Frio, chuva e o medo de perder o teto. Foi assim que começou o último domingo (6), movimentando uma ocupação no Edifício Campos, localizado na Avenida Rio Branco, no centro da capital paulista, onde moram há quase sete meses cerca de 80 pessoas.
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O relógio marcava 5 horas da manhã e aproximadamente 15 moradores, em sua grande maioria mulheres, mães solo, gestantes, imigrantes e crianças, já aguardavam em frente ao prédio a presença da Polícia Militar e do oficial de justiça - que cumpriria a reintegração de posse do terreno às 6 horas.
As mais de 20 famílias que moram no prédio pareciam não querer acreditar no que estava prestes a acontecer. Acompanhavam atentamente a chegada dos caminhões de mudança no local que, naquela altura, já beiravam seis e aumentavam a preocupação.
Mais casa sem gente, que gente sem casa
O drama vivido pelos moradores do edifício Campos traz à tona o déficit habitacional na capital paulista. Segundo o último dado disponível pelo Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), eram 19.867 imóveis vagos somente na região central. Este número é considerado subnotificado por organizações de direitos habitacionais, que estimam a existência de mais de 40.000 imóveis desocupados somente no na área do centro.
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Já os dados do Movimento Estadual de Moradores de Rua do Estado de São Paulo apontam que em torno de 33.700 mil habitantes estão em situação de rua na capital paulista, ou seja, tem mais casa sem gente, do que gente sem casa.
Mesmo em meio à pandemia da covid-19, e com diversas recomendações de órgãos e entidades que pedem o adiamento dos despejos, um levantamento do Observatório de Remoções apontou que as ações de remoção têm aumentado. Apenas na região metropolitana da capital, entre abril e junho de 2020, foram realizadas seis remoções que impactaram ao menos 1.300 famílias. Ao todo são 206 ocupações espalhadas por toda a cidade, sendo que 53 destas estão no centro, o que corresponde a aproximadamente 3.300 famílias na região. Os dados são do Grupo de Mediação de Conflito, da Secretaria Municipal da Habitação.
Edifício Campos
O edifício pertence desde 2014 à empresa A.S.H. Empreendimentos, Participações e Negócios Ltda e, segundo a advogada do proprietário, Adriana Alves Moraes, o interesse em retomar o edifício agora é para disponibilizá-lo para aluguel.
Janaina Xavier, moradora da ocupação no prédio Campos, luta para não entrar na estatística e questiona a falta de sensibilidade em um momento como esse. Ela ainda disse que houve uma tentativa de negociação de um aluguel a preço acessível, sem sucesso, porém.
Com a chegada da pandemia da covid-19, a maioria destas famílias, que já se encontravam em situação de vulnerabilidade, enxergaram na ocupação do edifício uma opção de moradia mais viável.
“O prédio já fazia 4 anos que estava abandonado. Quando entramos, fizemos um mutirão para conseguir morar. Tinha entulho dentro dos apartamentos, não tinha porta. Alguns não tinham eletricidade, a gente colocou. Estava na situação de abandono do imóvel”, completou Xavier.
Decisão Judicial
Na última sexta-feira (04), foi mantida a ordem da reintegração de posse pelo juiz do caso, após uma tentativa do Núcleo de Defesa dos Direitos da População em Situação de Rua e Centro Gaspar Garcia dos Direitos Humanos, de barrar a decisão com uma petição que fazia referência ao despejo em tempos de pandemia.
Rosemeire Pereira, moradora, falou sobre a ordem de retirada: “Tem uma semana só que eu tive neném, estou de resguardo. Tenho nem para onde ir, nem eu nem minha família. E eles chegam assim sem dar uma justificativa pra gente…é complicado, não sei o que eu vou fazer”.
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No início da pandemia, a empresa proprietária tentou cumprir o pedido de reintegração, contudo, o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos conseguiu segurar o cumprimento. No total, 3 recursos foram enviados para o Tribunal de Justiça de São Paulo - todos negados. O último recurso apontava o retrocesso para a fase amarela da pandemia no estado de SP. "Coisa totalmente descabida e irresponsável imaginar que você pode fazer uma reintegração de posse nessas proporções nesse momento. A secretaria de assistência social deveria estar aqui por ordem judicial’’, pontuou Vitor Inglez, advogado de defesa da ocupação pelo Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.
Vitória temporária
Em uma reunião preparatória, realizada no 7º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano - a Secretaria Municipal de Habitação e a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social foram intimadas para comparecer e dar o mínimo de amparo necessário para essas famílias. Assim, a última decisão do juiz obrigava a presença destes órgãos no dia da ação - mas eles não compareceram. Isto, somado às condições dos moradores da ocupação, resultou em um acordo entre a PM, o oficial de justiça e a advogada da empresa proprietária, e o despejo foi adiado.
''Verificamos a incapacidade da realização da reintegração, pela carência de meios, para ter a ação precisa ter outros órgãos, faltam Conselho Tutelar, SMADS, todos foram convocados em reunião'' anunciou o Tenente Coronel Kiryu, da Polícia Militar.
Com o comunicado do PM, a comoção entre as famílias presentes foi enorme. O sofrimento vivido por essas 20 famílias são um retrato mais do que comum para milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade social. O acesso à moradia é um direito social garantido pela constituição, no entanto na prática a realidade é outra. Por hora a ocupação permanece, mas o processo continua, um novo mandado será enviado e os moradores da ocupação precisarão de assistência e amparo do poder público.
Edição: Rogério Jordão