Um projeto da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) tem feito, desde setembro, o que deveria ser de competência do presidente Jair Bolsonaro e do Governo Federal: produzir e disseminar informações sobre o coronavírus em línguas originárias.
Quase 40 mil indígenas, de 161 povos, já foram infectados pela covid-19 no Brasil. Destes, 871 faleceram segundo o Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena. No Mato Grosso já são 138 mortes em 12 etnias, são elas: Xavante, Kalapalo, kurâ Bakairi, Bororo-Boe, Umutina, Chiquitano, Kamayurá, Apyãwa Tapirapé, Paresi, Kaiabi, Rikbaktsa e Kuikuro. No país são mais de 5,5 milhões de infectados e 162 mil mortes.
O vírus, que chegou às comunidades e terras indígenas através de garimpeiros e de pessoas da cidade, vêm dizimando essa população dia a dia. Com 305 povos e 274 línguas diferentes em todo o país, a população indígena ficou meses à mercê do vírus sem que as informações sobre o que era a covid-19 e como se proteger dela chegassem às comunidades. As notícias e orientações sobre cuidados batiam sempre na mesma barreira: a língua.
De acordo com o Censo IBGE 2010, 43 povos estão no estado de Mato Grosso, sendo mais de 50 mil distribuídos em várias terras indígenas. Segundo a Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (FEPOIMT) o estado concentra 86 terras indígenas em 62 municípios.
Buscando mudar esse cenário, a doutora Isabel Teresa Cristina Taukane, primeira indígena formada pelo ECCO-UFMT (Estudos de Cultura Contemporânea – Universidade Federal de Mato Grosso) idealizou a iniciativa. Professores do Departamento de Comunicação da universidade montaram um projeto de extensão desenvolvido em conjunto por voluntários, indígenas e alunos da UFMT para promover, em um primeiro momento, a divulgação de informações importantes sobre o novo coronavírus aos povos indígenas de sete etnias em Mato Grosso (Bororo, Chiquitano, Kurâ-Bakairi, Paresí, Tapirapé, Umutina e Xavante).
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“Já que a base da cultura dos povos indígenas é a comunicação oral e qualquer material impresso poderia ser vetor do vírus nas aldeias, a ideia foi criar pequenos arquivos de áudio, com quatro a seis minutos nas línguas faladas pelas etnias, para serem distribuídos em mensagens e grupos de WhatsApp”, explica o site do projeto.
Batizado de ÁudioZap Povos da Terra, o projeto, iniciado em setembro, visa fortalecer a rede de informações preventivas para o enfrentamento ao coronavírus.
Para Andréa Ferraz Fernandez, professora de Cinema e Audiovisual da UFMT e coordenadora-geral do projeto, é preciso respeitar a cultura, os saberes e tradições indígenas. "Os povos indígenas têm uma realidade bastante diferente das populações não-indígenas. O que nós tentamos fazer com este projeto é um empoderamento das pessoas, das lideranças de maneira com que eles possam incluir aos seus conhecimentos tradicionais os conhecimentos e as informações específicas para o coronavírus que estão sendo descobertos agora", explica.
A importância desse projeto é a união dos dois tipos de saberes, os científicos e os tradicionais
"Nós acreditamos que a importância desse projeto é a união dos dois tipos de saberes, os saberes científicos e os saberes tradicionais. Porque não estamos impondo a ciência em cima da tradição, nem tampouco esquecendo ou diminuindo a importância da ciência. É um diálogo que tem que ser feito, traduzido não só para a língua indígena, para a língua originária, como para a maneira de entender o mundo dos indígenas, que é diferente da maneira que nós, não-indígenas, entendemos", completa a coordenadora.
A 15ª edição do “programa” foi publicada na sexta-feira (13), com informações sobre as medidas de segurança para o dia de votação nas eleições municipais. Em cada produção, especialistas e profissionais de saúde dão orientações a respeito das formas de transmissão e contágio, além das complicações decorrentes da covid-19, bem como as formas de tratamento e combate. Há ainda a fala de representantes dessas comunidades em português e nas línguas das respectivas etnias, contando as experiências de cada lugar com a pandemia e suas estratégias.
