Agora é o momento de recolocarmos o que são as cidades para nós e o que elas podem ser
Por Nalu Faria*
Em todas as eleições municipais, temos uma chance de disputar os caminhos, a política, os projetos de sociedade que queremos para nossas cidades.
Este ano, nos colocamos o desafio de enfrentar tanto o bolsonarismo quanto os demais projetos de direita, igualmente perigosos para a vida dos povos, das mulheres, da população negra, indígena e LGBT. E foi esse enfrentamento de esquerda, feminista, antirracista, popular, que garantiu a candidatura de muitas mulheres pelo Brasil e a eleição de várias delas.
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Além disso, a proporção de mulheres eleitas prefeitas praticamente se manteve (12,2% em 2020 frente a 11,57% em 2016) e a da população negra eleita para a prefeitura cresceu ligeiramente (32% em 2020 frente a 29% em 2016). Foram eleitos 10 prefeitos indígenas (frente a 6 em 2016) e os candidatos autodeclarados negros pela primeira vez superaram os brancos (foram 49,95% negros e 48,4% brancos).
Mulheres negras, indígenas, trans, ligadas a projetos coletivos, foram eleitas, e reforçaram um aprendizado muito importante para nós: o lema por “mais mulheres na política” não pode ser abstrato, não pode essencializar e homogeneizar as mulheres. Esse lema só pode estar atrelado a um compromisso com o feminismo, o antirracismo e as lutas do povo, conectando, via de regra, os mandatos com a lutas políticas das mulheres nas cidades.
Feminismo e organização popular para enfrentar os ataques da direita
A dinâmica do processo eleitoral foi definida pela combinação de vários fatores e é uma tarefa nossa refletir sobre seus resultados, significados e os complexos desafios para o próximo período.
A situação do Brasil hoje está marcada pelo processo de direitização, que levou ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff (em 2016) e à eleição da extrema-direita com Bolsonaro. Vivemos sob ataques de caráter neoliberal, com políticas de austeridade, destituição da democracia, da proteção social e de direitos duramente conquistados. Vivemos o aprofundamento do conservadorismo e do autoritarismo que privilegia o mercado em detrimento da vida.
Foi nesse contexto que a pandemia do coronavírus se instalou, escancarando as desigualdades de classe, raça e gênero e aprofundando a crise e o conflito entre o capital e a vida. A pandemia se alastrou de forma descontrolada em nosso país devido à postura irresponsável e genocida do governo Bolsonaro, que não priorizou a garantia da saúde e foi, todo o tempo, contra o isolamento social, deixando essa necessária medida praticamente sob responsabilidade de cada um e cada uma.
Mas, ainda que o isolamento social no Brasil não tenha sido um direito para todos, ele interferiu na dinâmica política dos movimentos sociais e setores de esquerda, porque a mobilização e ocupação das ruas é nossa principal ferramenta. Foi com muita luta e organização que se deu continuidade a uma dinâmica política e a processos de articulação, como a campanha Fora Bolsonaro e várias mobilizações de rua contra o racismo, contra o bolsonarismo, contra o trabalho precário dos aplicativos.
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Essa situação complexa não deteve as várias iniciativas de setores do campo popular e de luta contra o conservadorismo que se expressaram no processo eleitoral. O resultado é que houve uma ampliação de candidaturas do campo popular, da periferia, de mulheres, do povo negro, das pessoas trans, da juventude, assim como diversas iniciativas das chamadas bancadas coletivas. Em geral, essas candidaturas tiveram agendas amplas, com diferentes formas de inserção partidária e articulação com os movimentos sociais.
Essas plataformas à vereança propiciaram um amplo debate das plataformas dos movimentos, concretizando reflexões sobre gênero, raça, sexualidade e o trabalho das mulheres. Também foi notável a visibilidade do debate sobre a agroecologia e a alimentação em campanhas do mundo urbano. Isso expressa o processo de articulação campo-cidade, que se intensificou no último período pelas ações em resposta à pandemia. A necessidade de enfrentar a crise que vivemos e superar a tirania do mercado esteve bastante presente nas propostas de candidatos e candidatas comprometidos com a transformação social. Isso se expressou na afirmação do tipo de cidade que se quer construir, com ênfase na defesa da cidade como um território de democracia, convivência, bem-estar e dignidade.
