Pensar a infância brasileira é trazer a história do Brasil e os conflitos de interesse entre as classes sociais. É lembrar que temos mais de uma infância. Por um lado as das crianças e adolescentes oriundos da Europa, filhos da nobreza e seus súditos, famílias ricas, comerciantes, líderes militares e burocratas, que viram as novas terras e o tráfico humano como possibilidade de acumular riquezas. Por outro lado temos os filhos dos originários da terra, trabalhadores que vieram da Europa e os africanos escravizados.
As crianças e adolescentes desta última classe social, no século 19, ficavam jogados à própria sorte, vivenciando as ruas atrás de recursos e vantagens para seu “senhor”, de apoio à família ou para garantir a própria sobrevivência. Esse modelo, com suas determinações econômicas ligadas à escravidão, desenvolveu e naturalizou o preconceito, a pobreza e a violência para essas crianças, adolescentes e suas famílias. Esse triste fenômeno vem do período colonial e se mantém até hoje.
A população em situação de rua é intergeracional. Nas ruas se encontram mulheres grávidas, recém-nascidos, crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos. Situação que se agravou a partir de fevereiro de 2020 com a chegada do coronavírus (covid-19) e o acirramento da crise política, econômica e social. Em alguns casos a pobreza leva toda a família para a rua – muitas tendo a mulher como principal referência, para resolver situações na comunidade, enfrentar “as autoridades” e fazer as visitas nas unidades de internação (Sinase). Pobreza que tem a marca no rosto da pele preta, indígena e parda.
As crianças e adolescentes pernoitam nas ruas sozinhas, por questões históricas e econômicas, além de conflitos familiares e violência. A fuga de casa é um caminho contra o espancamento, agressões e confinamentos. Pesquisa recente apontou que para as instituições estatais a principal violência sofrida está no âmbito familiar; já para as organizações/movimentos sociais e os próprios meninos e meninas os agentes de segurança pública são apontados como os principais violadores.
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É evidente a desigualdade e a invisibilidade dessa população. Para piorar, o atual governo federal vem desarticulando espaços importantes de direitos, como o Conselho Nacional do Direito da Criança e do Adolescente (Conanda) e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política da População em Situação de Rua (CIAMP-Rua). O Conselho constituiu um Grupo de Trabalho (GT) com a finalidade de formular estratégias com olhar para dentro das políticas públicas. Neste GT destacamos o papel da sociedade civil composta pelo Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua, Campanha Nacional Criança Não é de Rua, Rede Rio Criança (RJ), Rede Amiga da Criança (MA), Rede Inter Rua (RS), Rede Equipe Interinstitucional de Abordagem de Rua (CE), Projeto Meninos e Meninas de Rua do ABC (SP) e a participação direta de adolescentes com trajetória de rua.
O Conanda retomou sua agenda de reuniões apenas em fevereiro de 2020, através de ação judicial, e o CIAMP-Rua, permanece fechado desde outubro de 2020. Este descaso, porém, não vem de hoje.
Golpe Militar, anos 1970 e 1980
Após o golpe civil-militar de 1964, a infância pobre é entendida como problema de segurança nacional, é implantando a Fundação do Bem Estar do Menor (Febem). A violência praticada nas ruas e dentro das unidades de internação, pelos funcionários das instituições e da segurança pública, mobilizou a sociedade, órgãos estatais e internacionais, que passaram a questionar a eficácia destas políticas.
Assim, em 1975, a Câmara dos Deputados criou a Comissão Parlamentar de Inquérito do Menor (CPI do Menor) para avaliar a situação da criança desassistida. A Organização das Nações Unidas (ONU) elegeu 1979 o Ano Internacional da Criança, com o objetivo de sensibilizar o mundo para os problemas que afetavam a infância no mundo.
Neste contexto, os movimentos da infância fizeram duras críticas ao governo e suas políticas. A educação social nas ruas é desenvolvida desde a década de 1970 pelos movimentos e organizações sociais. Acontece onde estão as crianças e adolescentes, nas praças, ruas, debaixo de viadutos. Tiveram, renovada força nos anos 1980, como referência a educação popular, a teologia da libertação e o educador Paulo Freire, entre outros. Efervescência que resultou na criação, em 1985, do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) que realizou seis encontros nacionais de meninos e meninas de rua de 1986 a 2002, mobilizou artigos da Constituição Federal e aprovação do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA).
A criança e o adolescente passam a ser percebidos como sujeitos da própria história. Seus direitos avançaram na agenda pública com o ECA, em 1990. Nos Planos Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes (2011-2020) e Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, as crianças e adolescentes em situação de rua são mencionados.
Desmonte de políticas públicas
No momento, porém, vivemos um verdadeiro desmonte do pouco que tem de políticas públicas. O avanço da violência contra essa população continua. São entendidos como ‘menor’, bandidos mirins, sem futuro, trombadinhas, prostitutas, violentos. Para certos setores da sociedade, devem ser recolhidos, medicalizados, aprisionados, racializados, indesejados e exterminados.
Existe ainda um silêncio e paralisação das forças progressistas e de esquerda diante da dura realidade das prisões, torturas e mortes de adolescentes e jovens pobres/negros. Sem estratégias, apenas tímidas ações de enfrentamento, tem deixado toda a narrativa da violência na “boca” dos setores mais conservadores e reacionários da sociedade, defensores da pauta de que “bandido bom é bandido morto”.
Serviços têm desafios para universalizar
Mas não apenas isto. Alguns equipamentos, serviços de atenção à população de situação de rua tem desafios e limites para universalizar e qualificar o atendimento. Os serviços da saúde Consultório na Rua, por exemplo, desenvolvem atividades nos territórios, embora não tenham abrangência nacional. Estar nas ruas, apoiar e atender é fundamental para aproximar as crianças e adolescente dos serviços do Sistema Único de Saúde. O SUS conta também com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e a rede hospitalar, entre outros, embora com o desafio de se estruturar em todo país.
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Já os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas), Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centro Pop), o Serviço Especializado de Abordagem Social, Serviço de Acolhimento Institucional, além dos Centros de Convivência para Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, são primordiais na garantia de direitos, mas necessitam de fortalecimento e implementação.
Formular políticas públicas para essa população demanda entendê-la nas dimensões da pobreza e do racismo brasileiro, pois suas vidas são marcadas pela sobrevivência e por ciclos intergeracionais de pobreza e preconceito. Mas sempre restará a questão: o Estado que marginaliza, vulnerabiliza, exclui e mata, consegue garantir direitos e priorizar a vida de todas classes sociais e as etnias que compõem o povo brasileiro?
*Marco Antônio da Silva Souza, ex- menino de rua, coordenador geral do Projeto Meninos Meninas de Rua/SP, militante do MNMMR e do MNDH, conselheiro estadual de SP e nacional de Direitos Humanos (2019-2020), educador social e cientista social
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rogério Jordão