Tem um diálogo muito forte entre os mais velhos e os mais novos no interesse de coletar as sementes
Que tal um balanço positivo no setor ambiental durante o ano de 2020? Um exemplo pode ser dado pela ação popular e coletiva da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, na região sudoeste do Estado de São Paulo.
O trabalho de 33 famílias das comunidades quilombolas de Nhunguara, André Lopes, Maria Rosa e Bombas resultou na coleta e comercialização de 750 kg de sementes florestais de 118 espécies da Mata Atlântica no ano passado. A quantidade e diversidade é um recorde na iniciativa tocada desde 2017, com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA).
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“Trabalhar com as sementes é um trabalho vivo. Semente é vida. Quando você planta, coleta e vê a sementes germinando, tem muitos benefícios. Porque traz uma nova vida para o nosso planeta terra”, analisa Maria Tereza, coletora da Rede de Sementes do Vale do Ribeira.
A coleta foi feita no território de maior concentração de Mata Atlântica do Brasil. A flora na região é preservada pela diversidade cultural de povos caiçaras, indígenas, pescadores tradicionais e agricultores familiares.
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"A ideia foi de conciliar essa vegetação e esse conhecimento tradicional das populações na relação com a floresta e trazer uma possibilidade de um produto não madeireiro, que é a semente florestal com o objetivo da reflorestação", explica Juliano Nascimento, assessor técnico do ISA.
A proposta faz germinar a riqueza genética e cultural mantida há mais de duzentos anos no território em regiões que precisam ser reflorestadas. Esse compartilhamento de vida conta com a técnica de muvuca, palavra de origem indígena que significa mistura.
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"A muvuca é uma mistura de várias qualidades de sementes que serão levadas para uma região que precisa ser semeada. Geralmente é feita em áreas que não têm árvore nenhuma. Então é uma mistura que junta sementes com areia e coloca no maquinário. Ou se faz na mão mesmo quando não tem maquinário", explica Maria Tereza, que mora na comunidade Nhunguara.
Juliano Nascimento explica que esse mix de sementes que serve como uma muvuca segue critérios de espécies de acordo com o tempo sucessional da restauração florestal. Assim, as sementes são selecionadas em grupos que levam em consideração uma ideia de pelo menos quatro "degraus" de tempo para um processo de reflorestamento.
Giro de saberes
O nome muvuca é utilizado por diversas formas de plantio por comunidades tradicionais. Por sua vez, a Rede de Sementes do Xingu junto com o ISA vem trabalhando, desde 2006, tanto com a coleta quanto com a restauração da semeadura direta pela muvuca de sementes.
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Através de um intercâmbio entre redes, a prática está sendo desenvolvida entre as 33 famílias quilombolas do Vale do Ribeira há quatro anos. Além dos diálogos entre territórios, Juliano Nascimento identifica o valor das sementes na relação de herança de saberes entre as gerações.
"Tem um diálogo muito forte entre os mais velhos e mais novos que no interesse de coletar as sementes, eles já sabem onde está uma árvore, que espécie que é, que época floresce. Então essa relação que temos notado, que a semente proporciona, desse conhecimento passado através da oralidade, é muito interessante", destaca o assessor técnico, formado em agronomia com ênfase em agroecologia.
Renda
Além da questão ambiental, as atividades de coleta de sementes com a tecnologia da muvuca proporcionam geração de renda para as famílias. A prática é menor custo que a produção de mudas, e do total coletado em 2020 gerou cerca de R$ 70 mil para as famílias envolvidas.
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"Mesmo com toda adversidade de 2020, que todos nós sabemos, conseguimos ter uma produção considerável e também inserir uma renda para essas comunidades num ano tão difícil de renda e de outras questões", avalia Juliano Nascimento.
Edição: Douglas Matos