Pernambuco

A saga da eleição que não acabou em Pesqueira (PE): o cacique Xukuru, a santa e o TSE

Cacique Marquinhos, prefeito eleito de Pesqueira (PE), tenta reverter a impugnação de sua candidatura

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

Cacique Marquinhos Xukuru lidera, desde 2003, os indígenas de Pesqueira, no agreste de Pernambuco - Foto: Arquivo Pessoal

“E diga ao povo que avance! Agradeço a Deus, primeiramente, e a Nossa Senhora das Montanhas, nossa mãe Tamain, por terem nos ajudado durante essa jornada. Nós sempre acreditamos que sairíamos vitoriosos e, hoje, Pesqueira pode se dizer livre do grupo político que a aprisionou nos últimos 30 anos”. Assim, Marcos Luidson de Araújo, de 42 anos, celebrou, em suas redes sociais, sua vitória nas urnas a conquista da Prefeitura de Pesqueira, no agreste de Pernambuco.


Cacique Marquinhos Xukuru com imagem de Nossa Senhora das Montanhas / Arquivo Pessoal

Araújo é conhecido como cacique Marquinhos Xukuru. Desde 2003, lidera seu povo no município de Pesqueira, que possui uma população de 68 mil habitantes, sendo 20 mil indígenas. A eleição deste ano dividiu os habitantes da cidade. Maria José (DEM), atual prefeita, integrante de uma família que tem muito poder na região, era sua antagonista no pleito eleitoral.

Passava das 19h30 do dia 15 de novembro quando o cacique, que foi candidato pelo Republicanos, foi anunciado vitorioso com 51,6% dos votos, contra 45,48% de Maria José (DEM), se tornando o primeiro indígena a ser prefeito de Pesqueira. Na principal praça do município, a população se concentrou para celebrar a vitória do cacique Marquinhos Xukuru.

Leia Mais.: Agricultura do sagrado resgata ancestralidade e espiritualidade do povo Xukuru

O final poderia ser apoteótico para o indígena que viu seu pai, o cacique Chicão Xukuru, ser brutalmente assassinado em 1998, após contendas com fazendeiros da região, que insistiam em se manter no território do seu povo. Porém, começa aí mais um episódio de uma saga impressionante em Pesqueira.

Deus e o Diabo

Em agosto de 1936, o município pernambucano vivia uma ameaça. De longe, veio o boato de que o bando de Lampião se aproximava da região. Ato contínuo, a população local correu para se abrigar em Aldeia da Guarda, no bairro de Cimbres, que fica no pé da Serra do Ororubá, nos limites de Pesqueira.

Nos dias seguintes, duas meninas que saíram para colher mamonas, teriam visto Nossa Senhora das Graças no alto do Ororubá. Segundo relatos reunidos pela pesquisadora Letícia Loreto Quérette, as crianças teriam pedido à santa que livrasse Pesqueira da sanha de Lampião. O cangaceiro não atacou a cidade e a notícia sobre a aparição se espalhou, tornando a região um destino para peregrinos em busca de milagres.

Não existe registro oficial da Igreja Católica sobre a aparição da santa no alto do Ororubá, nem reconhecimento do Vaticano. Porém, Em 1986, no jubileu da visão das duas meninas, o bispo de Pesqueira, Dom Manoel Palmeira, admitiu o testemunho das duas crianças como verdadeiro. É o ponto de partida para que romeiros de diversas partes do país fossem até o agreste pernambucano. De Recife, saíam dezenas de ônibus todo final de semana.

Cimbres, por onde passa a rota dos peregrinos, assim como o santuário de Nossa Senhora das Graças, está dentro da Terra Indígena Xukuru de Ororubá. Os indígenas cultuam, na verdade, a Nossa Senhora das Montanhas, a Mãe Tamain. Sua imagem foi encontrada no Ororubá no século 17 e é mantida no território indígena até hoje.

Apesar de cultuarem divindades distintas, o acesso dos peregrinos ao santuário de Nossa Senhora das Graças, no alto do Ororubá, nunca foi impedido pelos indígenas. Até 24 de julho de 2002, quando o então prefeito de Pesqueira, João Eudes, organizou uma reunião em Aldeia da Guarda, dentro do território Xukuru, mas sem a presença dos indígenas. Participaram do encontro o prefeito de Poção, município vizinho, Everaldo Cordeiro Aguiar, representantes do Departamento de Estradas de Rodagem de Pernambuco (DER-PE), do Banco do Nordeste e da Empresa de Turismo de Pernambuco. E também representantes da Igreja Católica na região, Frei José, que era o padre de Cimbres, e o Bispo Diocesano pesqueirense, Dom Bernardino Marchio.

Leia também: "Povos indígenas começaram a ocupar o parlamento", afirma vereador reeleito no Ceará

Durante a reunião, os Xukuru apareceram com Sandro Lobo, advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Os indígenas foram avisados do encontro e da motivação do prefeito de Pesqueira. João Eudeus (2000-2008) era ambicioso e precisava mostrar serviço ao povo de Pesqueira. Em 2000, venceu a eleição à Prefeitura do município pelo antigo PFL, hoje DEM, com uma diferença de apenas 915 votos para o segundo colocado, José Peixoto, do PSL.

