O esporte brasileiro tomou um duro golpe na segunda-feira (30). Em reunião virtual, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) rejeitou a proposta de tombamento do Complexo do Ibirapuera.
De acordo com o jornalista esportivo Marcelo Laguna, em artigo para o site Olímpiada Todo dia, a decisão foi a sentença de morte para uma reduzida parte da memória esportiva e cultural do país. Na prática, explica ele, o que foi definido com o não tombamento é entregar o complexo de mão beijada à privatização.
“E não precisa ser nenhum gênio para prever que o destino final não terá nada a ver com o esporte”, frisa. O complexo reúne, além do histórico Ginásio Geraldo José de Almeida (inaugurado em janeiro de 1957), o estádio de atletismo Ícaro de Castro Mello, o Parque Aquático e um ginásio menor, o Mauro Pinheiro.
No Relatório de Modelagem Econômico Financeira, o termo usado para o futuro do Ibirapuera é “shopping”. A concessão deve ser lançada pelo governo de João Doria (PSDB) ainda este mês.
“Sem o tombamento, não é possível proteger as mudanças arquitetônicas locais. Algo que não acontecerá, por exemplo, no Estádio do Pacaembu, que também foi privatizado, mas manterá toda sua estrutura e funcionalidade originais”, explica o jornalista.
“No caso do Ibirapuera, o próprio estudo do governo do estado de São Paulo para o edital de privatização prevê a demolição do estádio de atletismo para a construção de uma arena multiuso para 20 mil pessoas. No local do parque aquático, o estudo indicava a construção de uma torre comercial e de um hotel. Já o velho Ibirapuera seria transformado em um grande shopping center, aproveitando sua estrutura. Sim, um shopping!”, aponta Laguna.
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Estelionato eleitoral
Arquitetos, historiadores, esportistas criaram um abaixo-assinado para tentar evitar o fim do Ginásio do Ibirapuera e de todo o Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, diante do projeto de concessão do governo do estado de São Paulo para a área.
Uma carta foi produzida por docentes e pesquisadores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
“O projeto, tal como está estruturado, representa séria ameaça à integridade física e ao funcionamento de um equipamento esportivo que, além de ser muito utilizado na formação de atletas no Brasil, é constitutivo da história da cidade de São Paulo e realização fundamental da história da arquitetura brasileira”, diz o documento.
O jornalista Juca Kfouri também falou sobre o assunto no seu blog, no UOL. “A cidade de São Paulo passou a ser pensada como uma cidade-empresa, que precisa dar lucro, cujos bairros são vistos como unidades de negócio, onde vivem consumidores, não cidadãos”, critica Kfouri no artigo São Paulo regride aceleradamente.
“À melhoria de cada região corresponde o êxodo de seus moradores menos favorecidos para a periferia da cidade. Que se danem os motivos que levaram as construções dos equipamentos esportivos. Os interesses negociais prevalecem.”
O apresentador do programa Entre Vistas, da TVT, destaca: onde há aparelhos públicos encravados em bairros chiques, a sanha privativista prevalece. “Assim foi com o Pacaembu, assim será com o Ibirapuera.”
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Memória no lixo
Juca Kfouri ainda questiona: "Esporte é saúde, esporte é cultura, esporte é lazer? E daí?"
“Na cabeça dessa gente só cabe pensar em dinheiro e a ideia de fazer um shopping center e um hotel na área do ginásio prevaleceu. Ontem às urnas falaram em São Paulo e o prefeito eleito declarou que é possível fazer política falando a verdade. Hoje a cidade saiu do verde e voltou ao amarelo na prevenção ao recrudescimento da pandemia. Que tanto o governador quanto o prefeito negavam até anteontem. Se o nome disso não é estelionato eleitoral será preciso inventar outra denominação para tamanho embuste.”
Laguna reconhece ser inegável o Complexo do Ibirapuera tem equipamentos defasados, com inúmeros problemas, carente de cuidados e reformas.
“A questão não passa por esta análise técnica, mas sim no descaso que existe no poder público com o esporte de modo geral. Não se pensa em uma política esportiva a longo prazo. Se o Estado lava as mãos, não é possível esperar que alguém esteja preocupado com o esporte, não é?”
Velho Ibira
O jornalista elenca momentos históricos para a memória esportiva e cultural do país, que tiveram como palco o “velho Ibira”. O título mundial do Sírio no basquete, em 1979. A seleção brasileira campeã mundial de futsal em 1982. O heróico terceiro lugar da seleção feminina de basquete no Mundial de 1971. As exibições de ídolos do boxe brasileiro, como Éder Jofre.
Das seleções feminina e masculina de vôlei, entre elas a do título da Liga Mundial de 1993. De astros do tênis mundial, como Jimmy Connors, Pete Sampras e Guga. A de Daiane dos Santos em uma Copa do Mundo de ginástica artística.
“Por aquela pista que será destruída pelo novo dono do Ibirapuera, competiram Joaquim Cruz, Carl Lewis, Maureen Maggi, Serguei Bubka, Robson Caetano, Edwin Moses, Evelyn Ashford, Willie Banks, Steve Ovett e até Ben Johnson, vejam vocês.”
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Marcelo Laguna lembra também que o complexo aquático do Ibirapuera formou uma geração de nadadores do país, como o medalhista olímpico Ricardo Prado. O complexo abriga, ainda, o alojamento dos atletas do Projeto Futuro, que já revelou alguns dos principais dos atletas do judô e atletismo do Brasil.
“Tudo isso será apenas uma triste memória. Uma parte da história do esporte brasileiro será enterrada a partir do momento em que as primeiras máquinas começarem a fazer o seu trabalho no Complexo do Ibirapuera. Parabéns aos envolvidos nesta aberração".