Publicado em 1903, o livro “O povo do abismo – Fome e miséria no coração do império britânico: uma reportagem do início do século XX”, do jornalista estadunidense Jack London, retrata a miserabilidade vivida por cerca de 500 mil trabalhadores e sem-teto na região de Londres conhecida como East End, onde vivia a metade mais da população no início do século 20. A narrativa poderia, no entanto, dizer respeito também à situação vivida por milhões de trabalhadores brasileiros que vivem à margem do desenvolvimento econômico e social, uma realidade agravada pela pandemia de covid-19.
Do abismo, Jack London descreveu parte da população como “os miseráveis, os humilhados, os esquecidos, todos morrendo no matadouro social. Os frutos da prostituição – prostituição de homens, mulheres e crianças, de carne e osso, e fulgor e espírito; enfim, os frutos da prostituição do trabalho”.
A realidade da exploração do trabalho e, por outro lado, da exclusão e da miséria
Segundo Maria Sílvia Betti, autora da prefácio da obra e professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), é possível fazer uma relação entre o tema tratado pelo livro e a realidade brasileira a partir do “enorme número de desabrigados e desempregados”.
“O que Jack London encontra quando chega no coração do Império Britânico é um imenso bolsão de miséria, fome e pessoas absolutamente marginalizadas e excluídas. Isso é o que nós temos aqui: a realidade da exploração do trabalho e, por outro lado, da exclusão e da miséria”, afirma Betti.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Mensal (PNAD Contínua), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no dia 27 de novembro, o desemprego alcançou a taxa recorde de 14,6% no trimestre encerrado em setembro desde que o órgão iniciou a série histórica, em 2012. Em termos absolutos, 14,1 milhões de pessoas estão na fila do emprego em São Paulo.
Outro estudo, realizado entre junho de 2017 e julho de 2018, também do IBGE, mostrou que o Brasil atingiu 10,3 milhões de pessoas sem acesso regular à alimentação básica, com um aumento de três milhões no contingente em cinco anos. É como se parte da população brasileira vivesse sob as mesmas condições do povo de abismo de Jack London.
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Surgiu uma nova raça – o povo das ruas. [...] Eles têm tocas e covis para os quais rastejar na hora de dormir, e é tudo. [...] Da calçada imunda recolhiam e comiam pedaços de laranja, cascas de maçã e restos de cachos de uva. Quebravam com os dentes caroços de ameixa em busca da semente. Catavam migalhas de pão do tamanho de ervilhas, miolos de maçã tão sujos e escuros que ninguém diria que eram miolos de maçã, e os dois homens punham essas coisas na boca, mastigavam e engoliam; isso entre 6 e 7 da noite de 20 de agosto, do Ano de Nosso Senhor de 1902, no coração do maior, mais rico e mais poderoso império que o mundo jamais viu (trecho de O povo do abismo, de Jack London)
Do lado de cá, nos "tristes trópicos", durante a pandemia de covid-19, os 42 bilionários do Brasil aumentaram sua riqueza em US$ 34 bilhões (mais de R$ 180 bilhões), de acordo com o relatório Poder, Lucros e Pandemia, produzido pela organização Oxfam. No mesmo período, entre abril e julho, o governo federal transferiu R$ 166,9 bilhões com o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600, segundo a Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados.
Para Betti, o cenário do desenvolvimento capitalista se repete: “o desmonte do mundo do trabalho, a economia se tornando cada vez mais virtualizada, o capital especulativo principalmente com as grandes mídias digitais, o desmonte do Estado, o espaço urbano da megalópole com miséria e marginalização disseminadas”.
Segundo a professora, “o povo do abismo, ao mesmo tempo em que é uma reportagem sobre aquilo que Jack London cobre, também nos faz pensar aquilo que está à nossa volta”.
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Alternativa ao capital
O autor não apenas trouxe a realidade londrina para a literatura, mas também propôs o socialismo, do qual foi um militante durante a maior parte da vida, como uma alternativa aos problemas sociais que registrou.
Nas palavras de Betti, London foi um escritor proveniente da classe trabalhadora dos Estados Unidos de uma época em que as lutas trabalhistas estavam crescendo “tremendamente”.
“Representar [isso], ainda que na pauta de obras literárias, também faz parte do empenho pela luta e pela transformação. Aquilo que coloca a luta dos trabalhadores e das grandes questões coletivas na pauta estética ou literária também está abraçando uma causa e fazendo a sua parte na luta”, afirma a professora.
Jack London, pseudônimo para John Griffith Chaney, teve sua infância marcada por dificuldades financeiras. Desde adolescente, começou a trabalhar para ajudar na renda familiar: com entrega de jornais, pesca de lagostas, operário fabril, patrulha marítima. Somente com 19 anos, consegue se dedicar aos estudos. A experiência de vida fez com que London sentisse na pele a miserabilidade vivida pelos 500 mil trabalhadores e sem-teto na região de Londres conhecida como East End, onde viveu durante três meses de 1902 para escrever a reportagem, passando-se por um marinheiro desempregado.
O livro foi lançado pela primeira vez no Brasil em 2003 pela Fundação Perseu Abramo. Neste dezembro de 2020, em pleno contexto pandêmico, a editora Expressão Popular relançou a obra, com tradução de Hélio Guimarães e Flávio Moura e apresentação de Maria Sílvia Betti.
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Edição: Rodrigo Chagas