Se 2019 ficou cravado no calendário brasileiro como o ano que assinalou a mudança de governo e potencializou a ressaca eleitoral daqueles que ainda assimilavam os resultados do pleito anterior, o ano de 2020 encerra suas páginas como um período em que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) escancarou seu projeto de governo.
Entre o início e o final do ano, marcado especialmente pelo desenvolvimento da pandemia, o capitão reformado tripudiou sobre o novo coronavírus, esnobou repetidamente a ciência e os cientistas, tentou emplacar medicamentos considerados inseguros para determinados protocolos e pisou na saúde pública, chegando a propor, por exemplo, a colocação dos postos de atenção básica no balcão de negócios das privatizações.
Além disso, carimbou seu repertório de declarações polêmicas com manifestações que amenizavam o potencial do vírus – em uma delas, chamou a covid-19 de “gripezinha”– e ignorou o número de mortos, fazendo troça dos repórteres que o perguntaram insistentemente qual sua reação diante da montanha de cadáveres que se avolumava ao longo do ano. “Não sou coveiro, tá?”, provocou, por exemplo, em abril, no que foi sucedido por uma chuva de críticas.
“A gente tem visto mundo afora vários outros governantes obscurantistas, mas nenhum deles – nem o [Donald] Trump nem os da Hungria, por exemplo – manteve essa radicalidade na negação da gravidade e na sabotagem das medidas de saúde pública como o Bolsonaro”, sublinha o professor Luis Felipe Miguel, do Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Brasília (UnB), ao olhar pelo retrovisor de 2020.
No ápice de suas investidas, o presidente também criou um curto-circuito político na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em busca de minar a credibilidade do órgão, e pôs em xeque a segurança das vacinas – as mesmas que desde o século 18 impulsionaram o desenvolvimento da ciência e reduziram as aflições da humanidade, ajudando a barrar o avanço de alguns males e erradicar outros.
“2020 começou como um ano comum, o segundo do mandato. Ele [Bolsonaro] esperava, assim como todos nós, um ano diferente, mas a pandemia veio pra nos jogar num abismo de incerteza. E, nesse navio da pandemia, quando o mundo todo estava à deriva, nós tivemos, no Brasil, um capitão à frente do comando que nadou contra a correnteza”, crava o analista político Leonel Cupertino.
Internacional
Em junho, Bolsonaro já se destacava na última posição do ranking mundial de avaliação dos governos na administração da pandemia. No Índice de Percepção da Democracia, somente 34% dos brasileiros consideraram boa sua condução, enquanto a média de avaliação positiva dos demais gestores foi de 70%, considerando um rol de 53 países.
A má fama do presidente brasileiro percorreu o mundo, estampando manchetes de jornais e virando alvo de obras de arte em praça pública. Em Paris, a tragédia que se passa deste lado de cá do Atlântico ganhou uma escultura do artista plástico Márcio Machado. No mês de setembro, ele expôs uma ossada em forma de trono presidencial para lembrar os, até então, mais de 121 mil mortos pela covid-19 em solo brasileiro.
Dias depois, ao discursar na assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU), Bolsonaro tentou livrar o governo de qualquer responsabilidade pelos contornos da pandemia, maquiou o valor do auxílio emergencial e ainda culpou indígenas, imprensa e organizações civis pelas queimadas na Amazônia.
Rota econômica e legislativa
E não ficou de fora, no itinerário do presidente, a continuidade de uma rígida agenda fiscal, flexibilizada apenas em parte por conta da pandemia e de articulações conduzidas pelo Congresso para garantir verbas à saúde. Bolsonaro também deixou os trabalhadores brasileiros à míngua, intensificando a precarização no mercado e aprofundando a desproteção das massas diante das crises sanitária e socioeconômica. Autorização para redução salarial e suspensão de contratos ajudaram a compor o roteiro.
Ao final do ano, o mandatário traz agora nas costas um saldo de 14 milhões de desempregados, com uma taxa de desocupação de 14,2% no país – o maior percentual da série histórica medida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde maio para avaliar os estragos da pandemia.
Em meio ao avanço do caos, impulsionado pelo coronavírus, Bolsonaro entrou na mira de 54 pedidos de impeachment apresentados à Câmara dos Deputados, segundo levantamento da Agência Pública. Se somados aditamentos, pedidos negados e também os retirados pelos autores, o número chega a 58. Ao todo, foram 1.459 indivíduos e entidades que assinaram os protocolos. Apesar da quantidade, nenhum deles andou. O gatilho depende do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que manteve os pleitos na gaveta.
“A agenda econômica é o que segura, porque é uma agenda das elites contra os trabalhadores, e o centrão dá apoio", resumiu o cientista político Francisco Fonseca, da Fundação Getúlio Vargas, em entrevista recente ao Brasil de Fato.
