A crise provocada pela extensão da pandemia da covid-19 está acelerando as contradições que põem em xeque a atual ordem internacional e os princípios ideológicos que a sustentavam.
O declínio do mundo unipolar, dominado unilateralmente pelos Estados Unidos e sua capacidade de exercer hegemonia sobre o resto do planeta, é uma realidade que quase nenhum Estado olha para Washington como referência para as medidas a serem tomadas para enfrentar a emergência. Mas nem sequer recorreram aos Estados Unidos para pedir ajuda econômica ou sanitária, como poderia ter acontecido em outros tempos. No entanto, mais de 80 países se dirigiram nesse sentido à China, que, sim, está se apresentando aos povos do primeiro mundo como um exemplo para vencer a crise médico-sanitária e como um aliado para sair da crise econômica.
Ao mesmo tempo, a União Europeia continuou o seu caminho em direção à perda total de peso no cenário internacional. A sua incapacidade de agir - a sua absoluta falta de iniciativa e de capacidade produtiva - mostra o seu carácter dependente na esfera econômica e a sua inserção no panorama mundial a colocam numa situação de plena dependência.
A desvalorização da hegemonia estadunidense, o fracasso da União Europeia e as contradições que surgem no interior dos países capitalistas estão mostrando a incapacidade da velha ordem internacional em dar uma resposta positiva aos desafios que o planeta tem, no sentido do que se requer de um sistema de relações internacionais abertas e multipolar. Isso enterraria definitivamente o sistema no qual os lucros das grandes potências, alcançados a custas das perdas dos Estados menos desenvolvidos, a chamada teoria da soma zero.
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No entanto, os poderes que ainda buscam manter o domínio sobre um mundo unipolar dificilmente vão promover o debate sobre como construir uma nova governança mundial no marco de uma comunidade que garanta um futuro compartilhado para a humanidade, que agregue vontades e esforços para cooperar, que nos permita alcançar objetivos comuns para que todos os habitantes do planeta tenham o direito a uma vida digna. Além de unir esforços para combatermos juntos situações de emergência como a que vive a humanidade.
Portanto, o primeiro objetivo que temos que nos colocar é o de unir forças para incluir na agenda política mundial, em todos os níveis, a necessidade de abrir um debate sobre como uma nova governança mundial deve ser organizada após a crise do coronavírus. Somente a construção desta comunidade com um futuro compartilhado por toda a humanidade é o que pode permitir uma saída mais rápida da atual situação de emergência. Isso se daria por meio da cooperação mútua e das possibilidades de compartilhar recursos, desenvolvendo um conceito de segurança compartilhada abrangente e sustentável, em benefício de toda a humanidade, que permita evitar que situações como a atual se repitam no futuro.
Ninguém pode negar que no mundo de hoje existe uma total interdependência entre todos os países e territórios. Assim como ninguém pode negar que o desenvolvimento das forças produtivas, os avanços tecnológicos e as descobertas médicas permitem, neste momento, fazer frente, com êxito, às situações de emergência como a atual. Portanto, o objetivo da nova governança internacional deve ser enfrentar essa inter-relação a partir da cooperação, que consiga partilhar recursos e avanços técnico-científicos para que possam ser utilizados em benefício de toda a humanidade. Também elaborando regras claras que ajudem e protejam os Estados mais fracos e vulneráveis das agressões dos Estados mais poderosos e desenvolvidos.
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É necessário, portanto, mudar e desenvolver regras para promover políticas que se pautem pelo interesse geral, a partir da solidariedade, fortalecendo os instrumentos de proteção social e as relações internacionais baseadas na coexistência pacífica e benefício mútuo.
A partir desses parâmetros, uma questão básica para que se possa consolidar um novo quadro de relações políticas, econômicas e culturais entre os Estados, a partir de instituições internacionais, ao propor um novo modelo de governança mundial, é necessário desenvolver um grande projeto de reconstrução do planeta. Este deve fazer frente às consequências que a atual crise está provocando, pois só garantindo condições de vida dignas para toda a humanidade é possível que um projeto que busque desenhar um novo modelo de sociedade para o século 21 tenha futuro.
Um grande projeto de reconstrução do planeta precisa contar com suficiente apoio social, político e econômico, com regras de funcionamento claras, que evitem situações de injustiça, neocolonialismo e degradação ambiental, que a globalização neocapitalista tem causado. A construção de uma nova ordem internacional exige um desenvolvimento conjunto, ou pelo menos não tão desequilibrado quanto o sofrido pelo planeta em consequência da hegemonia de séculos de dominação e exploração capitalistas.
