Ingra Tadaiesky*
Com grande parcela da população amapaense passando por necessidades graves, desde o último dia 3 de novembro, quando boa parte do estado ficou sem o fornecimento regular de energia elétrica por conta de um apagão, a mobilização de Organizações Não Governamentais (ONGs) e da sociedade civil tem feito a diferença na assistência aos que mais precisam. Cerca de um quarto da população do estado vive em uma situação de "alta vulnerabilidade social", conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de 2010.
Com a população enfrentando a falta de produtos básicos, entidades da sociedade civil e indivíduos têm se organizado para arrecadar água, cestas básicas e até contribuições em vaquinhas online.
Organização no apagão
O coletivo Utopia Negra é organizado por pessoas da periferia, da universidade, professores e profissionais de diversas áreas, e é comprometido com a luta antirracista.
Neto Medeiros, pedagogo e um dos representantes do coletivo, diz que o objetivo é promover uma vida mais digna para as pessoas. “A gente está se organizando desde o início do apagão (em 3 de novembro), para ajudar as pessoas que não estão tendo como consumir água potável”, conta o pedagogo.
O coletivo organizou vaquinhas online, disponibilizou uma conta poupança destinada a doações e está coletando baldes, galões e garrafas de água no bairro Congos, em Macapá.
Medeiros conta que a água quando chega é suja e isso acontece há muito tempo, embora a situação tenha se agravado com a falta de abastecimento da Companhia de Água e Esgoto do Amapá (CAESA), desde o início do apagão.
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Marília, que é moradora de uma área de ressaca, conta que de terça-feira (3) até o domingo (8), não havia água em sua casa. “Emprestamos garrafões de água para poder ter para beber”, conta.
Nos primeiros sete dias do apagão, o Utopia Negra conseguiu 190 galões de água para distribuir para aproximadamente 150 famílias das zonas mais afetadas de Macapá.
População se mobiliza
Além de coletivos sociais, pessoas fora de associações e instituições organizadas também se mobilizaram para ajudar. Hian Marcones e o Mc Super Shock se reuniram com amigos para coletar doações e distribuir água para as comunidades mais afastadas.
Hian conta que tudo começou na sexta-feira (6), quando amigos diabéticos estavam precisando de gelo para armazenar insulina. O grupo coletou uma grande quantidade e o que sobrou foi destinado para doações.
“A gente começou a distribuir em lugares mais afastados que estavam precisando, fomos para o conjunto habitacional Oscar Santos e lá nos deparamos com outra realidade, porque eles não estavam precisando de gelo e sim de água potável”, conta Hian.
O conjunto habitacional Oscar Santos é localizado na zona norte de Macapá, a 11km do centro da cidade.
Shock conta que no Marabaixo, bairro onde reside, faltou água. “Eu não vi ninguém do governo do estado levar carro pipa nem nada”, relata o Mc.
Moradores que mantiveram o acesso à água, disponibilizavam o que tinham para ajudar. Essa corrente de amparo se estabeleceu em toda a cidade.
“Não é uma associação nem nada, são só pessoas querendo ajudar outras pessoas”, explica Shock.
O sentimento de cooperação soma-se ao sentimento de indignação. “O sentimento é de revolta, não tem outra palavra”, completa Marcones.
Protestos
Durante a segunda onda de contaminação do covid-19 no estado, a raiva é tanta que a população se encontrou em uma sinuca de bico: ou ir para as ruas protestar para reivindicar seus direitos básicos e consequentemente se expor à possibilidade de contaminação, ou ficar em casa passando por necessidades e ser invisibilizado pelo Estado.
O Amapá se concentra na faixa de Risco Muito Alto, de sinalização roxa, mais alta que a vermelha, segundo o Boletim Epidemiológico do Estado.
“Eu acho isso extremamente arriscado sim, mas o que mais podemos fazer? Essa é nossa maneira de dizer que nós estamos insatisfeitos e que a gente precisa de mudanças imediatas, não podemos esperar, a gente está passando por um caos”, contou o psicólogo Jess Charles, durante uma manifestação, na quarta-feira (11), em frente ao Palácio do Setentrião, sede do governo estadual.
Segundo a Polícia Militar, houve mais de 80 atos de protesto no Amapá na semana seguinte ao apagão do dia 3. Essas manifestações contaram com queima de pneus para o bloqueio de vias e avenidas.
Quem mais sofre são os trabalhadores
No meio do caos, quem tem sofrido com especial intensidade são os trabalhadores da área de serviços, como empacotadores, caixas de supermercados e frentistas.
