A morte da cicloativista e pesquisadora de mobilidade urbana Marina Kohler Harkot, na madrugada do último domingo (8), após ser atropelada na Avenida Paulo VI, na Zona Oeste de São Paulo, enquanto andava de bicicleta, trouxe novamente para o centro do debate a questão do ciclismo como meio de transporte nas cidades.
Harkot, que atuou no Conselho Municipal de Transporte e Trânsito e foi coordenadora da Ciclocidade, a Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo, é uma dos três ciclistas que faleceram nas três últimas semanas por atropelamento enquanto andavam de bicicleta.
Segundo Lucian De Paula Bernardi, urbanista, integrante do Ciclocidade e da Câmara Temática de Bicicleta (CTB), do Conselho Municipal de Transportes (SMT) da Prefeitura Municipal de São Paulo, andar de bicicleta, assim como andar à pé, não é em si um meio perigoso. Mas todas as “mortes de trânsito são evitáveis. Logo, todas as mortes de trânsito são inaceitáveis”, afirma Bernardi.
::Doria e Covas: mais mortes no trânsito e 80% da verba de mobilidade em tapa-buraco::
“A gente tem o conhecimento técnico e a gente sabe quais são os problemas de desenho da geometria urbana que a gente precisa corrigir, mudar, para tornar as vias seguras”, disse o urbanista. No entanto, o urbanista aponta para a negligência do governo municipal ao não executar as mudanças necessárias, permitindo que essas mortes ocorram: “A gente sabe quais são as soluções, que é necessário construir espaço segregado seguros, como as ciclovias, calçadas amplas. A gente sabe que são necessárias medidas de acalmamento de trânsito. Mas a gente não faz.”
Para Bernardi, há uma inversão da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), uma legislação federal, cujas diretrizes priorizam os modos ativos de locomoção, como andar à pé e pedalar de bicicleta, sobre os meio motorizados, e os modos coletivos sobre os individuais, como os ônibus. O que se vê, no entanto, é justamente o contrário.
Segundo Bernardi, apesar de 30% das viagens serem feitas de carro, ocupam 80% do espaço. Da mesma maneira, na gestão Doria Covas, aproximadamente menos de R$ 1,2 bilhão foram investidos em mobilidade, dos quais R$ 1 bilhão foram para investimentos em mobilidade individual e motorizada. “Os investimentos feitos em calçadas, para atender os pedestres, segurança viárias, novas ciclovias e corredores de ônibus ficaram com uma parcela muito menor”, afirma o urbanista.
Trata-se exatamente do oposto que orienta a PNMU, como reforça Bernardi: “A Prefeitura insiste em investir em uma coisa que é essencialmente de uma parcela muito pequena e geralmente mais privilegiada da população, enquanto aquilo que é de livre acesso para qualquer um fica às moscas, sem o tratamento que é merecido”.
Um exemplo de medida que poderia ser tomada é a construção de uma malha de ciclovia maior e melhor estruturada. Isso significa ampliar a largura mínima da ciclofaixa, que hoje, de acordo com a diretriz da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), é de um metro e vinte centímetros. Segundo Bernardi, esse tamanho, em avenidas movimentadas, dificulta a circulação de ciclistas.
“Não tem nem a dimensão da largura necessária para que possibilite a ciclologística de qualquer um que passar com uma bicicleta um pouco diferente, cargueira, para fazer entrega. E não tem uma largura para qualquer pessoa que não esteja super confiante na sua habilidade de pedalar.”
Outra medida é a regulamentação do Projeto de Lei (PL) 147, aprovado no final da gestão de Fernando Haddad, que criou o Programa Bike SP e o cartão do ciclista. O programa tem como objetivo incentivar o uso de bicicletas na cidade de São Paulo como forma de transporte equiparando-o ao uso do transporte público.
Na época da aprovação do projeto, o autor do projeto, o então vereador José Police Neto (PSD), afirmou que “o esforço que estamos fazendo é para equiparar. Para isso, R$ 50 no bilhete, no crédito concedido, e uma variável por quilômetro rodado, isso para que você incentive o ciclista. Esses recursos são os mesmos utilizados para o subsídio e virão daquilo que a gente criou no Plano Diretor, que é recurso do Fundurb (Fundo de Desenvolvimento Urbano), que passa a reconhecer a bicicleta como uma das modalidades que você tem que ter incentivo público”.
Para Lucian De Paula Bernardi, o programa é um dos mais importantes já pensados no âmbito do ciclismo. Ele explica que como a cada passageiro que passa pela catraca de um ônibus, por exemplo, a prefeitura paga um subsídio para os “barões de ônibus”. Com o programa e esse subsídio que deixaria de ser pago, a prefeitura dividiria com a pessoa que está andando de bicicleta.
“Quando as pessoas deixam de usar o ônibus, o ônibus fica menos aglomerado, o serviço melhora. Fora as economias que teria com qualidade de vida, saúde e o que economiza do SUS [Sistema Único de Saúde], que não tem que atender tantos acidentes de trânsito. Essa economia já é uma lei que a prefeitura deveria estar usando. Mas, nos quatro anos da gestão Doria Covas, a gente vem cobrando que seja regulamentado o Bike SP e até hoje não foi”, afirma Bernardi.
O urbanista faz parte de uma expressiva parcela da população que, assim como Marina Kohler Harkot, trabalha para melhorar a mobilidade urbana, tornando as cidades caminháveis e reforçando o direito de todos em acessar a cidade sem medo, por meio de todas as possibilidades de locomoção.
O Brasil de Fato entrou em contato com a Prefeitura de São Paulo para comentar o tema. Mas até a publicação desta reportagem, não houve uma resposta.
Edição: Rebeca Cavalcante