Órgãos governamentais têm violado o direito constitucional de casais homoafetivos de serem reconhecidos como mães ou pais ao exclui-los de cadastros públicos.
Sistemas como o da Receita Federal, por exemplo, ignoram famílias de dupla maternidade ou paternidade ao só aceitarem cadastros com o nome de uma mãe. Quando são duas mães, portanto, uma acaba aleatoriamente suprimida da ficha. No caso de dois pais, um é obrigado a assinar como mãe, mesmo que isso vá contra seu gênero.
O resultado é que, além da confusão burocrática que pode ser causada pela imprecisão, responsáveis por seus próprios filhos não podem ter acesso aos dados que o Estado tem.
É o caso da escritora e ativista Marcela Tiboni, mãe de duas crianças de dois anos e dois meses e casada com a arquiteta Melanie Graille. Ela conta não ter conseguido acessar informações sobre as crianças a partir do nome dela.
“Quando eu preenchi com o meu nome [no site da Receita], caí em uma página dizendo que o nome Marcela não coincide com o nome do Bernardo, que é meu filho. A mesma coisa aconteceu com a Iolanda [filha]. Eles têm dois anos e dois meses, hoje em dia. Na hora, eu voltei e preenchi o campo 'mãe' com o nome da minha mulher. Aí, sim, eu tive acesso ao CPF dos meus filhos”, conta.
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A reação imediata, diz Marcela, foi de profunda dor. “Na hora, eu só fechei o celular, chorei uns 20 minutos. Um choro muito silencioso, que não tinha raiva, mas tinha solidão, vulnerabilidade, incômodo e tristeza de perceber que todas as lutas que a gente já fez ao longo desses últimos dois anos serviram de muito pouco.”
A escritora afirma se sentir enganada por leis que visam garantir o direito de se exercer a dupla maternidade. Ela lembra que, ao decidir ter filhos, buscou amparo jurídico para garantir que pudesse registrá-los e criá-los com Melanie, sem problemas que pudessem ser causados pelo governo.
O principal respaldo estava na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2011, que reconheceu a união homoafetiva como direito constitucional. A partir disso Marcela e Melanie puderam registrar os filhos com o nome das duas.
Parece que a minha maternidade está sempre colocada em xeque
O direito reconhecido no papel, no entanto, não é reproduzido em outras instâncias. “Hoje, eu percebo que o que eu fiz ali foi repassar um documento-fantasia. Porque, se eu entro na Receita e percebo que, ali, não sou mãe dos meus filhos, fica óbvio que o sistema, ou seja, a tela do computador, não está escrito ‘filiação’, mas sim ‘pai e mãe’. Portanto, uma de nós duas sempre vai ocupar o campo ‘pai’”.
Marcela diz ter medo de um dia ser cobrada pelos filhos do porquê não consta como mãe nos registros do Estado. “Eu não sei nem como é que eu vou explicar para essas crianças que eu não sou mãe deles perante o Estado. É uma resposta que eu não sei dar. Eu vou olhar para a cara deles e falar: ‘Também não sei’. Isso me fere. Parece que a minha maternidade está sempre colocada em xeque”.
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Mobilização
A partir da decepção, a escritora passou a ouvir mães que passam pela mesma situação e a uni-las na tentativa de mudar o erro do sistema. Com isso, surgiu um abaixo-assinado, que já tem cerca de 40 mil assinaturas e pretende chegar a 50 mil.
A luta ganhou o apoio de várias organizações. Uma delas é a startup Bicha da Justiça, que luta pelos direitos LGBTQIA+. Segundo a fundadora, Bruna Andrade, que é advogada especializada em direito homoafetivo e de gênero, o objetivo é levar as assinaturas até o STF.
“Ele vai instruir o processo judicial que a gente vai entrar no Supremo Tribunal Federal. Vai ser anexado ao processo para demonstrar que não é uma questão que afeta uma família, apenas, mas há pelo menos 50 mil pessoas que não concordam com esse tipo de invisibilidade”, explica.
É uma questão meramente de programação.
A advogada afirma que a mudança é possível, com esforço dos órgãos responsáveis. “Nenhum banco de dados é imutável. É uma questão meramente de programação. A gente entende que, por mais que exista qualquer dificuldade para que haja essa mudança na prática, ela tem que acontecer, porque está afetando uma série de famílias e está violando os direitos dessas famílias. Essa adequação tem que acontecer em um curto espaço de tempo”, cobra.
Bruna afirma ter boa expectativa em relação a uma decisão do Supremo. “Na verdade, não é a conquista de um direito novo. O direito já foi conquistado e já está sendo violado há anos. O que a gente espera é que o Supremo Tribunal Federal reforce a proteção que ele já reconheceu das famílias LGBTQIA+ e que a questão seja sanada não só em relação à Receita Federal, mas em relação aos órgãos públicos como um todo. Que sejam padronizados, para que as famílias não fiquem recebendo a implementação dos seus direitos a conta-gotas”.
Edição: Rodrigo Chagas