O Brasil do ano de 2020 é um território dominado pela incerteza de sobrevivência
Por Marilia Lomanto Veloso*
E, como poderia dividir-me, quando tudo concorre, em geral, para sustentar a minha divindade? Além disso, porque haveria de me pintar como sombra e imagem numa definição quando estou diante dos vossos olhos e me vedes em pessoa?”
(Erasmo de Rotterdam - Elogio da Loucura)
Estas reflexões não querem ser uma análise psicológica, psicanalítica nem mesmo política sobre o presidente da República do Brasil. Não teria repertorio nem espaço para tanto. O que se pretende, a partir do viés “irônico” de um diálogo entre o pensamento do século XVI e o século XXI, é um relato de condutas onde a “Loucura” possa ter voz para contribuir com um diagnóstico sobre a tumultuada passagem de um personagem pelo centro de poder maior do país.
Guilherme Gonzaga Duarte (A Loucura em Foucault: arte e loucura, loucura e desrazão), para além da compreensão da loucura como “distúrbio mental, sofrimento psicológico”, como define o saber psiquiátrico, refere-se à concepção que dispensa a ciência de que “loucura é uma codificação que leva ao silêncio”.
Aqui, ao revés disso, se dá a ruptura com esse silenciamento. A “Loucura” fala. E esse discurso faz um recuo histórico até o século XVI, visita os Países Baixos para um encontro com o universo clássico.
Escolheu-se a Holanda, um solo fértil na produção humana criativa, com envergadura especial para (re) inventar histórias que suplantam os limites do mundo real. Hendrik Willem Van Loon e Desidério Erasmo de Rotterdam, (Erasmo de Rotterdam), souberam tornar sedutoras as narrativas de processos históricos de nítida linguagem e proposições “libertarias e rebeldes” no tempo e no espaço.
Van Loon, historiador e jornalista de Rotterdam do século XX, em sua obra Vidas Ilustres (Editora Globo, 1949), construiu uma fascinante metodologia para (re) contar histórias de vida, convidando para um jantar regado ao cardápio da época em que viveram, homens e mulheres que influenciaram a humanidade através da genialidade de suas vidas plenas de dramas e desfechos notáveis e que sobrevoaram por sobre a dimensão estreita do tempo para ressignificar o bem, o mal.
O historiador trava com esse elenco de fantasmas mobilizados e levantados de seu sono eterno, um diálogo vivo e palpitante onde reviviam suas proezas.
Erasmo de Rotterdam, teólogo e filósofo humanista (séc. XVI), usou a ironia para satirizar seu tempo, dando voz e vida à Loucura que virou “entidade viva”, tanto para se “pavonear” como para denunciar condutas e sentimentos como a ingratidão, a hipocrisia, a intolerância.
O Elogio da Loucura, obra clássica do Renascimento escrita por esse holandês que marcou o pensamento crítico inspirador da Reforma protestante, permanece ativo em suas percepções sociais e políticas. Os males, conflitos e desigualdades que censurava se reproduzem no tempo. A sociedade não conseguiu resolver ainda suas dificuldades históricas de ser melhor e mais justa.
A Deusa da Loucura de Erasmo de Rotterdam responde pelo comportamento humano desviado do bem, mas é também a divindade que afronta os outros deuses e favorece o homem com tudo que “quer e pode fazer”. Esse ente divino não coloca a máscara “como aqueles que pretendem representar um papel de sábios e andam desfilando como macacos vestidos de púrpura e como asnos com peles de leão”. (Elogio da Loucura, Capítulo V – A Sinceridade da Loucura)
O Brasil do ano de 2020 do século XXI é um território dominado pela incerteza de sobrevivência à grave crise de pandemia que o mundo atravessa de braços com a ciência moderna, fruto das inquietações do século XVI, descolada dos “cálculos esotéricos” para se apresentar como o “fermento de uma transformação técnica e social sem precedentes na história da humanidade” (Boaventura de Souza Santos, Um discurso sobre as Ciências, p. 7).
Essa escuta da ciência, mecanismo crucial para o enfrentamento que faça recuar a força de um vírus que surfa na letalidade, é negada pelo homem na presidência, abrindo o cenário ideal para que a “loucura” estoure sua prepotência, ignore a sabedoria, produza o caos e a insegurança e torne possível a prática de condutas que decepam as relações entre o Estado e a sociedade, a partir das conquistas que a civilização sangrou para legar às futuras gerações.
A “loucura” afugenta a ciência e debocha do cientista, quando expressa: “Convidai um sábio a um banquete e vereis que se tornará um estraga prazeres por seu melancólico silêncio ou por suas importunas dissertações”. (Elogio da Loucura, Capítulo XXV- A Inferioridade da Sabedoria na Vida do Homem).
Um jantar imaginário promovido por Van Lon, convidando a “Loucura”, para uma análise “satírica” sobre um presidente, reafirmaria a tese de que o sistema não vai resolver esse problema que o povo brasileiro inventou e não encontra antídoto para “desinventar”.
