A esquerda deve, portanto, defender o voto em lista
"A lição dos exemplos instrui muito mais que a dos preceitos. Mais fere a língua do adulador que a espada do perseguidor. Honra merece quem aos seus se parece" (Sabedoria popular portuguesa)
O critério do sistema brasileiro de eleição de parlamentares é um híbrido anacrônico, esquisito e perigoso.
Nesta eleição as coligações nos proporcionais estão proibidas. Mas a regra fundamental se mantém. Somam-se os votos no partido com os votos nos candidatos para definir o número de vagas e, se atingido um piso que é o quociente mínimo, os candidatos mais votados em cada partido assumem o mandato em ordem decrescente.
É anacrônico porque é uma relíquia de um Brasil agrário em que o voto era, essencialmente, uma aposta na confiança pessoal, porque a maioria da população não tinha acesso à instrução mais elementar.
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É esquisito porque o que prevalece no mundo é o voto proporcional por lista ou o voto distrital. Não há sistemas de representação indireta perfeitos. A lista de partido é progressiva, em comparação com o modelo distrital, porque permite a expressão de correntes de opinião minoritárias. Mas, pelo menos, em ambos os sistemas o eleitor sabe quem será beneficiado pelo seu voto, mas no peculiar híbrido brasileiro não. Sempre é uma incógnita.
É perigoso porque sabota a construção de partidos, e favorece a construção de carreiras individuais desconectadas da defesa de um programa, despolitizando as escolhas. Transforma a rivalidade entre os candidatos de cada partido em um inferno. Não fosse o bastante, o mais grave é que só aqueles que conquistem mandatos têm efetivo peso na direção. As bancadas parlamentares substituem os organismos de direção.
As regras eleitorais definem as condições da luta política. Estas regras incitam, instigam e incendeiam um “canibalismo” político desagregador dos partidos. Porque se estimula uma competição entre os candidatos do mesmo partido tão intensa quanto a luta contra os candidatos dos outros partidos. Não deve nos surpreender que cada candidatura se construa em voo solo como uma aventura pessoal.
Mas a direita não vê problema algum neste sistema. Os partidos da classe dominante adoram este formato porque são partidos institucionais comprometidos com a defesa da ordem. Estão muito bem adaptados ao regime. Prevalecem os oportunistas que não têm compromisso algum com nada a não ser consigo mesmos, e suas ambições de usar o espaço da luta política como uma escada de ascensão social.
Não é acidental a existência de uma floresta de 35 partidos legalizados e a presença de 25 legendas com deputados no Congresso Nacional. Os partidos de aluguel são sublegendas úteis para a formação de blocos políticos amorfos como o centrão, que surgiu durante o governo Sarney, há 35 anos, e que apoiou todos os governos. Em cada município o modelo de sustentação das prefeituras em blocos como o centrão se reproduziu.
O sistema híbrido teve como consequência, em graus variados, uma nefasta convulsão artificial, personalizada e despolitizada dos partidos de esquerda incendiada pelas ambições da corrida eleitoral. Mas o mais grave é que os parlamentares passaram a ter um peso desproporcional na direção e, na prática, conduzem os partidos. Correntes ou dirigentes sem mandato não têm peso.
A convulsão é artificial porque os mandatos se camuflam como correntes de opinião para oferecer alguma dignidade à luta pelo espaço político de sobrevivência. Um mandato parlamentar não é o bastante para justificar a existência de uma tendência política. Uma tendência é um coletivo que se une na defesa de uma interpretação comum do programa do partido. Tendências permanentes que oferecem diferentes projetos e alternativas de direção deveriam poder se expressar sem mandatos, ou através de variados mandatos. Mas não, se o fizerem se enfraquecem.
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A convulsão é personalizada porque a construção de figuras públicas que sejam, eleitoralmente, viáveis não se improvisa. É a obra de uma vida. As legítimas correntes internas aos partidos, articuladas em torno à disputa estratégica, não podem substituir os militantes que ocupam mandatos, porque o perigo de perder o mandato é fatal. A luta pelos mandatos obriga que os parlamentares construam um aparelho profissional próprio. Ou seja, o sistema incentiva carreiras parlamentares de quatro, cinco, seis mandatos em reeleições ininterruptas. Mas o perigo profissional da personalização carismática da representação política é a adulação dos líderes. Ninguém deve ser insubstituível.
A convulsão é, finalmente, despolitizada porque deforma qualquer regime democrático saudável, envenenando a disputa de ideias com um fracionalismo crônico alimentado pela sobrevivência eleitoral.
A esquerda deve, portanto, defender o voto em lista.
*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rogério Jordão