Antes, em 1996, Eudes havia perdido a eleição à prefeitura local para Eutrópio Monteiro de Leite, do PSDB. Porém, a gestão do tucano não agradou os pesqueirenses e ele terminou em último em 2000.

O turismo religioso

A necessidade de mudança expressada nas urnas, fez Eudes abraçar o projeto audacioso da construção de um polo de turismo religioso em Pesqueira. Naquele 24 de julho, na Aldeia da Guarda, o prefeito apresentou sua ideia para o desenvolvimento do turismo no município.

O projeto de Eudes previa a construção de hotéis em Pesqueira, estacionamentos para cinco mil carros e ônibus que levavam peregrinos ao local, uma nova igreja, a edificação de um museu contando a história de irmã Adélia, uma das crianças que viu a santa no morro – que se tornou freira, e a pavimentação da rota que os fiéis percorrem até o santuário. As obras seriam financiadas pelo Banco do Nordeste e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird).

Frei José gostou da ideia, mas apresentou uma condição para apoiar o projeto. A igreja deveria administrar o turismo na região. Entrada e saída dos turistas, horários de missas, pequenos comércios, tudo passaria pelas mãos dos religiosos.

Os indígenas rejeitaram a ideia. “Quando foi apresentada a estrutura do projeto do empreendimento, o que nós questionamos é que não houve uma participação na construção e elaboração do projeto pelo povo Xukuru. No momento da apresentação, nós falávamos que nossa prioridade era a luta pela recuperação do nosso território, uma vez recuperado, iríamos ver de que forma esse projeto podia ser implementado”, relembra o cacique Marquinhos Xukuru.

Provocado pelo Cimi e os Xukuru, o Ministério Público Federal se manifestou no dia 14 de agosto de 2002, rechaçando a possibilidade de implementação do projeto sonhado por Eudes, pois já havia um processo aberto na Fundação Nacional do Índio (Funai), desde 1992, para reconhecimento do território onde está a Serra do Ororubá como Terra Indígena, o que foi confirmado somente entre 2007 e 2009, quado a região foi homologada.

Leia ainda: Brasil tem recorde de candidaturas indígenas nas eleições de 2020

O documento em que o Ministério Público se manifesta, encontrado ela pesquisadora Quérette, mostra que Pernambuco, então governada por Jarbas Vasconcelos, hoje senador pelo MDB, já tinha interesse em explorar a área.

“Apresar da resistência interna ao projeto de turismo religioso, foram realizados, a partir de 2001, pela Fundação de Desenvolvimento Municipal, vinculada à Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Social do Estado de Pernambuco, com o apoio da Prefeitura Municipal de Pesqueira, estudos sobre desenvolvimento local sustentável da comunidade indígena Xukuru...Trata-se de ideia que vem sendo fomentada já há algum tempo. Projeto da Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco, datado de junho de 1998, defendia a consolidação do município de Pesqueira como polo turístico, centrado na estruturação desse Santuário”, aponta o MP.

No primeiro contato com o Brasil de Fato, a Prefeitura de Pesqueira negou o empreendimento. “A prefeita Maria José, assim como o ex-prefeito João Eudes, desconhecem qualquer projeto para implantação de empreendimento turístico religioso na região de Cimbres, área indígena de jurisdição Federal, desde o início dos anos 2000”.

Porém, três dias depois, em contato com a reportagem, Eudes afirmou que não se recordava da reunião, mas de fatos que a cerca. “Na época, quando eu era prefeito, eu fui na aldeia conversar com eles (Xukurus), mas não quiseram conversa. Passaram um tempo afastados, aí quiseram falar conosco. Não houve a discussão sobre o santuário, o que discutimos lá foi a melhoria de uma estrada. Nunca houve qualquer perseguição ou discussão. Na época, a discussão era com o pessoal da tribo lá”.

A tentativa de diálogo é negada pelos Xukurus. “Não fomos consultados antes do encontro, nem para falar do projeto e nem sobre a reunião mesmo, que aconteceu dentro de nossa área”, rebate Marquinhos.

Mortes e Dissidência

O cacique Chicão Xukuru foi quem começou a luta pela homologação do território e a reorganização do povo Xukuru. As retomadas de terras comandadas por ele, ainda nos anos 1990, incidiram em áreas que eram ocupadas por fazendeiros e posseiros.

No dia 20 de maio de 1998, Chicão foi assassinado a tiros por José Libório Galindo, que foi contratado por Rivaldo Cavalcanti de Siqueira. Porém, o mandante do crime foi o fazendeiro José Cordeiro de Santana.

Em 2004, Siqueira foi condenado a 19 anos de prisão. O fazendeiro e o pistoleiro não receberam sentença porque morreram antes de serem julgados. Em 24 de gosto de 2001, três anos após a morte de Chicão, outra liderança Xukuru foi assassinada, Chico Quelé, que foi executado antes de uma reunião que definiria a indenização de fazendeiros e posseiros de Pesqueira, que saíram do território dos indígenas.

