Relato

“Bhopal 84”: por que falar sobre um crime ocorrido há 36 anos, do outro lado do mundo

Jornalistas explicam o que motivou a produção do documentário lançado esta semana pelo Brasil de Fato

Brasil de Fato | Florianópolis (SC) |

Ouça o áudio:

Ruínas da fábrica de pesticidas da Union Carbide em Bhopal - Julian Nyča

“Desastres lentos e silenciosos como o de Bhopal acontecem todos os dias, em várias partes do mundo.” Foi com essas palavras que a ativista indiana Rachna Dhingra nos explicou por que dedica sua vida a denunciar um crime ocorrido há 36 anos.

Na madrugada de 3 de dezembro de 1984, mais de 27 toneladas do gás isocianato de metila vazaram de uma fábrica de agrotóxicos na cidade de Bhopal, região central da Índia. O documentário Bhopal 84, que será lançado no aniversário do crime pelo Brasil de Fato, resgata a memória daquele episódio e joga luz sobre suas consequências.

A empresa responsável pelo vazamento, a estadunidense Union Carbide, não respeitou na Índia os mesmos protocolos de segurança usado na fábrica da Virgínia Ocidental, nos EUA. Preferiu economizar.

Cerca de 8 mil pessoas morreram nas horas seguintes ao vazamento. O número de atingidos aumenta dia após dia, se aproximando da casa dos 600 mil – a última estatística oficial do governo indiano é de 2006 e reconhece 558 mil vítimas.

Os danos se perpetuam não só porque a terra e o solo foram contaminados, mas porque filhos de pais e mães que inalaram o gás tóxico têm seis vezes mais chances de nascer com má formação genética.

O barato saiu caro? Não para a empresa, que pagou indenizações irrisórias e jamais garantiu reparação às vítimas.

Desde 2002, a Union Carbide pertence à Dow Chemical, outra gigante do setor com sede nos EUA. Esta também não se responsabiliza pelos danos em Bhopal nem colabora com pesquisas para diagnosticar e minimizar os impactos na região.

Rachna Dhingra não se conforma. Como morou nos Estados Unidos antes de se juntar à Campanha Internacional por Justiça em Bhopal, ela enxerga – e descreve – com clareza impressionante o racismo ambiental que permeia as práticas das multinacionais.

Os demais entrevistados trazem detalhes sobre o momento em que o gás vazou, são provas vivas da continuidade daquele crime. Testemunhas ou não do vazamento em si, todos os trabalhadores de Bhopal bebem hoje da mesma água – que também bebemos por alguns dias – e são, de diferentes formas, atingidos.

Memória

Estivemos na cidade semanas antes da confirmação do primeiro caso de coronavírus na Índia, graças a uma parceria com dois veículos indianos – Newsclick e Peoples Dispatch. Percorremos de trem os 770 km que separam a capital Nova Delhi de Bhopal, no estado de Madhya Pradesh.

Nosso primeiro choque foi entender como a cidade lida com a memória do crime de 1984. Bhopal possui uma estátua em homenagem às vítimas e um pequeno museu, onde gravamos algumas das imagens do documentário. Ambos os espaços estão em péssimo estado de conservação.

É difícil encontrar um morador que saiba onde fica o museu – muitos jamais souberam da sua existência. Um motorista de aplicativo, que nos levou até as ruínas da fábrica da Union Carbide, tinha informações vagas sobre o vazamento, não fazia ideia da dimensão do crime, desconhecia a empresa responsável e até errou o caminho à planta.

Esse processo gradativo de apagamento da memória reforça a urgência de se falar sobre o tema. O documentário tem sua relevância, especialmente para quem vive fora da Índia, mas há várias outras iniciativas. A mais importante é o Dia Internacional de Luta Contra os Agrotóxicos, lembrado em 3 de dezembro, justamente em homenagem às vítimas de Bhopal.

Não silenciar sobre esse crime é um compromisso para quem luta contra o capitalismo e o imperialismo. Aquela tragédia e tudo o que veio a seguir demonstram, para quem ainda não se deu conta, a insustentabilidade do modelo econômico – que não será revertida por um “capitalismo verde”, mas pelo rompimento com um sistema que tem o lucro como finalidade absoluta.

Apesar das limitações técnicas, das barreiras culturais e de idioma, esperamos contribuir para manter essa chama acesa e levar a história adiante.

Brasil e Índia têm muito a aprender um com o outro. Assim como nos propusemos a olhar para Bhopal, certamente histórias como as de Brumadinho e Mariana, cidades do estado de Minas Gerais, região sudeste do Brasil, estimulariam indianos a refletirem sobre sua própria realidade. O jornalismo tem muito a oferecer.

Quanto mais conhecermos o que acontece nos países do Sul global, compreendendo nossas diferenças e semelhanças, mais perto estaremos de construir uma resistência conjunta ao imperialismo. Bhopal 84 é um grão de areia, produzido a várias mãos com carinho e consciência de classe, dedicado a todos e todas que não admitem que histórias como essa se repitam.

Edição: Vivian Fernandes