BdF Entrevista

"Política é a arte de desagradar, é sobre antagonismo", diz Sabrina Fernandes

No primeiro BdF Entrevista do ano, youtuber fala sobre progressismo, Venezuela e o que esperar de 2021

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No BDF Entrevista, Sabrina Fernandes fala sobre seu canal, o progressismo e o que esperar de 2021 - Reprodução
Não vai ser uma pessoa a corporificação da práxis, dessa unidade. Vai ser o trabalho coletivo

“Não vai ser uma pessoa a corporificação da práxis, dessa perfeita unidade. Vai ser o trabalho coletivo”. É assim que a socióloga, professora e youtuber, Sabrina Fernandes, tenta mobilizar a esquerda brasileira a voltar a ter o “pé no barro”, como ela mesmo define o trabalho de base que pode ser o grande diferencial nas próximas eleições presidenciais, sem personalismos. 

Desde 2017, Fernandes se tornou uma referência nas redes sociais por difundir ideias marxistas de forma prática e didática. Seu canal no Youtube tem cerca de 350 mil inscritos, com vídeos toda semana que abordam questões como ecossocialismo, veganismo, marxismo, salário mínimo, fascismo, entre outros. 

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Antes chamado À Esquerda, seis meses depois da estreia nas plataformas, o canal passou a se chamar Tese Onze, em referência à 11ª tese de Karl Marx ao analisar o filósofo alemão Ludwig Feuerbach: “os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras, porém, o que importa é transformá-lo”, para segundo Fernandes “ampliar o debate”.

“Percebi uma necessidade de ampliar tanto o debate quanto a audiência, para atrair pessoas que não se identificariam diretamente como esquerda, mas que gostariam de saber dos debates e quem sabe, mudar de ideia”.

Mas, afirma a escritora, a responsabilidade de se comunicar com tanta gente, em um momento tão crucial da história para quem busca formação política, exige tempo e estudo, para além das críticas e disputas que o debate traz.

"Política é a arte de desagradar, é sobre antagonismo. Mas nem sempre dá pra tomar lado de imediato, porque às vezes você precisa coletar informações para não falar bobeira. A demanda é muito alta. Todos os dias tem pessoas mandando mensagens: “o que está acontecendo em tal lugar?”. Calma, eu preciso estudar, não posso falar bobeira porque a responsabilidade aumenta com os números, aumenta o fardo, aumenta o cansaço”, comenta.

Nesta edição do programa BDF Entrevista, o primeiro de 2021, Sabrina Fernandes também fala sobre a Venezuela, onde foi recentemente à convite do governo venezuelano como observadora internacional das eleições da Assembleia Nacional Legislativa e sobre o que espera deste ano.

“2021 é um ano que prepara muita coisa que já é demanda para 2022. Qual vai ser a chapa que vai ser necessária para derrotar Bolsonaro. E eu sempre penso que a gente está fazendo essa pergunta ao contrário: 'qual vai ser o grande nome para derrotar o Bolsonaro'. Não, qual vai ser o programa para derrotar o Bolsonaro.”

Confira alguns trechos: 

Brasil de Fato: Teu canal tem feito cada vez mais sucesso, se firmando como um importante espaço de formação política. Onde tudo começou? 

Sabrina Fernandes: O canal foi criado em junho de 2017, na época o nome era À Esquerda, era um nome um pouco mais genérico e foi baseado na ideia de criar um canal para debater assuntos relevantes para a esquerda e os debates internos da esquerda, para lidar com essas divisões, com essa fragmentação, que é algo que eu já estudava há muitos anos.

Com o tempo percebi uma necessidade de ampliar tanto o debate, quanto a audiência, para atrair pessoas que não se identificariam diretamente como esquerda, mas que gostariam de saber dos debates e quem sabe, mudar de ideia e trazer essas pessoas para a esquerda.

O canal precisa cumprir essa função, de levar as pessoas a se organizarem, a se descobrirem de esquerda e fazer o famoso 'pé no barro'.

Seis meses depois ele (canal) passou a se chamar Tese 11, que significa a 11ª tese de Karl Marx, sobre [Ludwig] Feuerbach (filósofo alemão), em que ele fala que os filósofos interpretaram o mundo, a questão porém, é transformá-lo. Então a ideia é de práxis, de juntar teoria e prática, de a gente se equipar, fazer formação política para tentar mudar as coisas.

Hoje o canal tem por volta de 350 mil inscritos, é um canal bem marxista, com cara marxista, e é legal porque nem todo mundo que está ali é marxista. Não sei se a gente teria tantos marxistas engajados no momento – a direita realmente está ganhando de lavada. Mas eu fico muito feliz de ver uma abertura das pessoas a uma interpretação da realidade. 