“Bolsonaro foi capaz de mostrar, ao longo de 2020, que ele ainda é necessário para o conjunto da direita e as classes dominantes do Brasil. Maia se apresenta como crítico dos absurdos do governo, mas isso também é parte de um teatro”, assinala Luis Felipe Miguel, ao falar em “cumplicidade”.
O professor avalia que o presidente esteve “mais solto” este ano e, portanto, menos dependente do capital político dos ministros que escolheu, como é o caso de Paulo Guedes e Sérgio Moro – este último desembarcou do bonde em abril, diante de um maior desgaste midiático.
Em meio às negociações com o bloco para firmar uma base oficial no Congresso, Bolsonaro também liberou emendas e negociou cargos em focos de poder como Banco do Nordeste e Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Já conhecida, a barganha se deu em troca de apoio político. A rota contrasta com o discurso de quando era candidato a presidente, em 2018, e repudiava o centrão ao falar em “velha política”.
“Maia disse recentemente que Bolsonaro talvez esteja enfraquecido. Tendo a concordar com ele. O presidente vem perdendo parte do que o elegeu, como é o caso do combate à corrupção. O que ainda o mantém um pouco é a pauta dos costumes, mas ela avançou muito pouco na Câmara nos últimos dois anos e tem sido mais presente em declarações no Twitter, manifestações dos filhos, no discurso das armas, etc”, pontua Leonel Cupertino.
Bolsonaro evitou ainda, o máximo que pôde, o auxílio emergencial, aprovado após insistentes articulações da oposição, e deixou sem resposta uma penca de segmentos que não chegaram a ser contemplados com o socorro, como é o caso dos agricultores familiares.
Ainda assim, conseguiu puxar para si os méritos da liberação do benefício: uma pesquisa da plataforma Exame/IDEIA apontou, em setembro, que 65% dos brasileiros entrevistados creditavam o feito à figura presidencial, para o desgosto dos opositores.
Cruzada
Bolsonaro também seguiu focado em sua cruzada contra a imprensa. Somente de janeiro a setembro, por exemplo, o presidente disparou 299 ataques ao jornalismo, segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). O número é mais que o dobro dos 116 registrados pela entidade em todo o ano passado. Na linha de descreditar o trabalho dos profissionais do ramo, o chefe do Executivo proferiu ainda um total de 68 declarações falsas ou distorcidas sobre dados divulgados pela imprensa, de acordo com estatísticas da plataforma Aos Fatos.
Em um nível político institucional, colecionou outras controvérsias em seu percurso pelo ano de 2020 e potencializou a habilidade em angariar rixas em diferentes ambientes: desgastou a relação com a China diante da pandemia e alimentou faíscas com governadores ao tentar culpá-los pelo baixo desempenho econômico do país, associando-o exclusivamente ao fechamento do comércio na quarentena, e ainda fez corpo mole diante do coro por mais celeridade na vacinação contra a covid.
O presidente também buscou intervir na Polícia Federal para proteger os filhos das investigações que os cercam; gerou desconfortos com o Supremo Tribunal Federal (STF); mediu forças publicamente com seus próprios ministros do governo, desautorizando-os em momentos-chave da crise gerada pela pandemia. No ápice desse movimento, chegou a demitir, em abril, Henrique Mandetta da pasta da Saúde. Os dois protagonizaram uma midiática queda de braço por conta de divergências relacionadas às orientações sanitárias. Enquanto o então ministro pedia aos brasileiros resguardo e respeito à cartilha de cuidados recomendada pelos infectologistas, Bolsonaro zombava do isolamento social e contrariava propositalmente as regras, inclusive por meio de participações próprias em aglomerações de ruas com apoiadores.
O ex-pesselista conseguiu ainda deslocar a percepção da população para outras narrativas, de modo a concluir este segundo ano de mandato com índice de 37% de aprovação por parte dos brasileiros – computada pelo Datafolha, a medição demonstra certa estabilidade nesse público.
Bolsonaro não conseguiu, apesar disso, transferir sua popularidade para os 63 nomes que resolveu apoiar direta e publicamente no pleito municipal deste ano. Como cabo eleitoral, contabilizou apenas a eleição de 11 vereadores e cinco prefeitos, sendo quatro deles em cidades do interior. Para o professor Francisco Fonseca, da Fundação Getúlio Vargas, o resultado aponta para certa redução da capacidade de influência do capitão reformado.
“Acho que o Bolsonaro termina este segundo ano de mandato muito menor do que começou. Ele caminha para ser rigorosamente isolado e virar um político do tamanho que ele é – pequeno, com pouca relevância, pouca influência, que só se elegeu por uma grande fraude eleitoral”.
Edição: Geisa Marques