Erasmo de Rotterdam refletiria sobre essa questão em meio ao cardápio onde filosofava em companhia de Van Loon quanto ao tratamento que deveria ser dispensado à sociedade da época. Na hipótese de nosso país, seria a que insiste em se submeter a um simulacro de pessoa carregando o peso de uma faixa presidencial: “Já que a raça humana teima em ser completamente louca [...] por que razão desperdiçar tanto tempo e tanto esforço procurando transformar a raça humana em algo que ela nunca quis ser? (Vidas Ilustres)
Diria a “Loucura” que o comportamento atribuído a pessoas “desviantes”, pelo sistema de justiça criminal se adequa ao presidente da República e tem sido objeto de crítica que não disfarça o entendimento de que, se esse sistema exercesse, de fato, as funções garantistas atribuídas pela Constituição Federal de 1988, de respeito ao Estado Democrático de Direito, o lugar de presidente não estaria ocupado por uma realidade construída por flagrante burla do processo de disputa, no encarceramento (e consequente subtração do direito de ser candidato) de Luiz Inácio Lula da Silva em flagrante lawfare e confronto com o devido processo legal, na ausência de debates e na vileza de utilização criminosa de instrumentos do mundo tecnológico com o virtual no mar de mensagens desqualificadoras de candidatura oponente.
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Diria a “Loucura” que ao longo da gestão presidencial, é flagrante o alargamento da depredação cultural, ambiental e o descumprimento de compromissos que o mundo exige para manter a vida no Planeta e que a dignidade das relações internacionais foi conspurcada e sequestrada do Itamaraty a “fina elegância” que habita o mundo da Diplomacia. Afirmaria ainda a “divindade” a prevalência dos discursos e práticas de ódio de raça, de classe, de gênero, de sexo e sexualidade, regional, de humanidade e de humanos e humanas tripudiando sobre a consolidação de projetos que igualavam as desigualdades.
Comprovaria a “Loucura” o expansionismo da truculência do aparato repressivo de Estado, a trapaça política, o embuste do capital, a venda da alma do Brasil e do povo brasileiro ao capital estrangeiro, a subserviência aos Estados Unidos da América do Norte e o silêncio confortável, cúmplice e pusilânime das fardas, das togas, das elites diante das violações ao Estado Democrático de Direito, com o sepultamento do respeito às promessas constitucionais de construção de uma sociedade justa e solidaria.
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Choraria mais a “Loucura” a vergonha das “verdades ocultas” nas falas da presidência, estimulando a mídia a ressaltar a atuação "irresponsável e perigosa", do presidente, definido como "o homem que quebrou o Brasil", ou "um líder ciumento e vingativo dirigindo uma nação em crise", que “estimula uma cultura de bullying e desprezo pelos que pensam diferente". Causariam rubor à “divindade” as declarações do presidente, tingindo de "histeria" e "resfriadinho", a cor enlutada da Pandemia, que seu "histórico de atleta" significa imunidade aos graves sintomas da doença. (The Telegraph).
A “Loucura” debocharia sobre o que denunciou o jornal de destaque da “pátria/patroa” da presidência, o The New York Times, que "Enquanto hospitais colapsam e governadores imploravam por ajuda, Bolsonaro passou os últimos meses brigando com a Suprema Corte, com o Congresso e até com seus próprios ministros". É certo que a “Loucura” sinalizaria a predisposição presidencial ao comportamento “desviante”, (denunciada perante o Tribunal Penal Internacional), notadamente na disputa política genocida da Pandemia que exige plano de ação imediata e unificada e sob a escuta da comunidade cientifica, ação que que o gosto narcísico do presidente repudia.
A pandemia desertou das ruas os gritos que ainda se faziam ouvir nas explosões de coletivos e movimentos sociais que expressavam sua repulsa à textura necrosada do governo Jair Bolsonaro, arauto inconsequente e ilegítimo do “finzinho da Pandemia”, personagem que nunca escamoteou a verdade sobre o que sempre foi e o que nunca viria a ser: uma definição de ser humano, com as complexidades e fragilidades humanas. Indague-se ao Presidente sobre quem “é” e a “Loucura” virá em socorro para dizer:
Não espereis que, de acordo com o costume dos retóricos vulgares, eu vos dê a minha definição e muito menos a minha divisão. Com efeito, o que é definir? É encerrar a idéia de uma coisa nos seus justos limites. E o que é dividir? É separar uma coisa em suas diversas partes. Ora, nem uma nem outra me convém. Como poderia limitar-me, quando o meu poder se estende a todo o gênero humano? (Elogio da Loucura) (grifos do autor).
Em socorro da humanidade, diria Michel Foucault:
“O que é então a loucura, em sua forma mais geral, porém mais concreta, para quem recusa desde o início, todas as possibilidades de ação sobre ela?”
*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, Mestra e Doutora em Direito Penal, Professora aposentada da UEFS. Promotora de Justiça da Bahia, aposentada, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos, membro do CDH da OAB/BA, da AATR, da RENAP e da ABJD.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rogério Jordão