas é importante notar que é diferente do fascismo tradicional, da Itália dos anos 1930. 

Essas pessoas não têm e não estão interessadas em construir uma base organizada. Só pessoas chamadas por redes sociais para brigar com outras pessoas. 

Por exemplo: o Bolsonaro sendo presidente poderia ter tomado o controle do partido dele, criar algo maior. A mesma coisa Duterte, que se elegeu com um partido com menos de sete pessoas na Câmara Nacional. Quando foi eleito, todos foram para seu partido, mas ele nunca se importou em fortalecê-lo.

Outra similaridade com Bolsonaro são os filhos, que não estão ligados ao mesmo partido. Eles têm as próprias redes, que são até mais poderosas. É isso de não construir partido e colocar os filhos para serem pessoas que mandam na política. Um dos filhos do Duterte é presidente ou vice-presidente da Câmara. Sua outra filha faz campanha para os aliados deles.

Ao longo da presidência dele, pouco a pouco estão entrando mais e mais generais.

Esses presidentes não querem ter uma organização, ainda que leal a eles. Porque quando se tem essa base organizada, ela pode cobrar. Eles gostam que a população vá do trabalho para casa, da casa para o trabalho, que fique no celular e brigando um com o outro. Porque aí não tem força para cobrar o governo.

E tem a questão da lealdade pessoal, que é mais importante. Assim como Bolsonaro, que sempre está demitindo pessoas do gabinete por qualquer coisa, igual a Trump, Duterte faz a mesma coisa. A lealdade pessoal importa mais do que qualquer outra competência.

A virada para os militares é outro elemento em comum. Quando Duterte se elegeu, viu que as forças armadas eram capazes de tirá-lo do poder se quisessem e que precisaria do apoio delas.

Ao longo da presidência dele, pouco a pouco estão entrando mais e mais generais porque ele quer acolher as forças armadas para ficar do lado dele. 

A projeção das campanhas passou pelo mesmo percurso. Um ano antes, ninguém achava que Duterte seria presidente, era piada também. Eu estava aqui no Brasil no fim de 2015 quando ele estava começando a aparecer nas pesquisas e até fiz uma brincadeira com meus amigos: 'vai ser Duterte nas Filipinas, Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro aqui'. E todos deram risada.

E isso também fez parte. As pessoas "sérias" da política não levaram eles a sério. Não podíamos imaginar que a população ia votar em alguém que fala em matar outros. Como as Filipinas são um país dominado pelo coronelismo, quando Duterte falou que ia fechar o Congresso porque ele não fazia nada, algo que todo mundo que odeia política fala, pensei que ele não ganharia, que os coronéis regionais não o deixariam ganhar. Mas isso não aconteceu.

Nesse sentido, a direita tradicional brasileira também não acreditava no potencial do Bolsonaro e chegou a pensar que ele não conseguiria se manter no governo. Mas mesmo com todas essas características polêmicas, eles estão cumprindo o mandato. Como essa direita mais conservadora reage e se comporta nesse contexto nas Filipinas?

É uma coisa de oportunismo. Duterte deixou muito claro que ele colocaria na pasta de economia um neoliberal. É como aqui no Brasil. Bolsonaro colocou Guedes para poder acalmar e trazer os banqueiros para o seu lado, os grandes capitalistas.

Eles viram que mesmo sendo essa pessoa sem comportamento, bruto, no final, o que é importante é que Duterte vai entregar o que eles querem economicamente. Além disso o que ajudou muito foi essa onda de apoio popular, algo que nunca vi na minha vida.

As famílias antigas não criticam Duterte para não ter seus seguidores os ameaçando. É algo muito intimidador ter todos essas pessoas online, incluindo muitos filipinos em outros países.

E como está a aprovação de Duterte, que já ultrapassou mais da metade de seu governo? Tanto ele quanto Bolsonaro de fato dominaram essa máquina de poder?

A aprovação é boa por causa da guerra contra às drogas. A maioria das pessoas que foram assassinadas são pessoas pobres que a gente nem sabe se tem a ver com droga. Mas o que ele faz é chegar nas regiões e falar que tem um papel, uma lista de narcopolíticos mas não fala quem está na lista. Então até os outros políticos estão com medo. Caso Duterte decida que não gosta dele, pode mandar prender ou matar.

Essa senadora Laila de Lima, que foi presa poucos meses antes do Duterte ser presidente, é um exemplo desse processo.

O presidente tem mais poder que o Legislativo e do que as cortes porque o presidente controla a liberação de verba.