J, que preferiu não ser identificado, é empacotador em uma grande rede de supermercados da cidade de Macapá, e relata o desgaste físico e mental que passou nos primeiros dias de apagão.
“O apagão deixou muita gente abalada, cansada. Você vai para sua casa cansado e quer descansar, chega lá e não tem energia é uma situação bem complicada”, conta.
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Havia filas em todos os supermercados, postos de combustíveis e caixas eletrônicos existentes na cidade. J conta que esse movimento intenso desestruturou o respeito às normas de distanciamento social estabelecidas para o enfrentamento do covid-19.
“Ficou uma coisa bem complicada até de se falar. A fiscalização não agiu. Faltou respeito e consideração pelos funcionários. É cada vez mais prejudicial pra gente”, conta o empacotador.
"Nós trabalhadores somos mais prejudicados em relação a isso. A gente não pode questionar porque nossa voz não é ouvida”, desabafa.
L é frentista em um posto de combustível que permaneceu em funcionamento durante o apagão. Ele conta que estava de plantão no dia que tudo começou. “As pessoas começaram a chegar para pegar diesel para pôr nos geradores, e quem via logo pensava que ia faltar gasolina. Não aconteceu nenhuma falta de gasolina na cidade, porém as pessoas encheram os postos”, relata ele.
A carga horária aumentou, ele conta que precisou chegar mais cedo e sair mais tarde que o habitual. Para além do expediente, os ânimos estavam exaltados nas filas dos postos.
“Aqui a gente tentou manter o mais organizado possível, mas tivemos casos de pessoas que furaram filas, e as outras acabaram não gostando. A gente tenta manter a calma, mas acaba sendo xingado, eu mesmo fui xingado horrores”, conta L.
Os feirantes e comerciantes sofreram grandes perdas de mercadorias. Mauro Sandin trabalha na tradicional 'Feira da 13' há mais de 10 anos e conta que teve um prejuízo imenso. “Não tem mercadoria para a gente trabalhar. Estou há 3 dias sem serviço porque não teve como refrigerar os produtos”, conta ele.Estes comerciantes trabalham com peixes, camarão e carnes cruas. O armazenamento do material era feito em freezers. Com o apagão, quase tudo estragou e muita coisa foi descartada.
Outro agravante foi que alguns comerciantes aumentaram o preço do gelo. “A gente não tinha gelo e quando chegou foi um absurdo: 30 reais”, protesta Mauro.
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Armando Maia é dono de um açougue no bairro do Congós em Macapá e conta com pesar de suas perdas: “Eu perdi muita coisa mesmo, não gosto nem de comentar porque fico triste”, lamenta.
O açougueiro perdeu cerca de R$3.500 em carnes que apodreceram. Como ele, inúmeros trabalhadores do estado também perderam sua fonte de renda.
Rodízio falho
Após o apagão, a energia voltou de forma parcial na cidade de Macapá, com um revezamento de 6 em 6 horas estabelecido pela Companhia de Energia do Amapá (CEA). A partir do dia 12 de novembro iniciou-se o rodízio de 3 em 3 horas.
Macapaenses denunciam, porém, a ineficiência do rodízio, alegando que em suas casas os horários não são cumpridos. “Meu vizinho queimou a bomba da caixa d’água, outro queimou a geladeira, perdemos tudo. Está difícil mesmo”, relata a confeiteira Ivane Leite.
Apesar de uma grande parcela dos bairros estar sujeita ao revezamento, há ainda aqueles que já estão com energia 24h. “A gente viu que os lugares mais elitizados da cidade estão com energia 24h, enquanto a periferia não tem, mesmo o poder público dizendo que perto desses locais tem serviços essenciais como hospitais, a gente sabe que é mentira”, explica o estudante Guilherme Del Castillo.
Além da desigualdade social explicitada pelo rodízio elétrico, a população da periferia do estado vem sofrendo com a resposta repressiva da Polícia Militar. Fausto Suzuke é professor e ativista, e conta que foi baleado durante uma manifestação no bairro Congós. "A gente não teve muita chance de falar pra qualquer tipo de autoridade porque imediatamente um carro da ROTAM chegou e no mesmo tempo que se pisa no chão eles já estavam atirando balas de borracha”, disse o professor.
Fausto foi atingido no braço e na mão e ele conta que no mesmo dia um adolescente de 13 anos foi ferido no olho. “Eles são covardes, têm o Estado todo nas costas, sustentado por nós mesmos, ou seja, somos nós pagando pelo Estado que nos reprime. Eles não são gente”, desabafa o professor .
* Ingra Tadaiesky é estudante de Jornalismo e mora em Macapá
Edição: Rogério Jordão