Vitórias recentes de povos indígenas no Supremo Tribunal Federal (STF) aumentam a expectativa da derrota, na própria corte, de uma tese do governo de Jair Bolsonaro, como também de ruralistas, mineradores e grileiros: o marco temporal, que impõe limites aos direitos constitucionais dos povos indígenas à terra, ao defender que, para ter o direito à demarcação, esses povos deveriam ter o território sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988.
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“A decisão favorável ao usufruto exclusivo do território pelo povo Tremembé de Engenho, no Maranhão, e da manutenção da homologação da demarcação da Terra Indígena Piaçaguera, em São Paulo, sinalizam boa receptividade da causa no STF”, disse à RBA o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira.
Nesse sentido, aumenta ainda mais a expectativa de decisão pela teoria do indigenato, que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito originário. Ou seja, anterior ao próprio Estado e que independe de títulos de posse. Pela Constituição Federal, os indígenas têm “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
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Terras indígenas
As duas teses estão em disputa no Supremo por meio do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que trata das demarcações de terras, e que coloca em jogo o reconhecimento do direito indígena à terra.
Trata-se do julgamento de uma ação de reintegração de posse movida pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Funai e o povo Xokleng. O IMA reivindica uma área já identificada como parte de um território tradicional. Como a Corte reconheceu a repercussão geral do recurso, a decisão tomada pela maioria dos ministros terá validade para todos os povos indígenas do Brasil.
O julgamento havia sido pautado para 28 de setembro, mas no dia 22 o presidente Luiz Fux o adiou, sem marcar nova data. “Continuamos em campanha com organizações parceiras, pressionando pelo julgamento”, disse Oliveira.
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De acordo com o secretário executivo, era certa a derrota do marco temporal caso o recurso fosse votado em setembro. “Havia o voto favorável à causa indígena do então ministro Celso de Mello, que se aposentou em 13 de outubro. Em seu lugar entrou Kassio Nunes, próximo dos ruralistas, mas não se sabe ainda que força terá na Corte para influenciar votos.
Gilmar Mendes é simpático ao marco e Alexandre de Moraes não se manifestou a respeito, embora tenha votado favoravelmente a indígenas. Luiz Fux decidiu que o governo deve demarcar o território dos Tremembé. Precisamos de seis votos para fazer prevalecer o direito originário”, disse.
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Povos em luta
Atacadas com frequência por grileiros, as 50 famílias do povo indígena Tremembé do Engenho, de São José do Ribamar, litoral do Maranhão, sofreram com invasões, despejos violentos com destruição de suas casas e de suas roças e a derrubada de árvores. Foram alvo de nove pedidos de reintegração de posse desde 2012. O território é reivindicado pelo ex-deputado estadual Alberto Franco.
No último dia 3, o presidente do STF, Luiz Fux, suspendeu mais um pedido de reintegração de posse por meio de liminar até julgamento do mérito. A decisão garante a segurança jurídica necessária para impedir a expulsão dos Tremembé de suas próprias terras.
Mais do que isso, os legitimou como povo indígena, anulando decisões que sejam tomadas em outras esferas da Justiça que não a federal. “O ministro considerou que cabe à Funai dar sequência ao processo de demarcação”, disse o secretário do Cimi.
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No começo de outubro, o STF negou recurso a um empresário e determinou a manutenção da homologação da Terra Indígena (TI) Piaçaguera, em Peruíbe, litoral de São Paulo. O território de 2,7 mil hectares de Mata Atlântica é pressionado pela especulação imobiliária e outros investimentos.
A relação entre os indígenas e a terra foi ressaltada pelo então ministro Celso de Mello. “É inquestionável a centralidade de que se reveste o tema pertinente às relações que os povos indígenas mantêm com a terra, valendo acentuar que essa matéria tem merecido a tutela e disciplina não só do ordenamento constitucional brasileiro (notadamente a partir da Constituição de 1934), mas, também, a preocupação da comunidade internacional, como resulta claro da Convenção OIT nº 107 (promulgada pelo Decreto nº 58.824/1966) e, mais recentemente , da Convenção OIT nº 169”, disse, em trecho do seu voto.