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"Sensação de missão cumprida", diz feminista argentina sobre legalização do aborto

Aprovação do PL que legaliza o aborto no país ecoou em todo o continente latino-americano, saiba mais sobre o projeto

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
"Fizemos da luta por uma modificação [na lei], por uma reparação histórica, uma verdadeira revolução cultural", afirma Laura Salomé - RONALDO SCHEMIDT / AFP

A Argentina se tornou, na madrugada desta quarta-feira (30), um dos país latino-americanos onde o aborto é legalizado, ao lado de Cuba, Uruguai e Guiana. 

A aprovação do Projeto de Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE, na sigla em espanhol) foi ecoada pelo movimento feminista em todo o mundo, especialmente na América Latina, onde a massiva mobilização empreendida pelas militantes da Argentina é acompanhada, há anos, com admiração e esperança.

A legalização do aborto na Argentina foi comemorada por diversas organizações feministas no Brasil.  Em um vídeo divulgado nesta tarde, a Marcha Mundial das Mulheres comemorou a aprovação da lei no país vizinho.

"O feminismo é internacionalista, o feminismo é de todas as mulheres que lutam por justiça e autonomia, e legalizar o aborto na Argentina significa um passo à frente rumo a uma vida de direitos e de igualdade", afirmou Maria Fernanda Marcelino, militante do movimento.

"Nós, brasileiras, sabemos que temos um longo caminho, mas que a esperança e a experiência argentina nos traz luz para uma América Latina livre, feminista, com igualdade", conclui.

"O aborto também é uma emergência social", reivindicam feministas na América Latina

Jornais globais da mídia hegemônica estamparam a notícia em primeira página, destacando o "feito histórico" do país sul-americano. O diário estadunidense The New York Times, por exemplo, descreveu a aprovação da lei como um “marco na região conservadora” e afirmou que “a votação no Senado foi uma grande vitória para o crescente movimento feminista da América Latina".

Já a emissora britânica BBC deu a notícia da legalização do aborto após uma "maratona de debates" e considerou que a iniciativa pôde se converter em lei graças a três fatores "o apoio do presidente, a influência da maré verde e a mudança de voto de legisladores".

Mobilização popular

O Brasil de Fato conversou com a jornalista Laura Salomé, editora do portal Marcha Notícias e integrante da Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito para entender o significado da aprovação do projeto de lei.

Segundo a militante, a legalização do aborto significa uma "missão cumprida". Ela recupera a importância da mobilização feminista para a decisão desta madrugada.

"A campanha foi formada com este objetivo, para que [o aborto legal] fosse lei, para modificar o Código Penal e também para exigir que o Estado esteja presente e seja responsável pelo acesso igualitário à saúde, que é basicamente o que reivindicamos ao exigir a legalização do aborto", resume.

Em sua análise, Salomé considera que a vitória se estende para além da aprovação do PL apresentado por Alberto Fernández, e diz respeito ao reconhecimento do feminismo e da mobilização popular.

"Significa uma tarefa cumprida não só porque as mulheres e pessoas com capacidade de gestar têm hoje, efetivamente, mais direitos em nosso país, mas significa também que as vozes feministas têm que ser escutadas pela política tradicional (...). Têm muitos significados, por ter proposto uma resolução a uma problemática social como é o aborto clandestino, inseguro, e por sermos escutadas".

Me parece que isso legitima a voz feminista, as vozes feministas, organizadas e populares

Neste sentido, reforçando o caráter coletivo e histórico da luta pelo aborto na Argentina, Salomé pondera que as lições desta jornada pela legalização do aborto ainda serão avaliadas em conjunto pelas organizações que integram a campanha, surgida dos encontros feministas plurinacionais, realizados anualmente no território argentino.

Mas ela adianta que um dos aprendizados da Campanha pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito, que completou 15 anos em 2020, foi a criação de um consenso dentro do feminismo, em uma luta intergeracional.

"Por ter colocado a política com todas as gerações discutindo, de forma transversal, e entendida como uma bandeira que deve ser tomada por todos e cada um dos espaços políticos e, sobretudo, tomando o aborto também como algo cultural", elenca.

Fizemos da luta por uma modificação [na lei], por uma reparação histórica, uma verdadeira revolução cultural


Laura Salomé reforça a importância da luta intergeracional e dos consensos dentro do movimento feminista para a mobilização popular / Divulgação

"Abortamos a neutralidade"

Salomé, que esteve à frente da mobilização feminista dos últimos anos e também da cobertura realizada pelos meios populares argentinos, considera que a cobertura jornalística dos meios de comunicação alternativos cumpriram um papel fundamental "por ter abortado a falsa neutralidade", em suas palavras, ao abordarem o tema como "uma questão de saúde publica, justiça social e direitos humanos".

A jornalista considera que essa abordagem evidenciou o aborto como uma causa popular, "falando de direitos quando falamos do direito ao aborto".

"Por isso [a importância] da construção de meios populares e feministas que não realizem contrapontos, que não coloquem as vozes feministas em confronto com setores antidireitos, que são setores fascistas, e que possam esclarecer todas as dúvidas e visibilizar todos os argumentos que temos", defende.

O que estabelece a Lei de Aborto Legal

O Projeto de Lei pela Interrupção Voluntária da Gravidez aprovado nesta quarta (29) estabelece o direito ao aborto legal até a 14ª semana de gestação, "em cumprimento dos compromissos assumidos pelo Estado argentino em matéria de saúde pública e direitos humanos das mulheres e pessoas com outras identidades de gênero", como afirma o artigo 1º do texto.

A lei que será sancionada por Alberto Fernández ainda em 2020 estabelece que o procedimento de interrupção da gravidez deve ser realizado gratuitamente no sistema de saúde, com acompanhamento médico posterior, em até 10 dias corridos após o requerimento.

No caso de menores de 13 anos, deverá ser apresentado um documento de consentimento informado, com a presença de pelo menos um dos representantes legais da menor.

O texto estabelece que profissionais de saúde têm direito a exercer objeção de consciência. Isto é, os profissionais da área podem recusar a realização do procedimento por motivos morais ou religiosos. No entanto, terão a obrigação de encaminhar o caso para que seja tratado por outros profissionais sem demora.

A objeção de consciência não será válida para o atendimento médico pós-aborto e, caso o profissional recuse atendimento, poderá sofrer sanções administrativas, penais e civis.

Saiba mais: O que diz o PL para legalização do aborto apresentado pelo presidente argentino?

A lei inclui ainda a implementação da educação sexual integral, exigindo que o Estado argentino estabeleça políticas ativas para promoção e fortalecimento da saúde sexual e reprodutiva.

Por último, modifica o artigo 85 do Código Penal, que estabelecia a prisão de mulheres que recorressem à prática de interrupção da gravidez.  O novo artigo define que “não é crime o aborto realizado com o consentimento da pessoa gestante até a semana 14 do processo de gestação”.

Estima-se que, desde o retorno da democracia ao país, ao final de 1983, mais de 3 mil mulheres morreram por complicações em abortos clandestinos e inseguros. As cifras apresentadas pela Campanha Nacional pelo Aborto Legal indicam ainda que, entre 460 e 600 mil mulheres têm recorrido ao aborto clandestino por ano na Argentina.

Edição: Leandro Melito