O Brasil discute se libera ou não a importação de um trigo transgênico recentemente aprovado pela Argentina, chamado de HB4. No país vizinho, a produção e comercialização foram liberadas pelo governo no começo de outubro.
A decisão brasileira está a cargo da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que, em 22 de outubro, realizou uma audiência pública com pesquisadores, representantes da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e da indústria para ouvir considerações sobre o produto.
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De um lado, o mercado transnacional defende que a variação torna o trigo resistente à seca e aumenta a produtividade em quase 50%. No outro canto do debate, pesquisadores pontuam a mutação faz com que o produto seja resistente ao herbicida glufosinato de amônio, o que certamente leva ao envenenamento do alimento.
Para entender melhor o que é o trigo transgênico e quais interesses estão por trás da importação dele, o Brasil de Fato conversou com o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, ex-representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio (2008-2014) e coordenador do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos.
Veja a entrevista completa:
Brasil de Fato: O que está em jogo na decisão de importar ou não o trigo transgênico?
Leonardo Melgarejo: Como a Argentina compra coisas do Brasil e paga com seus produtos, um dos produtos importantes é o trigo. Então, há um interesse de negociação, que faz com que precisemos do trigo deles para poder vender coisas para eles.
A Argentina agora, dominada como está pelas corporações internacionais, tem uma empresa que tem acordo com outras transnacionais e tem ações na Bolsa da Nova Iorque. E ela desenvolveu um trigo que é tolerante ao herbicida chamado glufosinato de amônio. É um herbicida superperigoso. Você faz testes com ele na água e os sapinhos, os girinos, perdem o controle do comportamento. Isso significa que afeta o sistema nervoso central daqueles animaizinhos.
Com certeza, vai afetar o sistema nervoso central de todos os animais. Nossas crianças que comerem o pãozinho com esse veneno vão ter esse tipo de problema cognitivo, e nossos velhinhos também vão ter chance de doença mais rápida.
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Um outro problema é que nós sabemos que todo o desenvolvimento, de todos os organismos vivos, se dá por divisão celular – uma célula, com seu núcleo, se divide em duas células, cada uma com seu núcleo, que se deriva em quatro. Assim se formam todos os tecidos, todos os sistemas orgânicos, se formam os organismos.
Os efeitos são imprevisíveis.
Um bebê passa por essa divisão celular. Na presença de glufosinato de amônio, essa divisão celular gera aberrações – células sem núcleo, células com dois núcleos, gera programas de desenvolvimento que são rotas alteradas que não sabemos o que vai dar. Vários tipos de câncer se associam a isso, além de Parkinson e Alzheimer.
Para os jovens, aqueles na flor da idade, afeta o sistema reprodutivo. Portanto, é um veneno absolutamente perigoso em todas as fases da vida e que, se estiver dentro de um produto que nós comemos todos os dias, em todas as casas, os efeitos são imprevisíveis.
A Argentina, as pessoas que defendem o trigo, dizem que nós não precisamos nos preocupar com o trigo no Brasil. É claro que nós temos que nos preocupar. Eles dizem que nós não precisamos nos preocupar porque eles vão exportar só a farinha.
Isso tem uma outra significação. As nossas padarias compram grão da Argentina, na sua maior parte moídos nas nossas panificadoras, nos nossos moinhos, nas nossas indústrias de panificação. Toda essa gente vai ficar desempregada se já vier em forma de farinha.
A indústria argentina afirma que nós não devemos nos preocupar porque na Argentina esse herbicida não é usado. Eles afirmaram isso na audiência pública, mas não é verdade. Existem mais de 15 produtos à base de glufosinato de amônio autorizados para uso na Argentina. Os mais antigos, de 2012, os mais recentes, de 2019.
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O que é o trigo modificado geneticamente? Como funciona a tolerância, tecnicamente?
Se nós jogarmos qualquer líquido no chão – tinta, álcool, herbicida –, algumas bactérias, alguns microrganismos não vão morrer. Eles têm uma proteção natural a esse produto.
Se descobriu que existem algumas bactérias que não morrem com determinados herbicidas. Então, a planta geneticamente modificada é uma planta que tem em seu interior, colocado de maneira forçosa, através de um processo de experimentação, uma informação que provém de uma bactéria, que permite esse contato e sobrevivência ao veneno.
Por que essa modificação e envenenamento interessam à indústria? Sai mais barato?
A grande indústria tenta usar a informação do trigo tolerante ao herbicida como um cavalo de troia. Eles dizem: esse trigo é tolerante à seca e também ao herbicida, porque ele tem um gene de girassol que supostamente conferiria maior capacidade sobreviver em condições de estresse hídrico, o que não é comprovado. O que é comprovado é que não morre com o glufosinato de amônio.
Qual é o interesse deles? Eles vão poder jogar, de avião, o veneno em cima da lavoura sem se preocupar. Eles vão matar todas as outras gramíneas que estiverem dentro da lavoura de trigo sem causar nenhum problema para o trigo.
O prejuízo acaba no consumidor, sob o ponto de vista do risco.