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A combinação de um novo modelo de governança internacional com o desenvolvimento de um grande projeto de reconstrução do planeta nos leva a propor um novo modelo do sistema das Nações Unidas. Isso porque, atualmente, há uma grande contradição entre a carta fundadora do organismo, elaborada em 1945 (quando o mundo ainda era mais marcado pela barbárie da Segunda Guerra Mundial), do que pela confrontação entre blocos. Também pelo modelo de organização e funcionamento decorrente da Guerra Fria, que funcionava pela constituição de blocos diferenciados em áreas circunscritas de influência, que foram confrontadas militar e economicamente. Ninguém pode duvidar que esta forma de organização possa impedir que se alcancem os objetivos estabelecidos na carta de fundação da ONU. Então, é claro que com este esquema é impossível alcançar um modelo de governança internacional horizontal e multipolar.
Um novo modelo de organização internacional, com novas estruturas e regras de funcionamento, deve começar pela valorização do papel da Assembleia Geral, que deve estar acima das competências do Conselho de Segurança. Além de uma redefinição dos demais órgãos e organismos que compõem o sistema global das Nações Unidas.
Nesta perspectiva, deve estar claro que são necessários novos instrumentos econômicos e sociais internacionais de caráter igualitário e solidário, que atuem desde o início do benefício mútuo no marco de um Conselho Econômico e Social verdadeiramente dedicado a promover o desenvolvimento de todos os povos do planeta, especialmente dos Estados e territórios menos favorecidos. E que promovam e desenvolvam este grande projeto de reconstrução do planeta após a crise do coronavírus.
Um Conselho Econômico e Social verdadeiramente dedicado a promover o desenvolvimento com uma participação especial da sociedade civil, para definir e fortalecer um novo sistema econômico internacional que termine com a realidade atual, de tipo colonial. De modo que a Assembleia Geral das Nações Unidas e o Conselho Econômico Social são os que devem definir as linhas gerais do funcionamento da economia, para garantir que as políticas atendam ao interesse geral.
O objetivo é propor um modelo de governança mundial que coloque a nova ordem econômica internacional a serviço dos sistemas sociais, educacionais, culturais e sanitários, para melhorar a qualidade de vida de toda a humanidade.
Uma questão importante no momento de se levantar essas ideias básicas sobre o que um novo sistema das Nações Unidas pode ser, é que qualquer projeto de uma comunidade internacional de objetivos compartilhados não pode ser construído a partir de uma limitação das diferentes soberanias nacionais, muito menos dos direitos dos povos. São estes que devem decidir livremente seu sistema econômico, social e cultural. A questão é conseguir uma tensão equilibrada entre soberania nacional e cooperação internacional. Defendendo claramente as competências entre as instituições internacionais que atuariam em questões de interesse internacional, com base no benefício e respeito mútuos aos poderes de cada Estado, derivados do reconhecimento da soberania nacional.
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Por todos estes argumentos, cientes de que existem potências econômicas, sociais e militares que vão utilizar todos os recursos ao seu dispor para manter a ordem unipolar dominada pelo grande capital de características coloniais, temos que acumular forças. Para isso, fazer uma grande convocatória que, de maneira plural e diversa, debata em todas as iniciativas, fóruns e encontros propostas para um movimento mais amplo. Este deve atender à necessidade de incluir na agenda política mundial a refundação da ordem internacional e o desenvolvimento de um grande projeto de reconstrução do planeta. Isso nos levará a essa comunidade com um futuro partilhado por toda a humanidade. E que nos permita sair desta terrível experiência que temos sofrido, mais unidos, solidários e convictos, além de fronteiras, cor da pele, local de nascimento, culturas ou religiões. Portanto, temos que enfrentar coletivamente os desafios que o futuro nos traz, derrotando a injusta globalização neoliberal colonial.
É necessário acumular forças em um movimento em que, junto com os Estados que concordam com a necessidade de uma nova ordem internacional, participe a sociedade civil, por meio de todos os tipos de coletivos e movimentos populares.
O objetivo desta proposta é, assim, propor uma convocatória coletiva para a elaboração de uma proposta de nova governança mundial, vinculada ao desenvolvimento de um grande projeto de reconstrução planetária.
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Isso se inicia por cobrar o novo presidente dos Estados Unidos. Diante do dilema de escolher entre continuar o caminho que nos leva a uma nova situação de Guerra Fria, com um mundo militarizado dividido em blocos opostos, ou se abrir a um cenário de distensão e um retorno aos acordos internacionais que Trump havia abandonado.
*José L. Centella Gómez é presidente do Partido Comunista Espanha.
Edição: Vivian Fernandes