Se as duas lideranças anteriores morreram após conflitos por terra com latifundiários da região, Marquinhos se tornou alvo dentro da própria aldeia e isso guarda relação com o projeto apresentado por Eudes, o ex-prefeito de Pesqueira. Após a fatídica reunião de 2002, em que o povo Xukuru rejeitou o turismo religioso em suas terras, uma dissidência surgiu e passou a questionar a liderança do cacique.

Leia também: Roraima elege 2 prefeitos, 3 vice-prefeitos e 10 vereadores indígenas

Quatro famílias queriam entregar suas terras para o empreendimento. Porém, foram impedidos pela imposição da maioria no território. Nascia uma divisão, um povo com dois caciques, os Xukurus de Ororubá, liderados por Marquinhos, e os Xukurus de Cimbres, comandados por Biá.

No dia 7 de fevereiro de 2003, essa dissidência interna provocou a morte de dois indígenas que acompanhavam Marquinhos em um caminhão dirigido pelo cacique. No caminho para a aldeia, encontraram José Lourival Frazão, Xukuru de Cimbres, que, segundo a denúncia do Ministério Público Federal, teria disparado contra os rivais.

Marquinhos fugiu e ficou um dia desaparecido. Quando retornou à aldeia, os Xukuru de Ororubá haviam atirado em dois Xukuru de Cimbres, que sobreviveram, incendiado quatro casas e cinco veículos – um deles da Prefeitura de Pesqueira. Entre as residências que queimara, estavam a de Biá e Frazão.

O caso teve repercussão nacional e o cacique recebeu, em Pesqueira, a visita de Dom Pedro Casaldáliga Plá, Bispo Emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia (MT) e Missionário Claretiano. Senador na época, Antônio Carlos Magalhães recebeu Marquinhos Xukuru em Brasília para uma reunião sobre o conflito na região. 


Cacique Marquinhos e Dom Pedro Casaldáliga, em 2003 / arquivo pessoal

Pelo conjunto de crimes, a Justiça condenou Marquinhos e outros 34 indígenas a pena de 10 anos de reclusão, pelo delito de incêndio, artigo 250 do Código Penal Brasileiro. A pena foi convertida em serviços sociais. O cacique afirma que não estava no local no momento do ataque. “Eu estava abrigado, me cuidando, estava ferido. Quando retornei, o povo já tinha vingado o atentado, eu não participei.”

A eleição que não acabou

Dezessete anos após sofrer um atentado e ser condenado pela Justiça, agora em 2020, Marquinhos Xukuru decidiu ser candidato à Prefeitura de Pesqueira. Coincidência, ou não, Maria José, a atual prefeita e principal opositora à sua candidatura, é esposa de João Eudes, que governou o município entre 2000 e 2008.

Após a derrota nas urnas, Maria José acionou a Justiça, reclamando que Marquinhos Xukuru deveria ser incluído na Lei da Ficha Limpa, por sua condenação. O caso foi parar no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e está nas mãos do ministro Sérgio Silveira Banhos. O plenário da corte deve decidir sobre a contenda até a próxima sexta-feira (18).

A defesa do cacique alega que o crime de incêndio, artigo 250 do Código Penal Brasileiro, não está previsto no escopo da Lei da Ficha Limpa. Maria José afirma que o cacique atentou contra o patrimônio privado, o que está previsto na legislação.

“O crime de incêndio não está presente dentro desse corpo jurídico apresentado pela Lei da Ficha Limpa. Nossos adversários estão tentando fazer com que o crime de incêndio seja enquadrado também como crime de dano, esse sim consta na Ficha Limpa. O que estão tentando fazer é uma interpretação extensiva para prejudicar a candidatura do cacique Marcos”, afirma Marcelo Patu, advogado eleitoral que defende o indígena.

Leia mais: Bolsonaro avança contra indígenas isolados

Ainda de acordo com Patu, o cacique é alvo de uma perseguição política por sua origem indígena. “Marquinhos saiu de uma liderança política para se tornar o prefeito, isso incomoda as pessoas. O povo Xukuru era muito pobre, miserável, e hoje é muito próspero na região.”

Maria José afirma que está agindo de acordo com a lei. “A inelegibilidade do Sr. Marcos Luídson de Araújo (vulgo Marquinhos) é devido a sua condenação pela Justiça Federal do mesmo pelo crime de incêndio em residência habitada contra integrantes de sua própria etnia, e que prevê a inelegibilidade de 8 anos após o cumprimento da pena (extinta em 2013). Esta tentativa de relacionar a inelegibilidade do Cacique Marcos a uma perseguição étnico/política é totalmente mentirosa e tem como principal objetivo criar um clima de comoção por meio de vitimismo falacioso”.

Outro lado

O Brasil de Fato procurou a Diocese de Pesqueira e o cacique Biá, mas não conseguiu contato até o fechamento desta matéria.

Edição: Rogério Jordão