Por Priscilla Paiva Gê Vilella dos Santos* e Marina Bistriche Giuntini**
A saúde mental pública sempre foi um campo de tensionamentos e disputas políticas. A tramitação de doze anos no Senado para aprovar o Projeto de Lei de 1989, que veio a se tornar a Lei 10.216/2001, já revela isso. A Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) instituída a partir deste marco legal, foi um dos produtos do processo da Reforma Psiquiátrica brasileira, que representa importantes lutas e movimentos sociais, decisivos na arena democrática.
Leia mais: Cortes em programas de saúde mental reacendem lógica de manicômios, diz pesquisadora
A implementação dessa política permitiu um novo status quo para as pessoas em sofrimento psíquico, incluindo o uso abusivo de substâncias psicoativas, ou que estejam em contexto de vulnerabilidade social. Nela, está formulado um modelo, denominado de atenção psicossocial, pautado no cuidado em liberdade, respeito, dignidade e autonomia das pessoas em sofrimento psíquico. Aposta numa rede de serviços de base comunitária e territorial (como os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS – e as Residências Terapêuticas), substitutivos aos hospitais psiquiátricos (manicômios). Também investe em processos de trabalho interdisciplinares e articulações intersetoriais, que extrapolam o setor saúde e as redes formais de cuidado.
Embora não tenha avançado no ritmo que o movimento da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial gostariam, a caminhada foi ininterrupta e os ganhos são inquestionáveis.
Entretanto, desde 2016 tem se observado um “processo acelerado de desmonte dos avanços alcançados pela Reforma”. Como se não bastasse a Emenda Constitucional 95/2016, uma das primeiras canetadas do então Presidente da República, Michel Temer (2016-2018), que congela por vinte anos os investimentos na Seguridade Social, diversas normativas específicas para o campo da saúde mental, álcool e outras drogas têm sido publicadas desde então.
Com o desfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), que em 2019 teve uma perda de R$ 20 bilhões, e na contramão dos avanços da Reforma, os efeitos nocivos dessas “novas políticas”, que representam o que há de mais conservador e atrasado no campo, já causam consequências práticas na Rede Atenção Psicossocial (RAPS), como a estagnação na implantação de serviços territoriais, o incentivo à internação psiquiátrica e às Comunidades Terapêuticas.
Leia ainda: Governo Bolsonaro incentiva eletrochoques e propõe a volta dos manicômios
Recentemente, nas últimas badaladas de 2020, o Ministério da Saúde (MS), por meio da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SEGTS), instituiu um grupo de trabalho para revisão da RAPS, que foi apresentada em reunião organizada pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), no dia 03 de dezembro. A proposta está baseada no documento “Diretrizes para um modelo de atenção integral em saúde mental no Brasil”, elaborado pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) em parceria com outras entidades, majoritariamente médico-conservadoras. O documento de 34 páginas, diverge das disposições conceituais e éticas do modelo de atenção psicossocial, concebidas pela Reforma e instituídas pela Lei 10.216, que completará 20 anos em abril de 2021.
Demonstra uma compreensão equivocada sobre a atenção psicossocial ao afirmar que o modelo adota como premissas a “desvalorização do saber psiquiátrico e a redução do papel do psiquiatra” (p.5). A atenção psicossocial propõe processos de trabalho de caráter interdisciplinar e coloca que a integração de diferentes categorias profissionais pode ser efetiva. Isso não significa a desvalorização de saberes e sim, um deslocamento para todas as categorias profissionais. Como parte do SUS, a saúde mental é essencialmente um campo de atuação multiprofissional. E para além da armadilha dos especialismos, deve-se valorizar o saber do próprio sujeito que sofre, de tal forma que ele seja protagonista do seu cuidado.
Leia também: Movimento Antimanicomial denuncia 'indústria da loucura' no Governo Bolsonaro
Também desqualifica a RAPS, sem respaldo em evidências científica, ao afirmar que há uma “desassistência generalizada” (p.5) que foi promovida pela Coordenação Nacional de Saúde Mental (CNSM) do MS que, segundo o documento, por anos investiu na desospitalização, mas sem investir nos equipamentos extra-hospitalares.
Quanto a isso, até 2015, a CNSM, realizava publicações trimestrais de relatório, com dados do próprio MS. Um dos temas que os relatórios abordavam, era a atenção psicossocial estratégica, os CAPS. Na última publicação, um dos dados mostra exatamente a evolução do investimento federal nos CAPS, ao passo que a proporção dos recursos destinados aos leitos em hospitais psiquiátricos se reduzia. Entre 2006 e 2014, o investimento de recursos foi maior nos serviços que compõem a atenção psicossocial, em detrimento ao investimento de recursos em leitos hospitalares. Mas com a esteira do golpe jurídico-parlamentar em 2016, se promoveu uma reorientação da PNSM, através da publicação de diversas portarias, resoluções, nota técnica e decreto presidencial.
Leia mais: “Por uma sociedade sem manicômios”: a resistência de um movimento de acolhimento
Além de pregar o modelo ambulatorial, o documento afeta outros serviços, como os Consultórios na Rua (CnaR) e as Unidades de Acolhimento (UA). O primeiro, são serviços de saúde que acompanham pessoas em situação de rua através de um trabalho no próprio território, e o segundo propõe o cuidado em saúde, em serviço de caráter residencial transitório (até 6 meses), com funcionamento 24h, para pessoas que fazem uso nocivo de drogas e estão em situação de vulnerabilidade. A tentativa é de jogar os casos para a assistência social, o que sugere que há uma desarticulação entre os setores, sendo que a saúde pública e a assistência social devem trabalhar juntas, integrando uma rede de cuidado integral à população.
O governo Bolsonaro, articulado com entidades religiosas e médico-conservadoras, visa desmontar diversos programas e serviços da saúde mental e atenção psicossocial. O plano é um “revogaço” de cerca de 100 normativas do setor, editadas entre 1991 e 2014. A revogação dessas portarias coloca em risco a extinção das equipes e vai na contramão de um dos princípios do SUS, a universalidade do acesso. Esta decisão está prevista para ocorrer no próximo dia 17 de dezembro, em CIT (Comissão Intergestores Tripartite), em meio ao recesso do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, o que poderia dificultar eventuais resistências. Além do contexto da pandemia de covid-19, que pode tirar visibilidade do processo.
Diante de tamanho retrocesso, foi criada a Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica Brasileira e da Luta Antimanicomial. Uma articulação composta por usuários da RAPS, trabalhadoras(es) da saúde, pesquisadoras(es), docentes, estudantes, familiares, gestores e conselheiros de saúde, de Norte a Sul do país. O objetivo é de combater as propostas do MS e defender uma sociedade mais justa. A organização popular é uma importante ferramenta para barrar mais uma boiada que o governo federal quer passar.
A luta é política o tempo todo e só pode ocorrer em contexto democrático. Sigamos na luta por uma sociedade sem manicômios!
*Priscilla Paiva Gê Vilella dos Santos – Psicóloga e sanitarista. Mestranda no PPG em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ). Membro da Frente Estamira de CAPS.
**Marina Bistriche Giuntini – Terapeuta ocupacional e sanitarista. Mestranda no Mestrado Profissional em Atenção Psicossocial do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ). Trabalhadora de CAPS.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rogério Jordão