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A cachaça, os velórios e o ato de beber o morto

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O torpor da cachaça cria também um ambiente fantástico, em que a morte, no caso de Quincas, claramente não é uma fatalidade, mas um caminho natural de uma vida, ou de mais de uma - Unsplash
Beber o morto significa tomar cachaça durante a noite do velório para relembrar casos passados

Até pouco tempo atrás – e para uma historiadora pouco tempo atrás significa 50 anos mais ou menos –, existia pelo Brasil o hábito muito comum de se “beber o morto”. “Beber” nesse caso se refere a beber cachaça. Ou seja, bebia-se o morto, o defunto, com cachaça. Nessa vida louca dos dias de hoje, esse hábito se perdeu, os velórios são mais rápidos e por isso a gente acha muito estranho quando nos deparamos com ele nos contos, nos livros, nas histórias. Mas a morte já foi motivo de muito pileque por essas bandas.

Beber o morto significa tomar cachaça durante a noite do velório para relembrar casos passados relacionados àquele que se vai, contar histórias, anedotas e fatos da vida. Geralmente o ritual era acompanhado por alguma comida, em forma de petisco ou sopa. Durante a noite, conforme as histórias se desenrolavam, risos e lágrimas se misturavam numa celebração nostálgica. Algumas vezes o velório se tornava uma festa. O historiador João José Reis, em seu livro A morte é uma festa, conta muitos enterros que se tornaram uma festa de rememoração da vida do defunto.

Num dos livros mais interessantes da literatura brasileira, A morte e a morte de Quincas Berro d’Água (1959), o escritor baiano Jorge Amado relata as duas mortes do personagem principal, Joaquim Soares da Cunha. Funcionário público com vida pacata e família religiosa, Joaquim vivia a vida sem maiores sobressaltos. Vidinha besta, quase sem graça. Num dia, resolveu jogar tudo pro alto e viver na mais completa boemia, sem saber do dia de amanhã. Jogou-se nos braços da cachaça, frequentando mercados, ladeado uma turma de amigos beberrões como ele.

De Joaquim tornou-se Quincas Berro D’Água quando, num certo dia, provou um copo com um líquido transparente. Virou o copo esperando cachaça, mas era apenas água. O berro foi de raiva e indignação. Virou seu apelido. Quincas tornou-se famoso pelas ruas de Salvador, até que um dia morreu no quartinho singelo e pobre que ocupava.

A família logo foi avisada e tomou as providências para transformar o Quincas de volta no respeitável burguês Joaquim. E assim o velório seguiu tranquilo até que a turma da bebida chegou e viu um sorriso na cara do defunto. Disseram que ele ainda estava vivo, pegaram-no nos braços e o levaram para mais uma noite de boemia.

A certa altura, os amigos cachaceiros resolveram pegar um veleiro, para passear nas águas da baía de Salvador. Uma onda veio violenta e levou Quincas, que parecia não querer ser enterrado na terra.

Nessa história, Jorge Amado dá vida e cor a um hábito comum na época no Brasil. Dizem que esse hábito vem de antigos rituais africanos, chamados gurufins, também realizados com cachaça. Para se livrar do caminho da morte, alguns bebedores derramam um pouco de cachaça no pé, liberando o caminho – quase como a cachaça derramada no chão, que é dada pro santo.

Na época da chegada dos portugueses, no século XVI, relatos de viajantes contam que os índios também transformavam alguns enterros em festas, com um enorme consumo de cauim, a cerveja indígena, e festejos.

É interessante pensar no entorpecimento que a bebedeira causa nos que a consomem nos velórios. A cachaça, e o porre, se tornam meios para que, por meio da inconsciência alcóolica, os participantes dos velórios se aproximem do morto, já sem consciência. O torpor da cachaça cria também um ambiente fantástico, em que a morte, no caso de Quincas, claramente não é uma fatalidade, mas um caminho natural de uma vida, ou de mais de uma.

Eliminar a fronteira rígida que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos: eis o dom e a magia que, nos velórios, enchiam um bom copo de cachaça.

Edição: Rebeca Cavalcante