Não é fácil concordar com pessimistas, mas o atual cenário político americano parece validar parte dos discursos mais duros do advogado e escritor escocês Alexander Fraser Tytler, o Lord Woodhouselee (1747 - 1813), autor da frase "uma democracia é sempre temporária por natureza; simplesmente não pode existir como forma permanente de governo".
Vêm dos mesmos textos de Tytler a ideia de que a expectativa de vida de uma democracia é um ciclo de dois séculos. "Durante esses 200 anos, essas nações sempre progrediram na seguinte seqüência: da escravidão à fé espiritual; da fé espiritual à grande coragem; da coragem à liberdade; da liberdade à abundância; da abundância ao egoísmo; do egoísmo à complacência; da complacência à apatia; da apatia à dependência; da dependência de volta à escravidão", escreveu o escocês.
A democracia americana já supera com folga as previsões do advogado, mas isso não a deixa imune a crises – inclusive existenciais. Para Larry Diamond, sociólogo especializado em democracias, professor de Stanford e autor de livros como In Search of Democracy, a qualidade do sistema político nos Estados Unidos caiu vertiginosamente nos últimos 10, 15 anos. "E eu acho que os últimos eventos, com o ataque ao Congresso e o comportamento bizarro e antidemocrático do Presidente Trump indicam que estamos, atualmente, vivendo uma nova crise da nossa democracia, embora ainda sejamos uma", afirmou em entrevista ao Brasil de Fato.
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Crítico ferrenho do voto indireto por meio do Colégio Eleitoral, Diamond se apoia nas instituições para validar o conceito de democracia. "Acho que o Colégio Eleitoral é um anacronismo e deveria ter sido eliminado há mais de um século. Mas, contanto que as regras sejam claras sobre a eleição e haja uma competição livre e justa, e todos possam votar livremente na competição e as regras tenham sido legitimamente aceitas, então acho que podemos nos dizer uma democracia", diz.
A professora de história e políticas públicas da Duke University, Nancy MacLean, concorda viver sob um regime democrático em solo americano, mas assim como o colega, não poupa críticas ao sistema eleitoral dos Estados Unidos, que é uma espécie de "herança maldita" dos tempos escravagistas. "Nossa democracia é falha por natureza. Nossa Constituição foi criada com contribuições significativas de escravocratas, que queriam garantir que a democracia não chegasse ao oprimido. Eles sabiam o que estava por vir, então criaram mecanismos de controle para manter seu poder e hoje sofremos com esse legado", contou à reportagem do Brasil de Fato. "Dito isso, acho importante a gente perceber que a ascensão de Donald Trump é um sintoma do problema, e não o problema em si dessa crise de representatividade".
Insatisfação generalizada
Essa estrutura descompensada permitiu que pelo menos cinco presidentes americanos fossem eleitos sem a maioria do apoio popular. O último deles foi Donald Trump, que chegou à Casa Branca em 2017 com 45,9% do voto público, enquanto a democrata Hillary Clinton acumulou 48% da opção popular, numa diferença de quase 3 milhões de votos.
Não chega a surpreender, portanto, que a percepção da saúde democrática nos Estados Unidos esteja em queda. Uma pesquisa conduzida pela agência Pew Research, publicada em fevereiro de 2020, mostrou que o descontentamento de representatividade é generalizado, mas em território americano o quadro é mais grave. Cerca de 59% dos entrevistados disseram estar descontentes com a democracia local, e a situação tende a se agravar em grupos que são mais céticos quanto ao sistema eleitoral. Em uma enquete promovida pela NPR, órgão estatal de comunicação nos EUA, pouco mais de 60% da população afirmou acreditar no voto e na eleição, mas apenas 25% dos eleitores republicanos se declararam crentes no sistema.
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É essa crescente insatisfação e seus desdobramentos que tanto preocupam Diamond. "Estou preocupado com a saúde e a forma da democracia americana. Acho que você tem que ser tolo, ou cego, para não se preocupar. Temos problemas sérios e urgentes. Temos uma crescente extrema direita antidemocrática, e eu diria que temos uma espécie de movimento fascista em curso. Não é um movimento isolado, é uma rede que tem uma ampla gama de indivíduos que pregam comportamentos conspiratórios com texturas de seitas", pontua.
Inquietações semelhantes levam o sociólogo a defender uma vigilância ininterrupta da democracia – e não apenas nos Estados Unidos. Já para a professora MacLean, cada caso tem suas variantes locais, mas a receita da decadência democrática, em todos os lugares, segue processos semelhantes. "Levam a essas crises medidas de supressão de eleitores, a destruição de sindicatos e organizações civis e, sobretudo, desinformação crônica – do tipo que eu sei que vocês também vivenciaram no Brasil, para enganar o eleitor", conta.
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Ambos os especialistas concordam que para lutar e zelar pela democracia, é importante que deixemos partidarismos de lado e nos encontremos nessa única causa. "As pessoas não podem dormir depois das eleições. Sindicatos, grupos de organização comunitária, o movimento pela vida dos negros, as feministas e outros tantos ativistas precisam voltar a se organizar e cobrar responsabilidade da administração, fazendo com que os eleitos cumpram seus planos e promessas de campanha", diz MacLean, "a democracia é um trabalho sempre em progresso".
Ciente de que os Estados Unidos costumam antecipar tendências, visto que a eleição de Trump abriu o caminho para outros líderes populistas chegarem ao poder, Larry Diamond torce para que esse passado recente conturbado sirva de aprendizado para todos – sobretudo para os brasileiros. "Espero que uma ampla gama de partidos políticos e atores individuais ponham de lado suas estreitas ambições partidárias e pessoais para colocar a defesa das instituições e dos valores democráticos no Brasil em primeiro plano, percebendo que quando você tem um indivíduo como esse como chefe executivo do governo, é como brincar com uma arma carregada. E ela pode disparar a qualquer momento".
Edição: Luiza Mançano