Há mais de uma semana, os chilenos protestam pelo direito de sacar novamente 10% dos fundos previdenciários, como medida emergencial, por conta da crise gerada pela pandemia. O primeiro saque foi autorizado no mês de julho e 9,4 milhões de chilenos recorreram ao auxílio financeiro, equivalente a 86% dos afiliados, segundo a Superintendência de Pensões do Chile.
A Comissão de Trabalho da Câmara de Deputados debate a proposta enviada pelo Senado na última semana. Depois de aprovado pelo parlamento, o texto precisa ser sancionado pelo presidente. O texto original foi apresentado pela bancada parlamentar de oposição, mas, depois da pressão nas ruas, o presidente Sebastián Piñera e os ministros da Fazenda, Ignacio Briones, e do Trabalho, María José Zaldívar, anunciaram uma contra-proposta.
Além de um saque mínimo de 1 milhão de pesos, querem estabelecer um máximo de 4,3 milhões (aproximadamente R$30 mil). Segundo dados oficias, somente 6,3% dos pensionistas teriam fundos suficientes para realizar o saque máximo. Na proposta da administração de Piñera, os cidadãos ainda poderão pagar 5% de imposto de renda.
Quase três milhões de cidadãos possuem um saldo inferior, e se aprovado o PL, poderão sacar todos os fundos disponíveis nas suas contas. Além disso, cerca de dois milhões de pensionistas não tinham fundos nas suas contas de capitalização individual, em julho, quando foi autorizado o primeiro saque.
Os servidores públicos estariam excluídos desse segundo saque, na proposta do governo, algo que é refutado pelos deputados opositores, que defendem acesso universal aos fundos das Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs).
"Essa saída é uma medida emergencial, porque não existiram políticas públicas e nem iniciativa governamental para gerar essas políticas em função dos cidadãos. E quando foram criadas sempre terminavam cooptadas e financiando as grandes empresas", analisa o administrador e especialista em políticas públicas, Luis Jaqui.
A população chilena é uma das mais endividadas da região. Segundo o Banco Central chileno, cerca de 74,5% da renda de uma família média chilena foi destinada para pagar dívidas no ano de 2020.
O administrador Luis Jaqui diz que é comum os cidadãos pagarem contas mensais, como água, luz, telefone e aluguel em várias parcelas no cartão crédito, aumentando as taxas de juros, que alimentam o mercado financeiro.
Solução populista?
Depois do sucesso do primeiro saque de fundos previdenciários, a presidência tenta aprovar o novo saque antes do natal. A estimativa é que o auxílio financeiro movimentou 20 bilhões de dólares (cerca de R$107,5 bilhões) na economia chilena no terceiro trimestre do ano.
"No entanto o problema que vemos em nível de política pública é que essa economia cresce, mas a relação de criação de empregos versus perda de empregos se mantém. Então não serve de nada esse crescimento, porque realmente representa o crescimento do patrimônio dos 5 mil super ricos do país", aponta Jaqui.
Os novos embates acontecem em um momento em que Sebastián Piñera atinge um recorde de desaprovação. De acordo com uma pesquisa realizada pela empresa pública Cadem, apenas 13% da população está à favor do seu governo. Esses resultados surgem logo depois do plebiscito constitucional, que decidiu com maioria absoluta pela reforma da atual carta magna, contrariando a campanha governista pelo "não".
Para o jornalista José Robredo Hormazábal, o presidente chileno está tratando de elevar ao máximo sua política neoliberal, aprovando um novo pacote econômico, que inclui a lei orçamentária de 2021, mas sem desatar mais tensão social antes das próximas eleições presidenciais, que devem ser realizadas em novembro de 2021.
"Acredito que o governo está tratando de administrar o que ainda lhe resta de capital político para poder manter-se bem. Por que esse governo deixou de governar, só está dando respostas, não está conduzindo nada e está administrando um Estado em crise absoluta: econômica, política e social", analisa.
