Em mais uma tentativa de reverter a diminuição gradativa de veículos de tração animal e humana em Belo Horizonte, carroceiros e carroceiras lançaram uma carta diretamente ao prefeito da cidade, Alexandre Kalil. O documento, assinado pela Associação dos Carroceiros e Carroceiras Unidos/as de BH e Região Metropolitana e mais 30 entidades, pede o veto total da lei aprovada pelos vereadores em dezembro de 2020.
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“Primeiro, é um projeto autoritário, pois não ouviu os/as carroceiros/as e não teve participação popular. Sustentado no argumento de que o modo de vida carroceiro é baseado em maus tratos e na escravidão animal, o PL visa substituir os cavalos por motos adaptadas. No entanto, embora haja situações de maus tratos, também repudiadas com veemência pelos próprios carroceiros/as, elas correspondem a minoria dos casos”, escrevem os carroceiros.
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Para eles, o projeto de lei é uma tentativa de criminalizar o modo de vida carroceiro, “resultado de uma postura colonialista, racista, etnocêntrica e higienista que busca impor sobre toda a sociedade uma única forma de se viver as relações entre humanos e animais. Caso semelhante ocorreu recentemente quando se tentou proibir o abate religioso de animais pelos povos tradicionais de matriz africana”.
Em troca, mais parcerias com poder público
A carta reivindica ainda projetos e fiscalizações entre órgãos públicos e a classe carroceira. Como o cadastramento de carroceiros e de animais, a regulamentação da profissão, atendimento veterinário, a melhoria da infraestrutura das Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes e projetos sociais, como alfabetização dos trabalhadores e estímulo ao cooperativismo.
Leia a carta na íntegra:
CARTA ABERTA AO PREFEITO ALEXANDRE KALIL, AOS/AS VEREADORES/AS E PREFEITOS/AS DA REGIÃO METROPLITANA DE BELO HORIZONTE PELOS DIREITOS DA COMUNIDADE TRADICIONAL CARROCEIRA
“A Cidade é Nossa Roça! Nossa Luta é na Carroça!”
No dia 15 de dezembro de 2020, em meio às dores e as mortes da maior pandemia vivida pelo país, a Câmara Municipal de Horizonte (CMBH) aprovou em segundo turno o PL 142/17 que proíbe e criminaliza o modo de vida de 10.000 carroceiros/as de Belo Horizonte e Região Metropolitana. Ao aprovar tal projeto, a CMBH contribui para o aprofundamento da crise socioeconômica vivida pelo país, causando sofrimento e incerteza para a vida de milhares de famílias, ameaçando sua fonte de sustento e seu modo de vida.
Primeiro, é um projeto autoritário, pois não ouviu os/as carroceiros/as e não teve participação popular. Sustentado no argumento de que o modo de vida carroceiro é baseado em maus tratos e na escravidão animal, o PL visa substituir os cavalos por motos adaptadas. No entanto, embora haja situações de maus tratos, também repudiadas com veemência pelos próprios carroceiros/as, elas correspondem a minoria dos casos. Além disso, os carroceiros e carroceiras reconhecem seus animais não como escravos, mas como companheiros de trabalho, membros de suas famílias e comunidades.
Essa tentativa de criminalizar o modo de vida carroceiro é resultado de uma postura colonialista, racista, etnocêntrica e higienista que busca impor sobre toda a sociedade uma única forma de se viver as relações entre humanos e animais. Caso semelhante ocorreu recentemente quando se tentou proibir o abate religioso de animais pelos povos tradicionais de matriz africana.
O texto de justificativa do PL 142/17 refere-se às condições de trabalho dos/as carroceiros/as como sub-humanas. Os carroceiros e carroceiras, no entanto, sentem orgulho de seu modo de vida e do trabalho que realizam junto com seus companheiros animais. O trabalho dos carroceiros é um trabalho digno e deve ser respeitado. Foi a partir dos recursos gerados pelo trabalho com os cavalos e carroças que milhares de famílias, ao longo de gerações, foram capazes de construir suas casas, educar seus filhos e garantir as condições de vida dignas para sua comunidade. Ao criminalizar o modo de vida carroceiro o PL 142/17 contribui para o aumento do desemprego e da desigualdade social. É importante destacar que grande parte dos carroceiros e carroceiras são analfabetos e/ou estão há décadas exercendo esse ofício, tendo chances mínimas de serem reinseridos em outras profissões e menos ainda de serem habilitados para conduzir motos adaptadas.
O PL142/17, ao propor a substituição dos animais por motos adaptadas trata cavalos, mulas e burros como meros objetos, meras ferramentas de trabalho. Os carroceiros, no entanto, possuem outras formas de vínculo com esses animais, baseadas no reconhecimento mútuo, em relações de afeto e memória.
Outra questão central nesse debate é que os carroceiros e carroceiras se autorreconhecem como Comunidade Tradicional, com modo de vida próprio e cujo direito está 2 garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da ONU, da qual o Brasil é signatário. Além disso, o Decreto 6040/2007 e a Lei 21147/2014, que criaram, respectivamente, as Políticas Nacional e Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais, também garantem o direito dos/as carroceiros/as a manter seu modo de vida. Vale lembrar que entre os/as carroceiros/as há também inúmeros ciganos e quilombolas. Assim, qualquer tipo de ação, seja do setor público ou privado que comprometa o modo de vida dos carroceiros e carroceiras caracteriza uma clara violação à Convenção 169 e à legislação citada.
Do ponto de vista ambiental, o PL 142 representa um gravíssimo retrocesso, já que aumentaria ainda mais os impactos no trânsito e na poluição sonora e do ar, com a entrada de milhares de motos adaptadas em substituição aos cavalos. Ressaltamos ainda que não há nenhum estudo que comprove a viabilidade técnica desses veículos motorizados.
Denunciamos também que o PL 142 beneficia interesses empresariais, especialmente de empresas de caçamba e todos aqueles envolvidos na privatização da gestão de resíduos do município. Desde a década de 1990, o município construiu importantes políticas públicas de gestão de resíduos tendo os/as carroceiros/as como parceiros/as centrais, as quais tem sido enfraquecidas e desmontadas nos doze últimos anos. Se sancionado o PL 142, a proibição do trabalho dos/as carroceiros/as causará uma tragédia socioeconômica na capital mineira, pois toda a cidade de BH, fora do perímetro da Av. do Contorno, com exceção dos bairros enriquecidos, precisa do trabalho dos/as carroceiros/as. Os bairros de classe baixa, bairros populares e periferias não têm condições de pagar caçamba, porque é muito caro. A existência dos/as carroceiros/as ajuda a baixar o preço das caçambas. Nos bairros periféricos, em muitos lugares não é possível um caminhão caçamba chegar, por causa de ruas estreitas ou becos. Enfim, o PL 142 atende ao lobby das grandes empresas de caçamba e matará aos poucos os cavalos e imporá extrema vulnerabilidade social às mais de 10 mil famílias de carroceiros/as existentes em BH e RMBH.
Os efeitos das medidas propostas pelo PL142/17 não se restringem a Belo Horizonte, uma vez que parte dos carroceiros e carroceiras que atuam no município residem em outras cidades da região metropolitana. A aprovação em segundo turno do PL142/17, somada a toda rede de notícias falsas e difamações, orquestrada por parte de grupos e movimentos de pretensa defesa animal, tem fomentado a violência verbal e simbólica cotidianamente contra carroceiros/as. Mulheres e homens que vivem do trabalho com seus animais há décadas e por gerações e que foram fundamentais para a construção da cidade agora são tratados com desprezo e criminalizados.
Diante do exposto, solicitamos ao Prefeito Alexandre Kalil o veto total ao PL 142/17 e a abertura de espaços e instâncias de diálogo com os carroceiros e carroceiras para a consolidação e construção de políticas públicas que garantam os direitos humanos e animais, para cuidar das milhares de famílias carroceiras e dos seus animais. Isso é o justo e por isso lutamos.
E REIVINDICAMOS ainda:
1 - Retomada imediata do Cadastramento dos/as Carroceiros/as, Cavalos, éguas, mulas e burros e Carroças;
2 - Implementação da regulamentação relativa ao trabalho dos/as carroceiros/as no município de Belo Horizonte, com ações educativas e de fiscalização para coibição aos casos de maus tratos;
3 - Estabelecimento de diálogo entre os diferentes municípios da região metropolitana para promoção de uma política integrada para os carroceiros e carroceiras;
4 - Melhoria da infraestrutura das Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes;
5 - Retomada e estabelecimento de novos convênios e parcerias entre a PBH e Universidades públicas e privadas para fornecimento de atendimento veterinário, bem como realização de 3 pesquisas que subsidiem o aprimoramento das políticas públicas para este setor imprescindível na cidade;
6 – Elaboração participativa e implementação de programas sociais voltados à comunidade carroceira, abrangendo projetos de alfabetização e promoção do associativismo;
7 - Estabelecimento de um espaço permanente de diálogo entre o poder público e as organizações de carroceiros/as, tendo em vista a garantia e a defesa dos direitos humanos e animais;
Tudo isto é o justo, legítimo e necessário. Por isso, lutamos.
A Cidade é Nossa Roça! Nossa Luta é Na Carroça!
Belo Horizonte, 12 de janeiro de 2021
Assina esta Nota: ACCBM– Associação dos Carroceiros e Carroceiras Unidos/as de BH e Região Metropolitana
Assinam em apoio: - Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais – CEPCT-MG - Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial – CONEPIR/MG - Associação dos Carroceiros de Contagem - Comitiva de Muladeiros de Nova Lima - Cáritas Brasileira - Regional Minas Gerais - Fórum Político Interrreligioso – Belo Horizonte – MG - FONSANPOTMA – Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana - Associação Estadual Cultural de Direitos e Defesa dos Povos Ciganos - Movimento Nacional de Catadores de Material Reciclável (MNCMR) - INSEA (Instituto Nenuca de Desenvolvimento Sustentável) - Vicariato Episcopal para Ação Social, Política e Ambiental – Arquidiocese de Belo Horizonte - Kaipora – Laboratório de Estudos Bioculturais – UEMG - Projeto Mapeamento de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais – UFMG - LEAEH – Laboratório de Educação Ambiental e Ecologia Humana - UNIMONTES - GESTA – Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais - UFMG - GEPTT – Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho e Tecnologias - CEFET – MG - NIISA – Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental - UNIMONTES - MUTIRÓ – Núcleo de Estudos em Agroecologia – CEFET-MG/UEMG - Articulação Embaúba – Parteiras, Raizeiras e Benzedeiras da RMBH - MTD - Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos - CEDEFES – Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva - MLB - Movimento de Luta de nos Bairros, Vilas e Favelas - AMAU - Articulação Metropolitana de Agricultura Urbana - Coletivo de Agroecologia do Aglomerado Cabana - Comissão Pastoral da Terra – CPT/MG - RENAP - Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares - Movimento de Organização de Base (MOB) - Movimento de Libertação Popular (MLP) - Brigadas Populares - Centro Franciscano de Defesa de Direitos
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Fonte: BdF Minas Gerais
Edição: Rafaella Dotta e Camila Maciel