Enquanto a bancada evangélica protagoniza a defesa das bandeiras mais reacionárias do governo Jair Bolsonaro, candidatos à vereança em diversas cidades do país mostram que o fundamentalismo não é hegemônico na religião.
Para as eleições de 2020, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), houve um aumento de 34% no registro de candidatos que utilizam a designação de pastores e pastoras no nome que aparecerá nas urnas. As que se referem ao cristianismo evangélico representam quase metade das mais de 11 mil inscrições.
Bandeiras como a defesa do Estado Laico, dos direitos sociais básicos e de pautas relacionadas aos direitos humanos e à igualdade de gênero e raça, diferenciam os evangélicos de esquerda e progressistas, que disputam vagas nas Câmaras Municipais, dos neopentecostais conservadores que têm influenciado a política nacional nos últimos anos.
Alguns desses candidatos progressistas compõem a chamada Bancada Evangélica Popular, iniciativa que apoia candidaturas de diferentes partidos em todo o Brasil. Uma delas é a de Samuel Oliveira, que postula o cargo de vereador em São Paulo pelo PCdoB.
Apresentamos uma outra perspectiva da participação dos evangélicos na política
Para ele, que critica o que chama de instrumentalização da fé por parte da direita, é urgente mostrar que há dissidência entre os evangélicos e que muitos repudiam os posicionamentos e ações do governo Bolsonaro.
“Apresentamos, seja para nossos irmãos na fé mas também pra sociedade como um todo, uma outra perspectiva da participação dos evangélicos na política. Uma outra perspectiva de um ser evangélico que não seja alinhado a esse setor mais fundamentalista e conservador”, afirma o candidato.
De acordo com Oliveira, a recepção das candidaturas tem refletido a polarização acentuada da sociedade.
“Há quem consegue se identificar de primeira e facilmente falar: ‘Também sou evangélico e também penso diferente, que bom que há mais pessoas que professam na fé evangélica progressista’. Mas há também aqueles que rejeitam porque e se posicionam diante do senso comum”, avalia.
Em nome de uma “nova bancada evangélica com perspectiva popular”, o candidato defende o fim da proximidade dos evangélicos com setores econômicos dominantes e excludentes. “Isso não tem nada a ver com o Evangelho de Cristo, não tem nada a ver com a palavra, com os princípios do cristianismo, com a nossa fé”, destaca.
Hoje o que vemos de políticos evangélicos é a galera fascista, conservadora, que quer destruir as pessoas, controlar os corpos. Temos que disputar o que é ser evangélico
Já Vinícius Lima, que também integra a Bancada Evangélica Popular, pretende representar a parcela da juventude evangélica critica às ideias da extrema direita em São Paulo. Candidato a vereador pela Rede Sustentabilidade e co-criador do projeto SP Invisível, Lima concorda que as eleições municipais são uma oportunidade de disputar essa narrativa.
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“Hoje o que vemos de políticos evangélicos é a galera fascista, conservadora, que quer destruir as pessoas, controlar os corpos. Assim como qualquer outro político, o evangélico deve buscar os direitos humanos, lutar pela vida contra a exclusão de pessoas da cidade, lutar contra a desigualdade”, defende, acrescentando que procura não se rotular como 'evangélico progressista'.
“Eu prefiro dizer que sou evangélico porque o (pastor Silas) Malafaia não fala ‘eu sou evangélico fascista’. Temos que disputar o que é ser evangélico porque da mesma forma que esse imaginário foi construído, pode ser desconstruído”, ressalta Lima.
Segundo ele, que tem como principal bandeira a garantia de direitos da população em situação de rua, defender o Estado Laico sem aprofundar o debate entre religião e política é insuficiente.
“Não vamos poder mais falar só com a tiazinha da quebrada de dois em dois anos pra virar o voto do Bolsonaro para o Haddad (candidato à presidência pelo PT em 2018). Temos que conviver com ela diariamente porque é isso que o pastor do lado dela está fazendo. Perguntando se ela está bem, se está precisando de coisa na geladeira”, exemplifica.
