A Instituição do Direito e Voto da Mulher no Brasil, direito que só virou realidade em 1932 e apenas para as alfabetizadas e empregadas, foi celebrada no último dia 3 de novembro. Do início do século 20 até hoje, conquistas foram alcançadas. Contudo, apesar da garantia de cadeiras nos espaços de poder e com o gênero sendo mais de 51% do eleitorado brasileiro, a participação feminina na disputa ainda é tímida. Mesmo após a lei que garantiu cotas para as mulheres nas listas partidárias, as dificuldades se mantiveram. Entre as razões, estão o conservadorismo e o machismo presente nos partidos políticos.
Segundo um estudo coordenado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pela ONU Mulheres, com o apoio da organização IDEA Internacional, o Brasil é um dos últimos países na América Latina em relação aos direitos e representação feminina, ficando em 9º lugar entre onze países.
O Relatório Atenea analisou 40 fatores, divididos em temas como, por exemplo, as condições que as mulheres recebem para exercer suas funções, até a participação em partidos e o direito ao voto. Cada aspecto recebeu uma pontuação que varia entre zero e 100. Entre os latino-americanos, o Brasil ficou em antepenúltimo lugar, com 39,5 pontos. Na classificação mundial ficou atrás de nações como Etiópia, Timor Leste e Arábia Saudita.
A baixa representatividade pode ser comprovada pela análise da ocupação por mulheres nos legislativos e executivos municipais. De acordo com o Perfil dos Municípios Brasileiros (Munic 2017), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado em 2018, 4.908 prefeituras eram ocupadas por homens e 662 por mulheres. Ou seja, as prefeitas representavam 11,9% do total. Ainda de acordo com o levantamento, foi a primeira vez que o número de prefeitas caiu em relação ao período anterior: em 2013, esse percentual era de 12,1%. Porém, em relação a 2001, quando era de 6,0%, o percentual de prefeitas quase dobrou. O levantamento também, aponta que o Rio Grande do Sul é o segundo estado com menor percentual de mulheres à frente de administrações municipais. Dos 497 municípios gaúchos, somente 34 são governados por mulheres, ou seja 6,8%.
Nas eleições deste ano, se por um lado as candidaturas negras pela primeira vez ultrapassaram as candidatos de brancos, sendo 50% contra 48%, respectivamente, a presença feminina é de 33, 55%. Ou seja, 187.015 mulheres disputam prefeituras, vice-prefeituras e cadeiras nos legislativos municipais. Já as candidaturas masculinas somam 370.355, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral. No Rio Grande do Sul, em seus 497 municípios, são 123 mulheres candidatas à prefeituras (9,11%), 236 à vice e 10.957 à vereança (35,87%).
Leis para incentivar a participação feminina
Desde os anos 90, regras eleitorais têm sido implementadas visando aumentar a quantidade de mulheres candidatas e eleitas em eleições proporcionais. Entre elas a Lei eleitoral 9504/97, que estabeleceu as cotas de gênero nas candidaturas. E também a Lei 12.034/2009, que tornou obrigatório o preenchimento do percentual mínimo de 30% para candidaturas femininas. Em 2018, o TSE emitiu a Resolução TSE nº 23.607/2019, que dispõe sobre a arrecadação e os gastos de recursos por partidos políticos e candidatos, bem como sobre a prestação de contas nas Eleições 2020. Nela ficou estabelecido que as agremiações devem destinar no mínimo 30% do montante do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), também conhecido como Fundo Especial, para ampliar as campanhas de suas candidatas. Conforme noticiado pelo Matinal e pelo Sul 21, as mulheres ocupam apenas a reserva de 30% das vagas na maioria das legendas.
O Brasil de Fato RS conversou com especialistas sobre a participação ainda pequena das mulheres na política. Com percepções semelhantes, elas apontam, entre outros pontos, a estrutura histórico-política, com um forte conservadorismo e machismo presente nos partidos políticos.
Estruturas internas e históricas
“Quem domina a cena pública, inclusive o poder político-institucional, é um sujeito universal representado por um homem branco, cisgênero, sem deficiências aparentes e de classe média ou alta. A naturalização dessa figura como a única legitimada ao exercício do poder faz com que todas as pessoas que não se encaixam nesse modelo hegemônico não sejam reconhecidas como sujeitas e sujeitos da política e tenham obstaculizado seu acesso aos espaços de poder e decisão”, afirma a advogada, servidora pública e mestra em Gênero e Políticas de Igualdade pela Flacso Uruguay, Izabel Belloc. O levantamento do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) corrobora essa afirmação.