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Por outro lado, no âmbito do executivo, as candidaturas de esquerda deram ênfase para a experiência e a capacidade de gestão, colocando o objetivo de governar para as maiorias. Isso esteve atrelado, em muitas candidaturas, à crítica explicita aos mecanismos do mercado e à afirmação do caráter público do Estado. Essa crítica, porém, não significou uma explicitação incisiva das estratégias do capital, que, através dos governos de direita, se reinventam na dinâmica das cidades com um aprofundamento da privatização.
As cidades não estão à venda
Olhando para o quadro político geral que atravessa essas eleições, é possível afirmar que Bolsonaro é um dos derrotados desse processo. Mas a diferenciação que setores da direita colocam em relação a Bolsonaro é igualmente perigosa. Parte da direita “tradicional” (do PSDB, do DEM, entre outros partidos que tentam se eleger este ano) abandonou o frágil barco de Bolsonaro e aponta irresponsabilidades de seu governo neste período de pandemia (por exemplo, com o auxílio emergencial), mas suas propostas de política e de cidade seguem uma lógica de gestão privatista e de mercado, que trata as cidades como se fossem empresas.
A lógica privatista, nesse contexto de pandemia, é escancarada pela insuficiência dos equipamentos de saúde e pelas tentativas de desmontar serviços e vender a gestão da cidade para empresas. Mas ela também se amplia e se coloca em âmbitos em que não estava antes, financeirizando serviços, como é o caso da alimentação escolar, política fundamental para a vida, a saúde e a construção da soberania alimentar, e que, em tempos de pandemia, é substituída por uma ideia de cartão alimentação, que monetiza e entrega para as famílias e o mercado a responsabilidade pela alimentação.
Por tudo isso, um dos nossos desafios é seguir com esse debate e explicitar essas estratégias da direita, para que tais modalidades não sejam vistas como normais ou naturais. Isso exige da esquerda um forte posicionamento crítico e uma agenda de luta pelo desmantelamento desses mecanismos, por formas mais participativas e comunitárias de construção de políticas e de decisão sobre a cidade.
Desafios feministas na disputa das cidades
Diante do esforço de vários setores vinculados aos movimentos populares em se colocar na disputa eleitoral, é preciso buscar as aprendizagens do processo e retroalimentar as ações futuras. Com certeza, a ampliação de candidaturas populares, fazendo o debate nos mais diversos territórios e setores, significa muitas sementes lançadas, muitos vínculos constituídos. Esse processo não tinha apenas o objetivo de eleger, mas também de acumular densidade no processo organizativo. O esforço militante gera um saldo político para além das eleições: pode se tornar organização e luta permanente, e criar mais conexões entre territórios e comunidades.
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Nossa tarefa imediata, nos próximos quinze dias, é garantir a unidade popular e de esquerda nos segundos turnos onde isso for possível, posicionando uma agenda feminista para as cidades. Essa agenda não é nova: ela vem sendo construída e teve momentos fortes nesta campanha eleitoral. Com mais força ainda, afirmamos a necessidade de políticas que fortaleçam os serviços públicos e as comunidades na sua capacidade de cuidar coletivamente, diante de uma emergência de saúde pública e dos contínuos ataques às possibilidades de sustentar a vida.
Agora é o momento de recolocarmos o que são as cidades para nós e o que elas podem ser. Em uma situação de maior precariedade da vida, as mulheres exercem um papel fundamental para garantir a vida, firmar laços, e tudo isso significa garantir, também, a luta política por transformações radicais e muito concretas. Isso é o que temos visto, tanto durante a campanha eleitoral, como antes e depois dela, na ação solidária permanente das mulheres nas cidades de todas as partes do país.
*Nalu Faria é psicóloga, militante feminista e coordenadora da SOF Sempreviva Organização Feminista.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rogério Jordão