Por Manuel Domingos Neto*
Em regra, militar que é militar não sabe, não quer, não deve nem pode gerenciar serviços públicos da alçada civil.
Se escolas militares ensinam seus alunos a tomar conta de tais serviços, desviam-se de sua missão, desperdiçam recursos públicos e deixam a nação à míngua de guerreiros preparados para enfrentar o estrangeiro maldito ou situações de calamidades extremas.
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Guerrear, desde sempre, foi a mais desafiadora das tarefas públicas, mostram as principais obras legadas pela Antiguidade. Confrontos de vida e morte entre coletividades demandam especialização rebuscada, adestramento incessante, sólido e integral conhecimento do inimigo, amor incondicional pela comunidade que mantém a força militar, sublime desprendimento individual, absoluto controle do impulso à violência, menosprezo por vantagens pessoais e radical distanciamento dos entreveros do mando político.
Não há instituições mais complexas do que as militares. Estão constantemente obrigadas a absorver e articular saberes e invenções. Estimulam todos os domínios do conhecimento, pois não existe área do saber que deixe de ser empregada, direta ou indiretamente, na ampliação da capacidade de deter a perfídia estrangeira.
Na modernidade, então, nem se fale. O surgimento frenético das novidades estonteia, desequilibra o jogo de forças. Da noite para o dia, o que era forte se torna fraco e vice-versa. Daí o militar não tirar o olho daquilo que só existe em promessa. Guerreiro que é guerreiro perscruta apetrechos ainda não disponíveis com a ansiedade do agricultor que procura sinais de chuva.
Não há experiência existencial mais medonha que a guerra, onde seres humanos planejam a eliminação de seres humanos. Militar que se aplica em outra coisa além do preparo para dobrar e jugular, se necessário, o estrangeiro malfeitor é um sem noção, um alguém que não sabe onde se meteu, um parvo obcecado por galões e prebendas. Envolvendo-se na gerência de negócios públicos que não os da guerra, torna-se transviado irresponsável, traidor da coletividade que lhe garante o soldo para se proteger.
Nas últimas décadas, a administração pública no Brasil atingiu nível que exige pessoal crescentemente especializado, dignificado e com perspectiva de carreira. Qualquer que seja o âmbito da política pública, o gestor, sem equipe competente e azeitada, fracassará.
Não basta ter dinheiro e determinar ao subordinado: resolva o problema. Sem orientações precisas, sem pessoal instruído, sem regulamentações adequadas, sem capacidade para articular múltiplas instituições, o político no poder dilapidará recursos públicos, pisará na bola e fará o povo sofrer.
Conhecimentos adquiridos para guerrear nas profundezas do oceano de nada servem ao almirante-ministro das Minas e Energia, como revelou a tragédia do Amapá. O caso, aliás, pode se repetir a qualquer hora em qualquer lugar.
Na pandemia, o general-ministro prova o que já era sabido: logística de guerra é diferente de política de saúde.
O treinamento para ir ao espaço não basta ao Astronauta responsável pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia.
O trato com os índios e com o meio ambiente não suporta gente que considere o nativo um estorvo e a floresta uma inutilidade.
Encargo ministerial é essencialmente político. Ministro competente é aquele que, além de diretrizes claras, anima e articula corpos técnicos experientes.
Ministros devotados ao acolhimento fraternal de velhos camaradas de caserna desservem o povo, negam sua condição militar e enxovalham a farda que já não estava bem limpa.
A súbita ocupação de postos-chave da administração pública federal por militares deixou de ser desastre anunciado. Tornou-se tragédia com vítimas fatais.
A ilusão de que a “eficiência” militar pode ser transposta para a administração pública se fundamenta na experiência do Brasil de outrora. Oficiais tocaram grandes programas federais a partir da ruptura de 1930, quando não havia universidades e as escolas militares e seminários formavam a elite culta. Poucas instituições de ensino superior ilustravam os mandões provincianos. A maioria dos brasileiros vivia dispersa no campo, sem noção de direitos elementares.
Neste Brasil, alguns oficiais se destacaram como quadros para o serviço público. Até sensibilidade estratégica desenvolveram, captando a importância da industrialização, da infraestrutura, dos direitos sociais e da capacitação tecnológica. Certos oficiais, durante a ditadura instaurada em 1964, detinham experiência administrativa. Haviam sido interventores estaduais e dirigido instituições e programas relevantes. Sabiam administrar, desde que a oposição fosse silenciada.
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Nada a ver com as gerações posteriores, oriundas de escolas caríssimas e sem rumo, alucinadas com falsas ameaças internas e deslumbradas com o estrangeiro poderoso.
A desorientação dessas escolas foi revelada pela vontade de formar “mestres” e “doutores” nos moldes da academia civil. Onde já se viu títulos acadêmicos civis servirem para qualificar guerreiros? Por suposto, a missão destas escolas seria o preparo para o confronto sangrento, não a de garantir que oficiais da reserva fossem bem acolhidos pelo mercado de trabalho.
Universidades civis destinam-se à formação de prestadores de múltiplos e variados serviços, inclusive o da oferta de conhecimento sobre o militar. (Sem este conhecimento, o mando político sobre as corporações é quimérico: não se exerce poder sobre o desconhecido!)
A academia civil vive desafiando saberes estabelecidos. Alimenta-se do confronto interminável de ideias, não suporta amarras, nutre-se de discordâncias, inventa modas, testa conceitos. É iconoclasta empedernida. Tem por base a autonomia de cátedra. Por natureza, provoca instabilidade nas estruturas socioeconômicas.
A academia militar busca a unidade doutrinária necessária à submissão do inimigo perverso. Repele formulações que balancem crenças estabelecidas. É sedenta de novidades que proporcionem aumento da força bruta, mas rejeita corrosão de sua forma de ver o mundo dos homens. É eterna prisioneira da dicotomia estabilidade-instabilidade.
Quando o guerreiro cobiça o título acadêmico civil, menospreza sua própria função social. Compraz-se em se auto-desclassificar quando diz-se preparado para assumir outras funções. Apresenta-se como pupilo de Benjamim Constant Botelho de Magalhães, magistral formador de bacharéis salvadores da pátria no ocaso do Império.
Vivemos no século XXI e a ex-colônia tornou-se um ator de peso no cenário mundial. Passou da hora de o militar superar seu dilema de origem, afastando a vontade infantil de mandar em tudo.
Por definição, sob a democracia, guerreiro não pode desejar ser político, policial, acadêmico, gestor público nem amigo de miliciano. Do contrário, deixará a pátria, pobrezinha, exposta ao estrangeiro impiedoso.
* Manuel Domingos Neto é historiador, professor e ex-deputado federal (1989-1991) pelo PCdoB
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato
Edição: Rogério Jordão