Coluna

A crônica [pandêmica] de Natal

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O ano de 2020 foi marcado por outras ondas para além da onda de contaminação do Covid, como a maré verde que tomou as ruas da Argentina e transbordou pelas redes a toda América Latina - HCDN / Fotos Públicas
Certamente, o imaginário constrói novos mundos, mas é a prática que tece realidades

Por Cristiane Ganaka* e André Cardoso**

“...ficamos assombrados diante das consequências das nossas condições sociais, aqui apresentadas sem véus,

e permanecemos espantados com o fato de este mundo enlouquecido ainda continuar funcionando.”

(Friedrich Engels - A situação da classe trabalhadora na Inglaterra)

Em um passado tão presente, numa terra circunjacente, jornadas exaustivas, condições precárias de trabalho, habitações inadequadas, alimentação insuficiente e uma ameaça constante a saúde, tomam o contorno da vida cotidiana. Poderia ser apenas uma citação da célebre obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels, publicada originalmente em 1845, que narra em que condições se dava o processo de industrialização e urbanização na sociedade capitalista. Porém, estamos apenas resumindo a realidade brasileira em 2020.

São Paulo, 11 de março do fatídico ano, a seguinte notícia começa a circular no meio do dia: “a Organização Mundial de Saúde (OMS) declara, nesta quarta-feira, a pandemia de covid-19”. Fecho os olhos e consigo imaginar a metrópole seguindo seu curso: pessoas paradas no engarrafamento ouvindo isso, burocratas checando as notícias no celular entre um e outro despacho ou cuidadoras ligando a TV enquanto serviam o almoço das crianças olhando a chamada de forma perplexa. A disseminação geográfica do vírus se alastra tão rapidamente pelo planeta quanto o fogo na Amazônia ou no Pantanal.

Cena I: A doença

Quando foi declarada a pandemia, o balanço da OMS era de 118 mil casos em 114 países e 4,3 mil mortes. No Brasil, no fim da tarde do mesmo dia, o Ministério da Saúde divulgou seu boletim sobre infectados com o novo vírus: eram 52 casos confirmados, 907 casos suspeitos e 935 descartados. Exatos 9 meses depois, começo a escrever este artigo, coincidentemente ou não, em 11 de dezembro, quando tínhamos quase 180 mil óbitos registrados e mais de 6,8 milhões de diagnósticos. Uma criança teria sido gestada e parida nesse período, como muitas foram e não conseguimos acompanhar seu desenvolvimento inicial.

Parece que faz tempo, mas que passou rápido. E em que ponto estamos no espiral do tempo que assemelha passado e presente? O Reino Unido iniciou a vacinação em massa, o mesmo território que comporta a Inglaterra, de Engels, onde os custos sociais do “progresso” capitalista propagavam todos os tipos de doenças, como o Tifo - doença endêmica tão contagiosa que chegou a gerar estranhamento em Engels por não se propagar mais naquele ambiente tão insalubre que a classe trabalhadora era submetida.

Dada a alta taxa de contaminação do vírus, a orientação foi o isolamento social e assim, para alguns, o espaço de trabalho se tornou parte do privado. As mulheres, que são responsáveis por 75% do trabalho de cuidado não remunerado realizado no mundo, segundo um relatório da organização não governamental Oxfam (2020), se viram mais sobrecarregadas. Já do total de trabalhadores da saúde e serviços sociais no mundo que estão na linha de frente no combate a covid-19, 70% são mulheres e recebem, em média, 11% a menos que os homens, trabalhando em ocupações e jornadas semelhantes, de acordo com a ONU Mulheres. No Brasil, 75% desse setor são mulheres que recebem, em média, 35% a menos e têm maior presença nas funções de nível técnico e auxiliar. Os salários mais baixos e responsabilidade com as tarefas da casa e dos cuidados da família já apareciam nos relatos descritos por Engels.

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Cena II: A vida

Espaços restritos, de três ou quatros cômodos e por vezes sem janelas ou com ventilação precária, onde seres humanos se amontoavam para viver. Essas habitações insalubres ficavam em bairros, geralmente, que não tinham calçamento; as ruas eram sujas e não havia esgoto. Soma-se a esse cenário de miséria uma alimentação ruim e roupas em farrapos. Com esta palavras, Engels descrevia as condições de moradia do proletariado inglês na primeira metade do século 19.

Segundo dados de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 21,6% (45,2 milhões) da população brasileira reside em domicílios com pelo menos alguma inadequação domiciliar: ausência de banheiro de uso exclusivo, paredes construídas com material não durável, adensamento excessivo, ônus excessivo com aluguel e/ou ausência de documento que comprove a propriedade. Se considerarmos a população com rendimento domiciliar per capita inferior a US$ 5,50 dólares por dia (PPC - critério para linha da pobreza monetária para países de renda média alta, como o Brasil, segundo o Banco Mundial), esse percentual sobe para 43,2%.