O Whatsapp foi escolhido pela maior facilidade de disseminação e por ser mais acessível para o público atendido
As locuções em português são realizadas pelos integrantes do projeto de extensão e as falas nas línguas indígenas são gravadas por celular pelas lideranças de seus povos. São eles e elas que traduzem as informações científicas sobre a doença e sua prevenção de maneira a ser melhor compreendida pelos indígenas de sua nação. O material finalizado volta às lideranças e já está correndo as aldeias, de celular em celular, ampliando dia a dia a rede que recebe e transmite os conteúdos.
“O Whatsapp foi escolhido pela maior facilidade de disseminação e por ser mais acessível para o público atendido. Outras redes sociais também foram utilizadas para a divulgação, como Facebook, Instagram e YouTube”, explica Felipe Seraine, estudante de Jornalismo da UFMT que integra a equipe do projeto.
São 18 integrantes, entre alunos e professores, e há também falantes voluntários de cada etnia atendida. Michael Esquer, estudante indígena do sexto período de jornalismo da universidade, explica que os falantes voluntários podem ter rotatividade, já que é preciso conciliar com as demandas da própria comunidade.
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Atualmente, os falantes do projeto são: Tereza Cristina ( Paresi), Leomir Uri'õ (Xavante), Mogoxe Bakairi (Bakairi), Jessica Apadonepa (Umutina) e Luciene Jakomeareagecebado (Bororo). Outros também já colaboraram com o projeto: Kamoriwa'i Elber (Tapirapé), Sebastião Arruda (Chiquitano), Tseredzaró Xavante (Xavante), Andreia Taukane (Bakairi), Antonio Bororo (Bororo), Adriana Kavopi (Bakairi), Libencio Nhihoriwê'êi'õ (Xavante), Tserebdzaiwê Morodzarawe (Xavante) e Kaya Agari (Bakairi).
“Na sexta-feira divulgamos e mandamos o roteiro pras lideranças, na segunda-feira recebemos os áudios nas línguas originárias, entre segunda e sexta os programas são editados e saem na sexta-feira seguinte, prontos para disseminação”, explica Esquer.
Os episódios têm entre 4 e 6 minutos e semanalmente chegam às comunidades. Abaixo uma lista de todos os programas já produzidos:
Episódio 1: Como lavar as mãos
Episódio 2: Primeiros sintomas da covid-19
Episódio 3: Cuidado com anciões
Episódio 4: Uso de máscara
Episódio 5: Higienização de objetos e alimentos
Episódio 6: Isolamento social
Episódio 7: E se precisar sair da aldeia?
Episódio 8: Fabricação de máscaras caseiras
Episódio 9: Alimentação saudável
Episódio 10: Posso voltar pra aldeia?
Episódio 11: Fatores de risco
Episódio 12: As novas descobertas sobre a covid-19
Episódio 13: Ervas com propriedades medicinais
Episódio 14: Ambientes bem ventilados e hábitos no frio ou chuva
Episódio 15: Medidas de segurança para o dia de votação (ainda não disponível)
Equipe
Além da Dra. Isabel Taukane, que coordena a equipe de Interação e Mediação, e Andréa Ferraz Fernandez, que coordena a de Pesquisa e Pauta, outros docentes integram o projeto, são eles: Letícia Capanema e Luãn Chagas, coordenadores da equipe de Roteiro e Pós-produção e Vinicius Souza, coordenador de Divulgação Científica e de Mídia.
Integram o trabalho os estudantes Camila Aparecida Modesto Rondon, Danilo Cavalcante Brambila de Barros, Diego Roberto Silva Cavalcante, Emília Pewa'u Top'Tiro, Felipe Gleidson Seraine Gonçalves e Silva, Fernanda Cristina Ferreira Fidelis, Isabele Yule Hirano, Jenisson Edy Viana Bartniski, Luísa Guimarães Gratão, e Rogério Antônio de Lima Júnior. Os estudantes são também representados por Danilo Cavalcante, Diego Cavalcante, Emília Top'Tiro, Felipe Seraine, Fernanda Fidelis, Isabele Yule, Jenisson Bartniski, Luiza Gratão, Michael Esquer e Rogério Júnior.
Durante a pandemia, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) lançou o Emergência Indígena, site que reúne informações e dados sobre infecção e morte de indígenas no Brasil por causa do coronavírus.
Edição: Rogério Jordão