Carolina Maria de Jesus (1914-1977) dizia que o Brasil deveria ser governado por alguém que já passou fome.
Quando essa mulher negra, escritora, catadora, favelada e - em breve - doutora (honoris causa, em homenagem da Universidade Federal do Rio de Janeiro) articula a ideia acima, os temas da representação, da desigualdade racial e de classe, do acesso a direitos fundamentais, se apresentam de modo retumbante.
O Brasil de hoje é o fruto de um processo de violência e exploração. E o fruto gerou sementes. As práticas de espoliação da terra, de abuso sobre os corpos, de violência, da limitação no acesso aos bens públicos podem ser vislumbradas como a tônica do desenvolvimento das nossas instituições. E sabemos que este debate se sustenta no Brasil e no mundo por meio de estruturas coloniais e capitalistas.
E assim, em sua arguta afirmação, a doutora Carolina Maria de Jesus insere mais uma linha necessária ao tema da representação: a experiência cotidiana, aquela da maioria dos brasileiros que passam por absurdas desumanidades, também faz parte da política.
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Passar fome fala sobre a urgência de diminuir o lucro para que todos possam comer. Sobre escolhas relacionadas à destinação de recursos, na elaboração e mobilização de um projeto político, na relação com a solidariedade e com as práticas comunitárias, com acesso à água, iluminação, educação... Ou seja, com tudo!
E aqui não há nenhum fetiche pelo lugar da fome ou da dor. Mas parece necessário lançar luz sobre como a exploração demagógica e “eleitoreira” de temas tão presentes na vida da maior parte da população, apresenta o desconhecimento ideológico que a política mascara sobre as pautas centrais diante da urgência de tantas fomes.
No Brasil apenas 5 bilionários detêm mais da metade da riqueza do país. E é possível afirmar que esses, já detentores de privilégios, ainda são os destinatários prioritários de direitos. A negação da centralidade de temas como a fome e o genocídio da população negra é das práticas mais nefastas e que buscam retirar das proponentes históricas de soluções coletivas o seu lugar de protagonismo: essas são as mulheres negras.
Refletir acerca dos corpos que pautam a política pela sua super representação diante daqueles que hoje emergem como o novo, ainda sub representado, nos ajuda a identificar como se desenha o imaginário do poder no Brasil, a sua dissociação com a cara do povo e com as necessidades das maiorias.
E o que constrói esse imaginário? O que leva o cidadão pensar que candidatas e parlamentares mulheres e negras apresentam propostas e políticas com suposto identitarismo, quando são essas que pensam ações plurais para comunidades, quilombos, bairros, favelas, efetivamente em defesa do povo?
O enunciado é literalmente claro: fazer política de modo fragmentado, e aí sim, identitário, é o legado político de muitos homens. A única coisa que nos faz presumir que as propostas dos políticos tradicionais são em prol da coletividade é o corolário da representação, desta vez, distorcido.
Hoje temos exemplos suficientes de conquistas sociais fruto de pressões populares e que foram cabalmente destruídas por políticos tradicionais, que são a cara da política, que tem anos de experiência e que nem de perto se referem ao bem da coletividade, como o ataque aos direitos dos trabalhadores por meio da reforma trabalhista, para citar apenas um exemplo.
De outra parte, foi através das mulheres e das mulheres negras que obtivemos muitas vitórias na direção da redução das desigualdades e defesa da vida, como projeto de lei da ex-senadora Regina Souza (PT-PI, entre 2015 e 2019) que propunha a substituição da prisão preventiva por domiciliar das mulheres lactantes. Projeto esse que foi alterado por um homem, mudando o comando legal de “substituirá” para “poderá substituir”. Mas sobre esse tema seria necessário outro texto.
Você pode estar se perguntando, mas se as mulheres e as mulheres negras produzem leis com tanta adequação social, como chegamos até aqui, nesse fundo do poço sem luz? Em uma pandemia em que as recomendações sanitárias e científicas são ignoradas e atacadas em favor do lucro, da morte e da superexploração da população negra?
A reabertura dos estabelecimentos durante o curso da maior pandemia do último século ocorreu porque, dentre outras coisas, a curva de contágio entre a classe média decresceu e enfim, entre os maiores vitimados temos principalmente a população pobre, preta e periférica.
Aqui começa a ficar clara a relação entre passar fome e a representação, que é uma alegoria sobre conhecer na prática os problemas concretos das maiorias.
A igualdade formal, principiológica, é adequada aos textos de lei, mas a implementação de mecanismos que revolucionem a institucionalidade não virá por meio de mãos, corpos e mentes manchados de sangue, com barrigas cheias em casas outrora isoladas (hoje já nem tanto), assépticas, limpas pelo serviço “essencial” de uma doméstica neo escravizada. E a igualdade material requer mais direitos, que passam por condições mínimas de dignidade, todas absolutamente relevantes: alimentação, luz e representação política real.
Que bom que a mais nova Doutora do Brasil já nos avisou, como uma boa amiga.
Fiquemos atentos.
*Roberta Eugênio é mestre em Direito, Assessora Jurídica Parlamentar e Pesquisadora
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rogério Jordão