Destes 45,2 milhões de brasileiros e brasileiras, 13,5 milhões são de raça/cor branca e 31,3 milhões preta ou parda. As inadequações domiciliares registraram proporções maiores para as cinco inadequações nos arranjos formados por mulheres sem cônjuge e com filho de até 14 anos, em comparação com os outros três tipos (unipessoal, casal sem filho, casal com filho/s).

O acesso aos serviços de saneamento básico (abastecimento de água por rede geral, esgotamento sanitário por rede coletora e coleta domiciliar direta ou indireta de lixo) também se revela fortemente relacionado à pobreza. No conjunto da população, 90,6% residia, em 2019, em domicílios com coleta direta ou indireta de lixo, 84,7% em domicílios com abastecimento de água pela rede geral e 65,8% em domicílios com esgotamento pela rede coletora ou pluvial.

No recorte de pessoas com rendimento domiciliar per capita inferior a US$ 5,50 dólares PPC por dia, os resultados caem para 78,9% em domicílios com coleta de lixo, 73,5% com abastecimento pela rede geral e 44,8% com esgotamento por rede coletora ou pluvial. A combinação entre ausência dos serviços públicos de saneamento e a situação de pobreza monetária pode significar maior vulnerabilidade, na medida em que a adoção de soluções individuais (poços artesianos, aquisição de água mineral e fossas sépticas) costuma envolver dispêndio financeiro.

A população negra tem maior presença nas periferias, marca do racismo estrutural, tendo condições socioeconômicas e de saúde mais precárias, o que leva eles junto a mulheres e pobres a serem os mais afetados pela covid-19, ainda segundo o IBGE. Para além da doença, o genocídio da população negra pelo Estado brasileiro não arrefeceu, assim como a violência contra as mulheres que muitas vezes se veem confinadas junto a seu agressor.

Cena III: A fome

“É fácil compreender que tanto a qualidade como a quantidade da alimentação dependem do salário e que, entre os operários mais mal pagos, em especial entre aqueles que têm uma família numerosa, a fome impera, mesmo em períodos nos quais há empregos”; a realidade documentada na pesquisa de Engels em meados de 1800 é capturada nos números mais recentes sobre segurança alimentar em solo nacional.


Fonte: IBGE, Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018 / Reprodução

Nos domicílios em condição de segurança alimentar, 72,5% tinham até três moradores; esse percentual cai para 61,2% para os domicílios em insegurança alimentar grave. A distância entre estas duas condições extremas é de 11,3 pontos percentuais. Cabe lembrar que esses dados apresentados aqui trazem um retrato do acesso a alimentos, e não sobre o aspecto qualitativo desses alimentos, como variedade, nível de processamento, quantidade de venenos usados na produção etc.

Além da fome, um número crescente de pessoas teve que reduzir a quantidade e a qualidade da comida que consome. Dois bilhões de pessoas, ou 25,9% da população global, passou fome ou não tinha acesso a alimentos nutritivos e suficientes em 2019. Como esperado, o custo da dieta aumenta conforme a qualidade cresce. Engels observou que quanto maior era a restrição, menor era o consumo de carne.

Já a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018/IBGE mostrou que o aumento da insegurança alimentar refletiu diretamente na aquisição de três grupos de alimentos específicos: os cereais e leguminosas; as farinhas, féculas e massas; e os pescados. Lembrando que os maiores percentuais de insegurança alimentar grave foram encontrados na região Norte, onde o consumo de pescados usualmente é maior que em outras regiões do país, provavelmente devido às questões geográficas, culturais e econômicas.

A fome que assola o mundo não é de hoje. Segundo os relatórios da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO)/ONU das edições de 2017 e 2018, os conflitos e variações climáticas minavam os esforços para acabar com a fome. Já em 2019, o relatório mostrou as desacelerações econômicas como inimigas. Agora, em 2020, a pandemia de covid-19, bem como surtos sem precedentes de gafanhotos do deserto na África Oriental, reduzem as perspectivas econômicas de uma forma que ninguém poderia ter previsto.

A estimativa mais recente (2019) mostra que antes da pandemia do coronavírus, quase 690 milhões de pessoas passavam fome, o equivalente a 8,9% da população mundial. Já o número de pessoas afetadas por grave insegurança alimentar, que é outra medida que se aproxima da fome, mostra que cerca de 750 milhões – ou quase uma em cada dez pessoas – eram expostos a níveis severos de insegurança alimentar no mundo. Apesar dos avanços na China, desde 2014 o número de famintos em todo o mundo tem aumentado lentamente. No Brasil, não é diferente. Ao olharmos a distribuição dos moradores em domicílios, segundo a situação alimentar, nota-se uma inversão preocupante da trajetória.