A aprovação dele é muito alta, desde que começou acima dos 70%. Eu tenho uma teoria sobre isso: obviamente muitas pessoas não gostam do governo dele, mas acho que tem a ver com o medo.

Mesmo eu, que sou uma pessoa conhecida e que sou contra, se alguém que não me conhece bate na minha porta perguntando se gosto de Duterte ou não, não sei como responder. Eu vi isso indo às comunidades. Quando as pessoas não me conhecem e eu pergunto sobre o presidente, ninguém quer falar nada. Mas quando me conhecem ou alguém me apresenta, as pessoas começam a reclamar. 

Ainda assim, muitas pessoas, de verdade, gostam do presidente e não querem ouvir outra coisa.

As estratégias foram bem sucedidas. Havia estratégia para poder controlar outros ramos e departamentos do governo. Nas Filipinas temos um sistema onde o presidente tem mais poder que o Legislativo e do que as cortes porque o presidente controla a liberação de verba.

Isso aconteceu muito nas Filipinas. O presidente tem o poder, mesmo que não constitucionalmente, de dar dinheiro para cada congressista, para projetos particulares, que eles escolhem.  Mesmo que em teoria exista um plano de desenvolvimento na secretaria de desenvolvimento ou de obras públicas, o presidente está com todo o poder. Se não gostar de tal região, não vai investir.

Quando Duterte virou presidente o orçamento para a região dele subiu muito, mais de 300%. Além disso, ele também tomou controle da Corte Suprema, tirando sua chefe. Como uma ação do Executivo. Lá o Ministério Público não é independente, está abaixo do presidente, de seu gabinete. Então a advogada-geral do país entrou com casos contra a chefe da Corte Surprema para tirá-la, dizia que não era qualificada, que havia erros burocráticos em sua indicação. E conseguiram tirá-la.

Eles fazem tudo isso de uma maneira muito coordenada. São ações legais de dentro do governo e também tem ações legais de ONGs aliadas ao governo, assim como nas redes sociais deles, para infernizar a vida das pessoas, difamar e falar das famílias. Envolve muito dinheiro também. Tudo é coordenado. Fizeram isso com Leila de Lima e com Maria Lourdes Sereno, que era chefe da Corte.

Qual o balanço da Filipinas antes de Duterte e pós Duterte? Como imagina que será a realidade do Brasil após os próximos dois anos de Bolsonaro?

A gestão Duterte é a destruição dos controles e instituições democráticas, até mesmo destruição da polícia. Foi à polícia que o presidente mandou matar pessoas e que chegou em um nível absurdo de corrupção. Pelo menos no começo, os policiais estavam recebendo por cabeça e faziam extorsão. Sequestravam, diziam que era parte da guerra contra às drogas e pediam dinheiro às famílias.

Vemos também um efeito destrutivo muito grande na parte da cidadania. Os cidadãos se olham como inimigos. Que defendem a opinião mesmo que não seja baseada na verdade.

Também acho que a gestão Duterte trouxe um grande impacto na autoestima das pessoas pobres, nas favelas. Pensam: "Estamos morrendo todos os dias e ninguém se importa. Somos como moscas aqui, podem nos matar a qualquer hora". Pessoas até falam que fizeram algo para merecer aquilo. Esse trauma vai precisar de gerações para arrumar.

Além disso piorou a corrupção e a nossa soberania. A China está entrando e comprando nosso território, construindo ilhas em nosso mar. Vai ser muito difícil recuperar isso.

Em termos de macroeconômia, antes da pandemia, estava seguindo o mesmo caminho que antes. Não era algo muito melhor que a gestão anterior, mas estava ok. 

Quando falamos de desemprego, por exemplo, esquecemos de lembrar que pode haver menos desemprego, mas muito mais empregos precários e sem proteção social nenhuma, muitos terceirizados. Tem emprego, mas não é uma função que sustenta sua família, que te permite em investir.

Para o Brasil, o que eu acho, é que está em uma situação um pouco melhor porque Bolsonaro não está com o apoio alto. Isso é muito importante porque outros políticos que também são populistas não se agarram nele.

Ao mesmo, o que Bolsonaro está conseguindo fazer que é similar ao Duterte mas um pouco mais sútil, é desfazer as instituições importantes do Estado. Como o Sistema Único de Saúde (SUS), como a Fundação Palmares. Pouco a pouco. E ao mesmo tempo distraindo com falas de (ministra) Damares, falas de seus filhos.