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“Consequentemente ela vai votar no cara que o pastor falar. Não é ignorância. É lealdade, é afeto, é outra instância que também é política. E a esquerda precisa fazer isso porque a direita não vai parar de falar de Deus”, argumenta Lima.
Em todo Brasil
Em Recife (PE), Luiz Eustáquio (PSB), Almir Fernando (PCdoB), e Joel Marques (PSOL) são alguns políticos evangélicos que pretendem se consolidar como alternativa ao fundamentalismo cristão na casa legislativa da capital.
Esse é também o objetivo de Dagmar Santos, candidata pelo PT em Salvador (BA), para quem os políticos da bancada evangélica contrariam os princípios do cristianismo ao “utilizar da fé, dos púlpitos, para fazer uma política de genocídio da população negra, de mulheres pretas e de jovens periféricos”.
Ela destaca a importância das mulheres evangélicas ocuparem a política cada vez mais para enfrentar as pautas que afetam diretamente as brasileiras.
“Lutarmos para alcançar um pleito legislativo é algo imprescindível para que possamos vencer toda essa narrativa de ‘destruição da família’, que não é verdade, e lutar para defender quem mais precisa porque foi o que Jesus realmente pregou”, avalia a petista.
Tanto Santos quanto Ivanete Xavier, integrante da Rede Mulheres Negras Evangélicas no Brasil e candidata a vereadora em Curitiba (PR), são apoiadas pela Bancada Evangélica Popular.
Já em Belo Horizonte (MG), a candidatura coletiva “Plural”, composta por dois homens e duas mulheres, todos jovens evangélicos, se contrapõe aos tradicionais candidatos ligados às igrejas e defende a justiça social e a diversidade pelo Unidade Popular (UP).
Representatividade importa
Sem abrir mão por um instante de dizer que é evangélica, a Reverenda Alexya Salvador pertence à Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), congregação evangélica aberta à comunidade LGBT.
Mulher trans formada em teologia e professora da rede pública estadual, Alexya foi candidata a deputada estadual pelo Psol de São Paulo em 2018 e, apesar de não ter sido eleita, recebeu mais de 10 mil votos.
É claro que os fundamentalistas religiosos vão deslegitimar toda a minha vivência, até porque eu não faço sinal de arminha na igreja. Entretanto, igrejas progressistas olham para a minha candidatura como um projeto coletivo
Neste ano, foi vice da deputada federal Sâmia Bonfim nas prévias do partido para a disputa pela prefeitura paulistana. Agora, na corrida eleitoral pelo posto de vereadora, ela acredita que sua candidatura simboliza todos os avanços necessários na cidade para travestis e transexuais.
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Primeira reverenda trans de uma igreja cristã na América Latina, Alexya e seu marido foram o terceiro casal LGBT a ter uma certidão de casamento; ela foi também a primeira mulher trans a adotar uma criança no país.
Para ela, sua candidatura foi recebida com esperança pela comunidade cristã: “É claro que os fundamentalistas religiosos vão deslegitimar toda a minha vivência, até porque eu não faço sinal de arminha na igreja. Entretanto, igrejas progressistas que repensaram seu posicionamento político, social e de inclusão, olham para a minha candidatura como um projeto coletivo, combativo e de oposição à bancada evangélica na Câmara Municipal”.
A candidata deixa claro seu repúdio ao governo Bolsonaro e ao discurso do presidente, e de seu filhos, em nome do cristianismo.
“Os valores que eles representam legitimam o machismo, o patriarcado, a misoginia, o racismo, a LGBTIfobia. Seu projeto de governo tem horror ao pobre e ao marginalizado. Nem precisa ser cristão para perceber que esses valores são contrários a tudo aquilo que Jesus ensinou e deu como exemplo”.
Para Alexya, o governo coloca em prática uma “necropolítica sem fim”. “Jesus foi morto pelo Império Romano justamente por se opor aos valores que Bolsonaro defende”, conclui.
Edição: Rogério Jordão