Na avaliação da professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Céli Regina Jardim Pinto, além do forte conservadorismo e machismo dentro dos partidos políticos, sejam eles tanto de extrema direita quanto de extrema esquerda, há o fator da lei partidária e das listas abertas dentro dos partidos. “Enquanto houver essas listas abertas, enquanto os partidos forem absolutamente oligarquizados internamente, as mulheres não têm chance. A chance das mulheres é em lista fechada, onde haja primária, onde o conjunto de membros do partido vota para formar as listas. Aí nós temos uma mudança significativa, porque as mulheres vão para ponta da lista e têm possibilidade de se eleger”, opina.
Já para a cientista social e mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Andressa Mourão Duarte, embora tenham as alterações nas leis eleitorais que impulsionam a ascensão das mulheres na disputa política e ocupação dos espaços de poder, ainda assim existem muitas barreiras a serem rompidas. “Uma delas é sobre a necessidade de compreensão de que mulheres na política não são um grupo homogêneo, há diferenças e desigualdades a serem avaliadas no que trata a baixa representação de mulheres negras e indígenas no cenário nacional”, destaca.
A cor se apresenta como característica indispensável para a identificação dos marcadores sociais que excluem as mulheres negras do jogo político
De acordo com Andressa, as mulheres também enfrentam a dessemelhança na distribuição dos recursos de campanha, mesmo havendo legislação para alteração dessas práticas. “Considerando que o racismo e o sexismo institucional, diante de um sistema que gera desigualdade baseadas em raça, gênero, classe e sexualidade, podem suceder obstáculos na captação de recursos e a relação com as despesas de campanha, ambos vão implicar na obtenção dos votos”, pontua.
Segundo levantamento do Sul 21, a maior parte do dinheiro do fundo partidário utilizado no RS pelas 28 legendas que registraram seu uso no TSE foi destinado a candidaturas de homens brancos. Dos R$ 55.904.420 distribuídos entre os partidos, R$ 51.108.714, ou seja, 91,42%, foram para pessoas brancas, e 66,74% dos repasses foram para homens. Em agosto de 2020, o TSE aprovou que candidaturas de pessoas negras teriam direito à distribuição de recursos do fundo partidário para financiamento de campanha e também a obrigatoriedade de tempo de propaganda eleitoral gratuita em proporcionalidade às demais candidaturas. Para Andressa, essa decisão pode influenciar sobremaneira os resultados eleitorais, ampliando a presença de mulheres negras e indígenas como vereadoras.
Uma mudança ainda muito tímida
Apesar de todos os avanços, com o gradual aumento de mulheres, negros, indígenas, LGBT+ na ocupação desses espaços, os avanços ocorrem muito lentamente, frisa Izabel Belloc. “O que todas as estatísticas de resultados eleitorais demonstram é que ainda estamos muito aquém de uma igualdade substantiva na participação política. Não se trata apenas de uma representação numérica, mas do fato de que os direitos e interesses das pessoas, não só do sujeito universal, mas de todas as pessoas, de todas as identidades, são decididos nesses espaços. É da própria noção de justiça social que, quanto mais diversidades possam participar dessas decisões, mais diversas poderão ser as políticas públicas aí gestadas”, afirma.
Para Andressa Mourão Duarte, no que trata da baixa participação de mulheres negras nos espaços de tomada de decisão, é preciso compreender os fatores que distanciam as candidatas eleitas das candidatas não eleitas. Das 187.014 candidaturas femininas, 92.634 (49,53%) são de mulheres brancas, 90.817 (48,55%) se autodeclaram pretas/pardas e 733 (0,33%) se autodeclaram indígenas. Conforme lembra a cientista política, apenas nas eleições de 2014 foi incluída a variável cor/raça no arquivo dos candidatos e candidatas.
“Há uma crescente destas candidaturas, porém ainda tímida se comparada a probabilidade das candidaturas masculinas brancas e cisgêneras serem melhores aceitas diante do eleitorado. A cor se apresenta como característica indispensável para a identificação dos marcadores sociais que excluem as mulheres negras do jogo político. Cabe avaliarmos após os resultados da eleição se a expressiva candidatura de mulheres negras reverbera em mudança no quadro de representantes no cenário político atual”, pondera.