O mais importante que posso falar para os brasileiros é para não cair no buraco das distrações. Não caia nesse buraco, especialmente agora nas eleições. Não acreditem em candidatos que vem do nada, falam várias coisas para causar e ganhar relevância. É preciso prestar atenção nas coisas institucionais que estão sendo desmontadas.

Eles conseguiram ganhar porque falaram mal dos partidos, dos políticos. Precisamos de partidos mais fortes que mostrem aos eleitores quais são as ideologias dessas pessoas. 

Como as Filipinas lidaram com a pandemia? Houve um negacionismo como no Brasil e alinhamento com Estados Unidos?

Foi um pouco diferente, mas com resultado similar. No começo, como o vírus veio de China, Duterte aceitou pessoas vindo de lá e disse que o coronavírus não era problema. Por volta de fevereiro ou março, reconheceu que era um problema e inverteu em 180º. Fechou o país, fechou tudo.

Só que fechou tudo sem viabilizar equipamento para os hospitais. Os cidadãos, individualmente, tiveram que aprender a fazer máscara de tecido e plástico para doar para os hospitais.

Também é comum que eles tentaram esconder o número de infectados e também disse que o governo não vai se responsabilizar por testagem, vai deixar na mão do mercado.

Mas a diferença é o lockdown, que foi feito de uma maneira contra os pobres. Muito mal implementado. Uma semana uma coisa era permitida, na próxima semana não. Nunca se sabe quais são as regras de verdade. Tudo confuso. Parou transporte público, mas deixaram empresas continuarem. Abriram os shoppings antes do transporte público, como o trabalhador vai fazer?

Fecharam transporte públicos interestaduais. As empregadas domésticas que estavam trabalhando fora do país e tiveram que voltar, ficaram meses em Manila sem poder voltar para seus estados.

Foi um lockdown militarizado. Havia casos na cidade de Manila em que as pessoas que estavam em quarentena foram colocadas em jaulas de cachorro.

A tendência desses líderes de autoritários de extrema direita é continuar crescendo? Como pensar o futuro nesses países?

É muito difícil. Nas Filipinas vimos como o governo conseguiu se manter mais militarizado por conta da pandemia. As pessoas estavam desesperadas, com medo de perder acesso ao auxílio emergencial, por exemplo.

Durante a pandemia ele aproveitou para aprovar leis draconianas contra o terrorismo, que permite o governo prender a pessoa por 24 dias sem mandado da Corte. Achei que a forma com que ele lidou com a pandemia teria impacto no apoio, na aprovação. Mas não teve. As pessoas colocaram a culpa nos governos locais em vez de no presidente.

No Brasil, vemos o mesmo efeito, mas com características diferentes. Bolsonaro subiu nas pesquisas por conta do auxílio emergencial ainda que não fosse um projeto dele.

Tudo depende muito da habilidade de comunicação. Nos Estados Unidos, a resposta à pandemia teve outro resultado. As pessoas ficaram indignadas com Trump. 

Nas Filipinas não estou vendo uma saída boa. Acho que a pandemia permitiu que Duterte tivesse ainda mais controle. Quando as pessoas estão desesperadas por verba, e como o governo tem mais dinheiro do que todos, consegue manipular a população com mais facilidade.

Não há uma perspectiva de mobilização popular de oposição?

Também não. É uma coisa que todo mundo se ressente. A esquerda tem a responsabilidade de não por seus membros em risco [com manifestações de rua], mas a extrema direita não tem, não se importa com isso.

Mas, mesmo com as taxas de apoio altas e pagando pessoas para ir para a rua, Duterte e Bolsonaro nunca conseguiram organizar manifestações tão grandes como a esquerda, mesmo a esquerda sendo fraca.

Isso porque eles não se importam em ter uma organização. Como candidatos, conseguiram chamar milhares de pessoas para os seus eventos de campanha, mas depois não. Não levaram a mensagem de construção conjunta do país. Levaram a mensagem de: "Eu vou mandar. Quando eu for presidente você pode se sentar na sua casa e não se importar com política". 

Estamos preocupados. Tenho mais esperança para o Brasil nesse momento do que para as Filipinas por causa das eleições. Veremos se serão eleitas pessoas progressistas.

Mas a direita tradicional que você citou está procurando alguém para levar o projeto econômico de Bolsonaro, mas com a cara mais bonita. Quando, por exemplo, o Doria (João Doria, governador de São Paulo) vir com a cara de profissional, tem que lembrar que é o mesmo projeto econômico, projeto contra os pobres que o Bolsonaro tem. Precisa ficar atento ao que está por baixo dessa maquiagem.

Edição: Rogério Jordão