E agora, você e outros youtubers de esquerda estão chegando em um espaço tradicionalmente controlado pela direita, que são as redes sociais...

A direita está presente nas redes há muito mais tempo, o Olavo [de Carvalho] é um dos pioneiros, tanto colocando seus vídeos, quanto outras pessoas replicando vídeos dele. 

Foi nos últimos quatro, cinco anos, que a gente viu a esquerda começar a ter canais institucionais, a levar o midialivrismo ali para dentro, o jornalismo independente, uma posição crítica no Youtube e os youtubers de esquerda.

Eu não sou a primeira youtuber marxista, já havia outros antes de mim. Eu poderia destacar, por exemplo, o trabalho do Humberto Matos, o “Saia da Matrix”, que estava muito antes de mim, do Jones [Manoel]

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Mas hoje a gente tem mais pessoas chegando. Há uma variedade de canais e há também uma pluralidade. Perspectivas diferentes dentro da esquerda que são apresentadas, há debate interno, inclusive brigas e tretas complicadas. Mas o importante é que estamos ocupando o espaço.

São mais de 300 mil pessoas inscritas no teu canal. É bastante gente progressista. Mas nem todos estão alinhados, de fato, com temas caros à esquerda, ou aos processos revolucionários. Como lidar com isso?

Algo que eu tento enfatizar na caracterização do Tese 11, é que o canal, em si, ele não é minha militância. Eu sou uma pessoa organizada em partido (PSOL), eu tenho uma militância de muitos anos. E o canal precisa cumprir essa função, de levar as pessoas a se organizarem, a se descobrirem de esquerda e fazer o famoso “pé no barro”. É evidente que diante das demandas da sociedade, é muito problema ao mesmo tempo, o planeta tem mais pessoas, têm mais crises, a gente sente um fardo muito alto.

Política é sempre a arte de estar desagradando alguém. A política é sobre antagonismo. 

Então existem aquelas pessoas que são meio a meio: é 50% investimento em teoria; 50% investimento em prática, e estão sempre se conectando. Nem todo mundo vai ter essa oportunidade, porque isso é questão de tempo mesmo. O importante é que isso faça parte de um projeto unificado, ou pelo menos articulado entre si. Por isso entra essa questão da coletividade. Não vai ser uma pessoa que vai ser a corporificação da práxis, dessa perfeita unidade. Vai ser o trabalho coletivo.

Nós precisamos, nesse esforço, que tudo que está sendo debatido, faça sentido também para as organizações políticas. Vamos olhar que no caso dessa esquerda dita “caviar”, existe um distanciamento da parte militante, um distanciamento, às vezes proposital: “não quero mexer com isso, isso parece politicagem", ou até mesmo de perder seguidores. Porque se você se posiciona a favor de um campo específico dentro da esquerda, vão te chamar de partidário. 

Existe sim essa ideia de um progressismo “isentão”, de que certas coisas não se fala, certas coisas não se posiciona. Mas pra mim, política é sempre a arte de estar desagradando alguém. A política é sobre antagonismo. 

É importante dar também as ferramentas para as pessoas fazerem as análises por elas mesmas,

A gente pode desagradar pessoas que quer trazer de volta, que precisa desse passo de confiança, de didática, para garantir que as pessoas não se afastem nesse processo, que elas voltem, que elas estejam abertas para o debate. Mas também tem gente que eu quero antagonizar, os bilionários, os grandes burgueses, eu não vou ter parceria com elas. 

Isso vai diferenciar o tipo de negociação que você está disposta, ou não, a fazer na sua comunicação. Nem sempre dá pra tomar lado de imediato, porque às vezes você precisa coletar informações para não falar bobeira. 

A demanda é muito alta. Todos os dias tem pessoas mandando mensagens: “o que está acontecendo em tal lugar?”. Calma, eu preciso estudar, não posso falar bobeira porque a responsabilidade aumenta com os números, aumenta o fardo, aumenta o cansaço. Mas é importante dar também as ferramentas para as pessoas fazerem as análises por elas mesmas. Para não ficar em uma dependência.

E um desses assuntos que alguns progressistas ainda derrapam é sobre Venezuela. Você esteve por lá como observadora internacional nas eleições da Assembleia Legislativa. O que viu por lá, como foi o pleito? Juan Guaidó e parte da oposição mais à direita do governo Maduro ainda apostam nas mesmas teses, como a fraude.

Falar de Venezuela é quase um tabu, porque isso levanta alguns afetos bem estranhos. Tem pessoas que me acompanham há muitos anos e a partir do momento que falei que Caracas lembra um pouco de São Paulo, as pessoas disseram: “que absurdo, você está romantizando a Venezuela”. Eu tive que responder: “será que você não está romantizando São Paulo?”.

Estar lá, para mim, foi muito importante nesse processo da visualização de que isso aqui é tudo América Latina. E a América Latina, para os Estados Unidos, é tudo quintal. Então nós precisamos ter isso em alerta.

É importante manter o alerta de que o que aconteceu nos Estados Unidos, não podemos achar que é esse panorama que queremos para o Brasil.

As dificuldades que enfrentamos para entrar na Venezuela, nos deram uma prova do efeitos do bloqueio. Lógico que nada comparado ao que o povo venezuelano sofre no cotidiano. E não dá pra gente falar que os problemas internos da Venezuela são todos culpa do bloqueio. Não é tão simples assim.

Mas a gente vê que o bloqueio é algo que impede até quem quer fazer mais pelo povo, de ter as ferramentas para fazer isso. Isso vai estrangulando a economia, o cotidiano das pessoas do país e vai gerando crises. 

Foi muito curioso ver figuras de direita, com muitos seguidores, dizendo que as eleições foram fraude, dizendo que o [Nicolás] Maduro ganhou mais uma vez. Tive que responder que as eleições não eram presidenciais, que eram para a Assembleia Nacional. Então você vê o poder do chavão, ficou muito fácil falar certas coisas. 

Existem divergências internas, dentro do partido, em relação ao Maduro, dentro do Polo Patriótico, as discussões sobre que rumo a esquerda chavista deve tomar e que a esquerda não chavista deve tomar em relação à crise. Mas o que é consenso interno é que o anti-imperialismo tem que ser a posição base em tudo isso. Não dá pra ter a discussão sobre os rumos da esquerda, sem reconhecer o nível de sabotagem dos Estados Unidos na Venezuela.

O ano de 2021 é de muita expectativa sobre o que será do país até as eleições presidenciais de 2022. Quais os caminhos para a esquerda nesse período?

2021 é um ano que prepara muita coisa que já é demanda para 2022. Qual vai ser a chapa que vai ser necessária para derrotar Bolsonaro. E eu sempre penso que a gente está fazendo essa pergunta ao contrário: “qual vai ser o grande nome para derrotar o Bolsonaro”. Não, qual vai ser o programa para derrotar o Bolsonaro. 

Não dá pra abrir mão dessa intersecção racial, de classe, de gênero, de sexualidade.

Seria muito mais valioso do que o que aconteceu nos Estados Unidos, que foi uma derrota de Trump, mas vários elementos fundamentais, que estão na base do trumpismo, estão dentro do governo [Joe] Biden. O militarismo está dentro do governo Biden. É um governo que pode não ser negacionista, no sentido climático, mas colocou dentro do governo gente do lobby das petroleiras, dos combustíveis fósseis. 

É importante manter o alerta de que o que aconteceu nos Estados Unidos, não podemos achar que é esse panorama que queremos para o Brasil, porque isso é exigir muito pouco. 

Nós precisamos ter alguma mudança de verdade e para isso, trazer a questão do programa. O que é o programa anti-austeridade, que é necessário, o que é o combate às formas de discriminação e quais são as consequências diretas disso? 

Algo que ficou muito evidente na pandemia é que você pode até implementar algumas medidas de distanciamento social, mas o genocídio das pessoas negras continua, o feminicídio continua, inclusive nesse caso podemos falar qual foi a situação dos casos de violência doméstica, com as mulheres em casa, com seus parceiros abusadores. 

Esses problemas sociais são contínuos e muito piores para quem é da classe trabalhadora. Não dá pra abrir mão dessa intersecção racial, de classe, de gênero, de sexualidade. A gente precisa trazer esses elementos e não é algo que pode de forma alguma, estar distante de um debate de esquerda. A esquerda não pode achar que classe é algo que acontece no abstrato. As pessoas vão sofrer isso de acordo com as suas posições na sociedade. 

Então, essa proposta anti-Bolsonaro tem que trazer todas essas lutas, não somente pautas, lutas. Tem que ter movimento social no meio, tem que ter articulação no meio, tem que ter compromisso real. Obviamente não vamos encontrar isso nos debates de Luciano Huck, que é de identitarismo liberal, ele é vazio, são falsas representatividades que aparecem muito bonitas na televisão, mas que não são bancadas com políticas concretas para a maioria da população. 

Edição: Marina Duarte de Souza