O chefe de Estado também enfrenta, desde a semana passada, uma greve geral dos trabalhadores da saúde, que reivindicam mais fundos para o setor no orçamento de 2021, um bônus para aqueles que estão trabalhando na contenção à covid-19 e o direito de saque dos 10% dos fundos previdenciários.
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A posição governista de permitir um segundo saque dos fundos de pensão também poderia ter uma intenção eleitoral para o campo da direita tradicional chilena, já que até abril serão eleitos os membros da convenção constituinte.
"A direita não está tão mal avaliada, porque parte da direita também votou pela "aprovação", também votou pela comissão constitucional. Então essa parte também vai eleger constituintes", comenta o jornalista chileno José Robredo.
A mesma pesquisa realizada pela Cadem aponta que 84% dos chilenos preferem que os 155 membros da convenção constituinte sejam independentes e 69% que sejam pessoas de classe média e baixa.
"Mas no final o povo está colocando tudo: as pessoas que se contagiam, os mortos, o dinheiro; enquanto o Estado, segundo sua lógica neoliberal, não está garantindo nada, e isso triplicou o descontentamento com Piñera, com seu governo e com toda a classe política", assegura o jornalista.
Previdência privada, herança da ditadura
O sistema previdenciário chileno foi planejado por José Piñera Echenique, irmão do atual presidente, que atuou como ministro do Trabalho e Previdência Social durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). O modelo é baseado na administração privada das contribuições previdenciárias dos trabalhadores. As chamadas AFPs prometem investir o monto depositado na bolsa de valores para aumentar os ganhos dos cidadãos.
No entanto, em 2019, as Administradoras de Fundos de Pensão finalizaram o ano com um lucro de aproximadamente US$649 milhões, enquanto a média das aposentadorias pagas era de US$382 (aproximadamente R$2 mil) para homens e US$232 (aproximadamente R$1,2 mil) para mulheres.
Enquanto o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o ministro de economia Paulo Guedes tentam apresentar o sistema previdenciário com as AFPs como um modelo a ser seguido pelo Brasil; no Chile, o povo busca criar algo similar ao sistema previdenciário brasileiro na próxima Constituição.
"O modelo que o movimento 'Não mais AFP' propõe é um modelo de divisão solidária, no qual o trabalhador coloque uma certa quantia e o Estado some outra quantidade, sem ser através de subsídios aos empresários, que é outra forma como se escondem a transferência direta de dinheiro do Estado às empresas. Então, por isso, o subsídio dever ser aos trabalhadores", afirma o especialista em políticas públicas chileno.
Reforma Constitucional
Os dois analistas concordam que a saída para vencer, de maneira definitiva, as medidas econômicas austeras do setor representado pelo presidente Sebastián Piñera é uma grande participação popular no processo, que está apenas começando com a escolha dos 155 constituintes.
"Claramente o processo constituinte abre o campo para disputar o modelo no Chile. Se queremos um modelo que garanta direitos, garanta justiça, uma vida digna para as pessoas ou se queremos manter um modelo neoliberal", analisa José Robredo.
As eleições dos 155 delegados constituintes será em abril de 2021. O processo deve ser regido pelo código eleitoral vigente. A discussão atual é sobre como será a representação indígena e de movimentos sociais.
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Os partidos de esquerda ofereceram 50% das suas listas para inscrever candidatos independentes e defendem que os delegados indígenas sejam escolhidos a parte, sem estarem incluídos nos 155 da sociedade civil, aumentando assim a representação geral.
Já a direita e o campo governista defendem que todos sejam incluídos entre os 155 que serão postulados pelos partidos. Em declarações públicas, o presidente Piñera assegurou que "os chilenos já sofreram muito" e que espera que o modelo vigente não seja "desperdiçado" com a nova Constituição.
"Todo chileno deve ter direito ao acesso à saúde pública, à educação pública, ao meio ambiente limpo, ao direito de desfrutar da cultura e também de poder imaginar outro futuro pela influência da ciência", defende Jaqui.
Edição: Rebeca Cavalcante