Céli Pinto chama atenção para o crescimento das mulheres conservadoras nos espaços de poder. “Na ultima eleição para deputados federais houve um aumento significativo de mulheres eleitas. Quando observamos quem foram as eleitas, observa-se que esse crescimento foi substancialmente de partidos de direita e de extrema direita. Esses partidos necessitam dessas mulheres conservadoras dentro do Congresso Nacional para barrar toda iniciativa de mulheres feministas, de esquerda. Então o que eles fizeram foram promover essas candidaturas, dando dinheiro, apoio”, expõe, pontuando que os partidos de centro e esquerda estão muito refratários a promover a mulher.
“A mulher de direita vai reafirmar o poder patriarcal, o poder dos homens, a posição de mulher, da natureza de mulher. As mulheres de centro-esquerda e de esquerda vão lá dizer para os homens que temos os mesmos direitos. Então há dificuldade dos partidos aceitarem as mulheres, sempre foi assim. Os partidos são muito machistas, muito conservadores em relação às mulheres”, frisa.
Contudo, ela pontua que quanto mais mulheres estiverem nos espaços de poder, mais possibilidade há de eleger feministas e mulheres que lutam pelo direito das mulheres. O que pode fazer a diferença, podendo inclusive converter algumas mulheres que chegam lá antifeministas e absolutamente reacionárias, como as que entraram na eleição de 2018. “Há casos como em 1988 onde havia mulheres conservadoras e conseguimos convertê-las dentro do Congresso para defender os interesses das mulheres na Constituição. É sempre bom ter mais mulheres do que menos mulheres. Agora, o simples fato de ter mulheres não quer dizer que os direitos das mulheres, ou o direito dos negros serão defendidos, porque nós podemos ser mulheres muito conservadoras, podemos ser mesmo racistas”, pondera.
Caminhos para fomentar a mudança
Para Izabel Belloc há dois modelos recentes e muito próximos ao Brasil que pode acompanhar: a implementação da Reforma Constitucional de Paridade de Gênero de 2019, no México, e a composição paritária da Assembleia Constituinte aprovada em referendo, no Chile, há poucos dias. Nestes dois modelos, ressalta, não há política de ação afirmativa voltada à fase eleitoral de candidaturas, mas sim uma política de paridade de gênero nos resultados, ou seja, diretamente nos espaços de poder e decisão.
Segundo ela, no México, há também há previsão de paridade de gênero nas eleições para representações de comunidades indígenas. No Chile, há a possibilidade de que a paridade de gênero seja combinada com a reserva de assentos para representantes indígenas e negros, por meio de projeto de lei ainda em tramitação no Parlamento Nacional.
“O México é o primeiro país do mundo a ter garantida constitucionalmente a paridade em todos os seus espaços de poder e decisão e o Chile acaba de se tornar o primeiro país do mundo a ter uma constituinte paritária. Essas são mudanças de paradigma importantíssimas que podem resultar em mudanças sociais igualmente importantes e mais efetivas na diminuição de desigualdades. Não digo que a simples importação e aplicação desses modelos seja uma solução pronta e acabada para o Brasil, mas sua observação atenta e comprometida pode permitir o desenho e implementação de políticas que, consideradas nossas próprias tensões e perspectivas, respondam à necessidade de maior representatividade política”, conclu.
“Não há uma formula mágica pra mudar o cenário político atual, ainda mais quando sabemos que a política é um espaço de poder constituído de homens para homens, no entanto podemos traçar algumas estratégias”, observa Andressa. Cita como exemplo a adoção de novos critérios de distribuição de recursos para que mulheres com diminuto apoio partidário tenham maiores chances de custear suas campanhas. Assim como amplitude na divulgação no que trata da importância de se ter um campo representativo que esteja minimamente em concordância com as diferenças e diversidade populacional que o Brasil abarca, que explique ao eleitor a importância das mulheres na política, sobretudo mulheres negras, indígenas, travestis e transexuais, diante da exclusão e supressão intelectual que estas sofrem. “Precisamos provocar modificações na cultura política que segue favorecendo apenas homens brancos cis-heteronormativos eleição após eleição”, finaliza.
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Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira