Democracia sob risco

Artigo | O novo padrão de campanhas eleitorais: entender ou desistir

Os algoritmos induzem os usuários a sustentar qualquer posição, desde que ela capte os medos dos eleitores

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Esta forma (fake news) de fazer propaganda se alimenta sobretudo de emoções negativas, pois são essas que garantem maior participação das pessoas - Pixabay

Não rir, nem se lamentar, nem odiar, mas compreender. 

Muitas pessoas que se interessam por assuntos políticos estão impressionadas com alguns acontecimentos no âmbito planetário.

De fato, nos últimos 20 anos o mundo assistiu a uma espetacular ascensão de movimentos populistas de direita e extrema direita.

Partidos e movimentos de extrema direita em todo o mundo, particularmente na Europa, se sentiram à vontade para levantar a cabeça e fazer suas pregações extremistas, algumas vezes chegando ao poder em seus países.

Orbán na Hungria, o partido Lei e Justiça na Polônia, Kurs, na Áustria, dentre outros, foram vencedores de processos realizados dentro de formatos democráticos considerados tradicionais.

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As espetaculares vitórias eleitorais de Trump em 2016 e de Bolsonaro em 2018, além da vitória do Brexit, no início de 2020, podem ser considerados os pontos mais altos da ascensão do populismo de extrema direita.

Nos últimos tempos as ondas desse populismo extremista aparentemente estão refluindo em todo o planeta, porém a forma de fazer política nunca mais será a mesma.

A seguir veremos rapidamente quais foram as mudanças mais perceptíveis.

O caldo de cultura: as redes sociais

 Sean Parker, primeiro financiador do Facebook, explica como funcionam as redes sociais:

“Somos criaturas sociais, e nosso bem-estar depende, em boa parte, da aprovação dos que estão em volta. Ao contrário de outros animais, o homem nasce sem defesas e sem competências e continua assim por muitos anos. Desde o início, sua sobrevivência depende das relações que ele consegue estabelecer com os outros. O diabólico poder de atração das redes sociais se baseia nesse elemento primordial. Cada curtida é uma carícia maternal em nosso ego. A arquitetura do Facebook é toda sustentada sobre a nossa necessidade de reconhecimento”.

Ele continua: “Nós fornecemos a você uma pequena dose de dopamina, cada vez que alguém o curte, comenta uma foto ou um post, ou qualquer outra coisa sua. É um loop de validação social, exatamente o tipo de coisa que um hacker como eu poderia explorar, porque tira proveito de um ponto fraco da psicologia humana. Os inventores, os criadores, eu, Mark [Zuckerberg], Kevin Systrom, do Instagram, estávamos perfeitamente conscientes disso. E, mesmo assim, fizemos o que fizemos. E isso transforma literalmente as relações que as pessoas têm entre si e com a sociedade como um todo. Interfere provavelmente na produtividade, de certa maneira. Só Deus sabe qual o efeito que isso produz no cérebro de nossos filhos”.

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O cliente ideal do Sean Parker, de Zuckerberg e de todos os outros criadores de redes sociais é um ser compulsivo, empurrado por uma força irresistível para voltar à plataforma dezenas, centenas, milhares de vezes por dia, fissurado por essas pequenas doses de dopamina da qual se tornou dependente. Um estudo nos EUA demonstrou que, em média, cada pessoa dá 2.617 toques por dia na tela do smartphone. Sem dúvida, não é o comportamento de uma pessoa que esteja sã de espírito. Está mais próximo do modo de agir de um junkie em fase terminal, que se “aplica”, ao longo do dia, seguidas doses de refresh e de likes.

O “público alvo” da extrema-direita

Obviamente que as pessoas fissuradas por reconhecimento nas redes sociais não se identificam automaticamente com as ideias da Extrema Direita.

Quem é, então, o “público alvo” desses movimentos populistas de direita?

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O filósofo alemão Peter Sloterdijk nos dá uma dica importante.

Em um livro publicado em 2006 ele constata que um sentimento irresistível atravessa todas as sociedades.

Esse sentimento é alimentado por aquelas pessoas que, com ou sem razão, pensam ter sido lesadas, excluídas, discriminadas ou insuficientemente ouvidas.

Historicamente a Igreja foi a primeira a perceber esse sentimento de cólera e canalizar essa imensa raiva acumulada.

Posteriormente, os partidos de esquerda tomaram a frente a partir do final do século 19. Segundo o filósofo, estes últimos garantiram a função de “bancos de cólera” acumulando as energias que, em vez de serem gastas em um instante, poderiam ser investidas na construção de um projeto mais amplo.

Hoje, diz Sloterdijk, ninguém mais gerencia essa cólera que as pessoas acumulam.

A Igreja Católica, por exemplo, teve que abandonar seus tons apocalípticos, para se adaptar aos “tempos modernos” e a esquerda, de forma geral, se adaptou aos princípios da democracia liberal e às regras do mercado.

Como consequência, a cólera passou a se expressar de maneira cada vez mais desorganizada, dos movimentos antiglobalização às revoltas nos subúrbios.

Entre dez a quinze anos após o livro de Sloterdijk foi possível constatar que parte significativa dessa energia colérica foi canalizada de forma organizada pelos movimentos de extrema direita.

 Como Isso Aconteceu?

 O caso emblemático inicial, que alterou a forma de fazer política, aconteceu na Itália. No início dos anos 2000, um italiano especialista em marketing compreende que a internet irá revolucionar a política.

Ele, Gianroberto Casaleggio, contrata um comediante, Beppe Grillo, para o papel de primeiro avatar de carne e osso de um partido-algoritmo. Nasce, assim, o Movimento 5 Estrelas.

Na realidade o 5 Estrelas não é um partido político. É um blog extremamente centralizado por Casaleggio, que faz estrondoso sucesso abordando temas populares que estimulam o ressentimento com o establishment político. Casalleggio é o maestro dos algoritmos, selecionando os assuntos que terão engajamento de seu público e Grillo, famoso comediante, é a face viva, exagerando ao máximo os assuntos abordados.

O Movimento 5 Estrelas fez muito sucesso eleitoral, elegendo numerosas bancadas de deputados e conquistando as Prefeituras de Roma e Turim em 2016.

Esse novo formato de “fazer política” chamou a atenção de vários ideólogos de movimentos populistas de extrema direita, dentre eles Dominic Cummings, Steve Bannon, Milo Yiannopoulos, Arthur Finkelstein, dentre outros.

Giuliano da Empoli, escritor italiano, denomina esses ideólogos de “Engenheiros do Caos” (**).

Bannon, por exemplo, fez muitas visitas à Itália para absorver conhecimentos e elaborar a estratégia de uma “internacional populista”.

O que foi captado na Itália foi aplicado, com adaptações, em vários lugares do planeta.

As Fake News

Os algoritmos das redes sociais são programados para oferecer aos usuários qualquer conteúdo capaz de atraí-los com maior frequência e por mais tempo.

Os algoritmos dos engenheiros do caos induzem os usuários a sustentar qualquer posição, razoável ou absurda, realista ou intergaláctica, desde que ela capte as aspirações e, principalmente, os medos dos eleitores.

Esta forma de fazer propaganda se alimenta sobretudo de emoções negativas, pois são essas que garantem maior participação dos eleitores. Daí o sucesso das fake News e teorias da conspiração.

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O sucesso dessa nova forma de abordagem é medido pela capacidade de fazer explodir a cisão esquerda/direita para captar os votos de todos os revoltados e furiosos, e não apenas dos fascistas.

Por trás do aparente absurdo das fake News e das teorias da conspiração oculta-se uma lógica bastante sólida. Do ponto de vista dos líderes populistas e seus assessores, as verdades alternativas não são um simples instrumento de propaganda. Elas constituem um verdadeiro vetor de coesão.

Mencius Moldburd, famoso blogueiro da direita alternativa dos EUA, escreveu: “Por vários ângulos o absurdo é uma ferramenta organizacional mais eficaz que a verdade. Qualquer um pode crer na verdade, enquanto acreditar no absurdo é uma real demonstração de lealdade: a pessoa passa a possuir um uniforme virtual e pensa fazer parte de um exército”.

Assim, as lideranças de movimentos que agreguem fake News à construção de sua própria visão de mundo se destacam da manada dos comuns. Não são vistos como burocratas pragmáticos e fatalistas como os outros, mas como homens de ação, que constroem sua própria realidade para responder a anseios de seus seguidores.

A Destruição de Adversários

Arthur Finkelstein é um judeu homossexual de Nova York, apaixonado por ópera e literatura russa que milita, desde muito jovem, na ala dura do Partido Republicano dos EUA.

Seu método é o microtargeting, ou seja, análises demográficas sofisticadas e sondagens de boca de urna entre os eleitores das primárias dos EUA, que vão permitir identificar os diversos grupos para os quais devem ser enviadas mensagens segmentadas. A uns ele envia mensagens mais moderadas. Com outros envia mensagens pesadas, apontando certos aspectos do programa ou da personalidade dos candidatos que esses eleitores apoiam.

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O verdadeiro talento de Finkelstein consiste não tanto em promover seu candidato, mas em destruir seus adversários. Ele desenvolve campanhas negativas, que jogam luzes nos defeitos de seus oponentes.

Ele transformou essa metodologia em uma arte que é copiada em vários locais do planeta.

Comunicação Segmentada

No modelo tradicional, a comunicação entre um candidato e seus eleitores alvo era (e é) muito limitada: se o candidato queria se comunicar com uma categoria ou grupo específico (base de sindicato, categoria empresarial, bairro, ...) tinha que fazer de forma pública. Se um candidato quisesse fazer uma comunicação para um público heterogêneo teria que utilizar termos moderados, para atrair o maior número possível de eleitores.

Atualmente, com a atuação de especialistas (físicos de dados, profissionais de TI, ...), a situação funciona de forma totalmente diferente. Esses profissionais identificam indivíduos ou pequenos grupos com características semelhantes e enviam mensagens customizadas para cada pessoa ou grupelho. Essas pessoas e grupos podem ter compreensões e comportamentos contraditórios entre si, porém nunca ficarão sabendo uns dos outros. O importante para os especialistas é convencê-los a votar no seu candidato ou não votar do candidato a ser destruído.

Essa nova forma de atuação política seria impensável sem a internet e as redes sociais.

Comentários Finais

Os atores com capacidade de liderança e visão estratégica continuam sendo fundamentais no jogo político.

Por outro lado, as redes sociais e a utilização de métodos científicos na comunicação via internet estão sendo cada vez mais decisivos na escolha dos eleitores. Para o bem ou para o mal.

É muito importante que as forças democráticas se apropriem dessas estratégias de comunicação com os eleitores, não só para se contrapor ao populismo de direita e extrema direita mas, principalmente, fazer com que suas mensagens cheguem com qualidade a um número cada vez maior de pessoas.

Para que isso ocorra é fundamental que energias e recursos financeiros sejam direcionados para formação e organização de núcleos de especialistas em internet e tecnologia da informação.

Felizmente parece que estamos assistindo, no planeta, a um refluxo da onda de extrema direita e a um avanço dos ventos democráticos. Acredito que essa situação possa ser potencializada nos próximos anos.

* Omar Rösler, mora em Porto Alegre (RS), é consultor e professor de Aikido

** (Nota do texto) No livro “Os Engenheiros do Caos”, de Giulano da Empoli, ele explica didaticamente como as fake News, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. No presente texto tomei a liberdade de fazer algumas citações literais desse livro. Sugiro fortemente sua leitura.

 

Edição: Rogério Jordão