Wellington Carlos de Souza Barbosa, de 17 anos, acaba de concluir o 3º ano do ensino médio no Colégio Estadual São João, em Pato Branco (PR). Ele sonha em ser engenheiro civil, mas não se inscreveu no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) por conta das dificuldades de estudar em 2020.
“Esse ano foi praticamente perdido”, lamenta. “Quando a gente foi se aprofundar mais no conteúdo do 3º ano, começou a pandemia de coronavírus. Por mais que no colégio eu seja bom, em casa não consigo estudar muito, porque meu irmão é cadeirante e minha mãe tem criança pequena. Preciso brincar com eles, cuidar, e não dá tempo. Não quero fazer [o Enem] por fazer. Quero ir lá e passar”.
Cerca de 5,7 milhões de brasileiros devem realizar as provas nos dias 17 e 24 de janeiro. O número de inscritos supera o da edição anterior, mas é 33% menor que o registrado em 2016, por exemplo.
“Para muitos jovens, o ensino superior não faz parte do seu horizonte como há cinco, seis, dez anos atrás. E vários deles adiam esse sonho em função da conjuntura e instabilidade econômica e social”, analisa a pedagoga Maria Raquel Caetano, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A pesquisadora cita o cansaço, o desestímulo e a necessidade de trabalhar para ajudar a família como agravantes a esse cenário.
Wellington não pensa em desistir, mas o cotidiano é desafiador. Além de cuidar dos irmãos, ele tem que conciliar estudo e trabalho.
Dispensado da função de menor aprendiz que exercia no Banco do Brasil no início da pandemia, o estudante paranaense passou a ajudar o pai na construção civil, das 7h às 17h.
Mesmo quando as aulas eram presenciais, Wellington já estudava à noite, das 19h15 às 23h20. O aprendizado, segundo ele, era maior do que no ensino a distância.
“A suspensão das aulas evidenciou a situação de exclusão e desigualdade que vivem boa parte dos estudantes brasileiros e, também, muitos professores”, observa a pedagoga. “O distanciamento social dos colegas é outro fator que abala os estudantes, pois a convivência grupal é uma característica importante dos jovens.”
Wellington concorda com essa análise: “Por mais que a gente esteja participando por aulas on-line, por atividades impressas, não é a mesma coisa. Com a convivência, vendo o professor explicando, a gente memoriza melhor o conteúdo.”
Solidariedade
O Colégio Estadual São João fica em um bairro com o mesmo nome, na periferia de Pato Branco. Centenas de vagas de emprego foram fechadas no município em 2020, e a demanda por doações aumentou.
Wellington foi voluntário na distribuição de leite e cestas básicas e se colocou à disposição da direção do colégio para estudar o aplicativo Google Meet, que seria usado para transmissão das aulas on-line.
“Passei dois dias estudando o aplicativo, e aí marcamos um horário para eu ensinar quem não entendia ou não conseguia instalar”, relata. “Também abri a casa para quem não tinha internet e ajudei umas 10 pessoas do 1º e do 2º ano, que estavam interessadas, mas não tinham internet boa nem conseguiam resolver as atividades impressas que os professores deixavam.”
“Cheguei a ficar até duas, três horas da manhã na casa de um amigo. No outro dia, para trabalhar, foi sofrido”, lembra o estudante.
Wellington reconhece o esforço dos professores na pandemia, mas tenta negociar com a direção da escola a possibilidade de “refazer” o 3º ano para ter condições de obter uma boa nota no Enem 2021.
“Se eu não puder refazer o 3º ano, vou falar com a diretora para passar alguns dias da semana no colégio, estudando, relembrando, para só então poder fazer o Enem”, reafirma.
Desigualdade
Embora Wellington Carlos de Souza Barbosa seja um aluno acima da média no Colégio Estadual São João, sua rotina é comum a milhões de estudantes brasileiros.
“Muitos jovens e seus familiares perderam o emprego, outros tiveram que trabalhar fazendo bicos para sustentar a família na pandemia”, ressalta Maria Raquel Caetano, lembrando que o ambiente doméstico nem sempre é adequado e que outras prioridades se impõem em períodos de crise.
“Muitos estão preocupados em sobreviver, ou seja, os pontos de partida não são iguais para todos”, completa.
Para Wellington, o tempo e as condições de infraestrutura estão entre os principais fatores de desigualdade entre estudantes de colégios públicos e particulares.
“A diferença não é o conteúdo, mas a exigência, que no colégio particular é maior. E a condição deles de ter roupa boa, internet boa, tempo de fazer as atividades em casa, porque não precisam trabalhar. Além do tempo que eles não perdem procurando um lugar com internet”, exemplifica. “Mas dinheiro não traz inteligência, e essa diferença só tem que nos motivar mais para estudar e passar”.
O estudante de Pato Branco diz que conhece várias pessoas que abandonaram os estudos assim que passaram a ter renda suficiente para pagar as contas.
“Tem gente que encontra um serviço fichado, que paga R$ 2 mil por mês, e acha que está ganhando dinheiro”, conta. “É claro que é um salário digno, mas acho que é possível ganhar mais depois de fazer um curso [superior]. No meu caso, estou trabalhando com meu pai, mas queria estar em outro lugar.”
Negligência
Para a pedagoga Maria Raquel Caetano, o Ministério da Educação (MEC) não deveria realizar a prova nos dias 17 e 24. Ela lembra que, em consulta aos estudantes sobre o primeiro adiamento, a opção mais votada foi aplicar as provas em maio, não em janeiro.
“O MEC deveria reconhecer a pandemia da covid-19 e o caos social que se instalou no país e assumir-se como coordenador a articulador entre os entes federativos, criando políticas de redução de danos”, analisa. “Dialogar com as instituições de pesquisa, escolas de ensino médio, jovens estudantes, para ouvi-los sobre esse tema.”
O adiamento também é defendido por organizações como a União Nacional dos Estudantes (UNE), a União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes) e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Cerca de 96 mil estudantes, farão a prova do Enem em casa – exceção aberta pelo MEC em decorrência da pandemia. Na avaliação de Caetano, não há protocolos sanitários seguros para realização da prova presencial para os demais, que representam mais de 99,8% dos candidatos.
“Nesse contexto, a função social do Enem e seu aspecto inclusivo e democratizante para o acesso ao ensino superior como objetivo podem não ser atingidos”, alerta.
A pedagoga acrescenta que as dificuldades dos estudantes não terminam após o Enem ou o vestibular. “Outro desafio é a permanência na universidade: o transporte, a alimentação, os materiais que o estudante necessita para estudar. E há ainda o fator tempo, especialmente para o estudante-trabalhador”, observa Caetano.
“Existe aquela máxima: estamos na mesma tempestade, mas em barcos diferentes. Estes aspectos têm demonstrado o quanto nosso país e o nosso sistema educacional é desigual”, finaliza.
Edição: Leandro Melito