Uma avaliação preliminar da FAO sugere que a pandemia pode adicionar entre 83 e 132 milhões de pessoas no número total de desnutridos no mundo em 2020, dependendo do cenário econômico.

Cena IV: A labuta

O grande relógio marca precisamente 18h45, e aqui não estou falando do Big Ben, mas daquele relógio que fica no topo do icônico Conjunto Nacional na turística Avenida Paulista, em São Paulo, onde centenas de trabalhadores esperam o horário da fome próximo a restaurantes, shoppings centers e das famosas padarias paulistas. O curioso dos dias atuais é que estas pessoas não vão jantar e nem são contratados destes estabelecimentos; elas recebem por entregas.

As longas jornadas, os baixos salários, a falta de regulação, uma reserva de desempregados e as condições precárias de trabalho comprimem o tempo e aproximam os operários têxteis da Inglaterra de 1845 aos entregadores de aplicativos de 2020.

Mas aqui queria resgatar um paralelo específico entre esses tempos verossimilhantes: na Inglaterra, durante a primeira revolução industrial, a lei do aprendiz “proibia o trabalho noturno das crianças e limitava sua jornada de trabalho a doze horas; como não previa nenhum sistema de controle, foi amplamente desrespeitada pelos industriais” (ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 187).

Brasil, quarta revolução industrial: a pesquisa da Aliança Bike escancara uma realidade recorrente nos serviços de entrega por aplicativo: a utilização de mão de obra de menores de 18 anos. Os aplicativos solicitam documentos com foto para cadastrar os entregadores, mas as fraudes são comuns e a fiscalização deficiente. A legislação brasileira até permite o trabalho de jovens desde que as atividades exercidas não sejam perigosas ou insalubres. Um dos pontos vetados para esta faixa etária são os serviços externos que impliquem em risco a sua segurança como a função de office boy.

Cena V: A mudança

Temos uma doença incurável: esperança. Esperança na libertação e independência. Esperança em uma vida normal, na qual não somos heróis nem vítimas.”

Em um ano que nos desafiou de uma forma nunca imaginada, busco no passado referências e algum consolo e inspiração na arte; recolho os cacos e assim pinto um quadro em minha cabeça. Vejo “pequenas” solidariedades que rasgam a história, que juntas formam uma colcha de retalhos; soltas até tinham sua beleza, mas pareciam perdidas. E assim, sujeitos coletivos, indagadores incansáveis das realidades, tramamos um mundo melhor e ousamos vivê-lo em paralelo. Brecht já dizia que “as novas eras não começam de uma vez”, afinal o presente guarda o embrião do futuro.

O ano de 2020 foi marcado por outras ondas para além da onda de contaminação da covid-19, como a maré verde que tomou as ruas da Argentina e transbordou pelas redes a toda América Latina, desaguando na aprovação da lei de descriminalização do aborto pela Câmara dos Deputados daquele país; ou o movimento Vidas Negras Importam, que reacendeu com protestos nos Estados Unidos após o assassinato de Floyd e ganhou o mundo; ou os protestos chilenos que culminaram no plebiscito sobre a nova Constituição.

No Brasil, tivemos o #BrequeDosApps, uma mobilização nacional contra a exploração do capital; a votação expressiva de Guilherme Boulos e Luiza Erundina na eleição municipal de São Paulo, apontando que boa parte da cidade quer mudanças; além da campanha de solidariedade do Periferia Viva que se espalhou por todo país.

Assistimos também Evo Morales cruzar a fronteira e retornar ao seu país, após vitória do MAS na Bolívia; o povo venezuelano reafirmar nas urnas sua resistência ao projeto Imperialista; Cuba enviar médicos em ações de solidariedade; a maior greve do mundo na Índia; a derrota do Trump e do discurso intolerante e a China dando exemplo de como sair da maior crise dos últimos tempos.

Certamente, o imaginário constrói novos mundos, mas é a prática que tece realidades. Se não fosse isso, a existência seria insuportável. Seguimos tendo sonhos de nação e cultivando o futuro.

*Cristiane Ganaka, pesquisadora e analista de dados, é economista e bacharel em ciências e fez parte do movimento estudantil durante a graduação e foi voluntária no Observatório Econômico do ABC. 

**André Cardoso, coordenador do escritório Brasil, é um militante e economista, mestre em Economia e Desenvolvimento e doutorando em Economia Política Mundial.

Edição: Camila Maciel