Essa é uma vantagem, porque se tu plantares em uma área de 1 mil, 5 mil hectares, é difícil tu andares controlando de local a local. É mais fácil jogar o veneno por cima de todas as plantas. Esse jogar o veneno por cima de todas as plantas, independentemente do cuidado, facilita o gerenciamento. Essa facilidade economiza custos.
O prejuízo acaba no consumidor, sob o ponto de vista do risco, e acaba no fato de que, se tu tens possibilidade de grande escala em uma lavoura, se tu consegues controlar todas as plantas que vão concorrer por água e por luz, em 10 mil hectares, em uma passada de avião, tu leva uma vantagem relativa em relação aos teus vizinhos.
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Existe um processo de análise na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) sobre a liberação do trigo transgênico. Em que pé está essa análise e quais seriam as grandes consequências caso a importação seja liberada?
Se houver autorização, será para a entrada do grão argentino ou da farinha argentina. Veja bem: se os argentinos dizem que não vão usar o herbicida, mas os agricultores vão comprar uma semente que vai ter tolerância ao herbicida que é vendido livremente no seu país, dificilmente vão deixar de usar.
Nós não temos problema de trigo no Brasil, já que temos uma cadeia produtiva estabelecia.
Se entrar esse trigo aqui no Brasil, se entrar na forma de grão, dificilmente ele vai deixar de ser plantado, porque estão dizendo que ele é resistente à seca, estão apresentando ele como um ‘Ovo de Colombo’ da engenharia genética. Já fizeram isso com a soja. No ano passado foi aprovada no Brasil uma soja que tinha o mesmo transgene de suposta tolerância à seca, mas que sofreu com a seca. A mesma modificação parece não ter funcionado bem.
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De qualquer maneira, um trigo que carrega dentro dele um veneno que pode causar tipos de alteração genética que afeta o processo de divisão celular e que, portanto, compromete a fase de crescimento de todos os seres, que afeta a capacidade reprodutiva e que acelera problemas neurológicos associados a desorientação, é por demais perigoso que a gente autorize estar nas mesas de todos os brasileiros, todos os dias, sem razão de ser.
Não é mais produtivo, nós não temos problema de trigo no Brasil, já que temos uma cadeia produtiva que já está estabelecida.
Existe autonomia de produção de trigo no Brasil?
Não. O Brasil importa 50% ou mais do trigo que consome. E importa da Argentina, que não é trigo transgênico. Mas, na audiência pública que aconteceu, representantes da indústria moageira de trigo no Brasil disseram que estão dispostos a suspender as compras da Argentina se o trigo geneticamente modificado for autorizado para importação, que eles vão importar de outro lugar.
Quem tem interesse e vantagem são as grandes transnacionais.
Vai haver um problema de desabastecimento se essa autorização for concedida pela CTNBio. Há o risco da saúde, inevitável, alarmante, se você comer um pãozinho com esse veneno.
Nós não temos nenhum interesse e nenhuma vantagem. Quem tem interesse e vantagem são as grandes transnacionais, que tratam todos os seus quintais, no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Paraguai, na Bolívia, como sendo uma coisa só, ignorando nossa necessidade de soberania e autonomia.
Então tanto quanto Brasil e Argentina são vítimas da grande indústria nesse caso?
Sim. Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia estão ameaçadas de perda da soberania nacional, da capacidade de decidir sobre o seu país. Essa situação vem sendo discutida na literatura como o avanço da república sojeira.
A grande república sojeira seria mais ou menos o inverso do que o Simón Bolívar quis para a América Latina, que era uma pátria unida, cada uma mantendo a sua autonomia. A pátria sojeira seria uma pátria desunida, cada pedacinho respondendo à sua maneira ao império que domine de fora.
Quais alternativas temos dentro desse cenário? O que podemos fazer como país e como governo para evitar que isso aconteça? O caminho é a autonomia, a soberania de produção?
Nós podemos ter soberania nacional na produção de nossas as nossas necessidades alimentares. Esse esforço que o Brasil faz, ocupando terra de qualidade para exportar soja, para alimentar frango ou porco no exterior, poderia ser substituído por um esforço para produzir alimentação limpa, para nós e para os outros países. Para isso, precisaríamos de políticas públicas voltadas a esse sentido.
Durante a breve existência do Ministério do Desenvolvimento Agrário, se constituiu no Brasil o Programa de Aquisição de Alimentos, que vinha estimulando o desenvolvimento de uma pujante agricultura de base agroecológica, onde a agricultores de pequeno porte entregavam alimentos de qualidade para as merendas escolares, em unidades de consumo, à população de baixa renda.
O PNAE, através do programa de alimentação escolar, estimulava a possibilidade de colocar alimento limpo em todas escolas. Nós poderíamos chegar não a 30%, como nós tínhamos, mas a 100% em todas as escolas, em todas as prefeituras, em todos os municípios do Brasil. Precisaríamos de políticas públicas para isso. Com um décimo ou menos do que isso para essa cultura de exportação, que nos mantém reféns das grandes transnacionais, nós poderíamos desenvolver aquilo que se chama de soberania.
Edição: Rodrigo Chagas