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Artigo | Perigoso exército de incapazes

A atual Esplanada dos Ministérios tem sido ocupada por um número exorbitante de fardados no primeiro escalão do governo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Jair Bolsonaro nunca fez questão de esconder ou omitir a sua dívida com as Forças Armadas - Fotos Públicas

“Parece que está chegando a hora de a sociedade brasileira se desfazer desses ´mitos salvadores` e devolver seus militares a seus quartéis e suas funções constitucionais. Assumir de uma vez por todas, com coragem e com suas próprias mãos, a responsabilidade de construir um novo país que tenha a sua cara, e que seja feito à imagem e semelhança, com seus grandes defeitos, mas também com suas grandes virtudes”.

(“Sob os escombros, as digitais de um responsável”, de José Luís Fiori)

 

No último dia de 2020, o professor de Economia Política Internacional da UFRJ, José Luís Fiori, publicou um artigo de grande repercussão nacional em que diagnostica o avançado processo de destruição física e moral do país nestes últimos dois anos, defendendo a tese de que o gigantesco fracasso do governo do Sr. Bolsonaro é indissociável das Forças Armadas brasileiras, que é hoje o último grande sustentáculo de um governo que é de fato, em última instância, um governo militar.

Um governo que nasceu de uma operação tutelada pelo ex-chefe das Forças Armadas à época e que depois foi literalmente ocupado por um batalhão de cerca de 8 mil militares da ativa e da reserva que vem se se demostrando absolutamente ineptos para o exercício do governo, durante este dois anos em que sustentaram no poder um “psicopata agressivo, tosco e desprezível, cercado por um bando de patifes sem nenhum principio moral, e de verdadeiros bufões ideológicos que em conjunto fazem de conta que governam o Brasil, há dois anos”, define Fiori.

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Uma semana depois da publicação do artigo do professor Fiori, o próprio Sr. Bolsonaro confirmou o diagnóstico do professor, ao declarar publicamente que “o Brasil quebrou e ele não pode fazer nada”, uma das confissões mais sinceras de que se tem conhecimento da parte de um governante que reconhece seu próprio fracasso e ao mesmo tempo se declara incapaz de enfrentar a destruição provocada pelo seu governo, durante o tempo em que — em vez de governar — ele se dedicava pessoalmente a atacar pessoas e instituições e debochar do sofrimento e da morte dos seus próprios concidadãos. Uma declaração que foi feita no mesmo dia, aliás, dia em que o general da ativa e ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, anunciava apalermado ao país que não tem data nem um plano da vacinação, mesmo que fosse só para tranquilizar psicologicamente a sociedade brasileira.

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Por tudo isto, finalmente o professor Fiori conclama a sociedade brasileira a assumir em suas próprias mãos o destino do seu país, desistindo dos “grandes salvadores” e enviando de volta aos quartéis os militares, pelo seu rotundo fracasso atual e, sobretudo, porque eles não têm o menor preparo técnico e intelectual para dirigir um estado e governar uma sociedade da extensão e complexidade brasileiras. Ou seja, para o professor Fiori este governo e seu fracasso deve ser debitado na conta dos militares, e não há nenhuma possibilidade de reconstruir a democracia brasileira sem que todos os seus atores políticos abram mão em definitivo e para sempre de apelar aos militares para que façam o que não sabem e fazem muito mal..

E, de fato, desde que foi eleito, Jair Bolsonaro nunca fez questão de esconder ou omitir a sua dívida com as Forças Armadas. “O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”, afirmou o presidente-capitão ao então general Eduardo Villas Boas, referindo-se à sua eleição à Presidência da República.

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Crescente dependência

Nos últimos dois anos, essa dependência se intensificou. No interior do governo a ruptura do bolsonarismo com o lavajatismo jurídico, a perda de força relativa do olavismo ideológico, somado às tensões com parte da grande imprensa e o desconforto de parcela do empresariado criaram um ambiente de reacomodação de forças que resultou na ampliação dos espaços ocupados pelos militares no governo.

A cada novo embate ideológico derrotado, a cada nova suspeita de corrupção e ilícitos envolvendo o clã Bolsonaro e a cada novo erro de política pública por parte dos civis, os militares avançaram pelo menos uma casa no tabuleiro. Sendo assim, ora sob efeito da adesão irrestrita, ora sob o argumento da redução de danos, os militares se posicionaram como fiadores e tutores do governo Bolsonaro.

Esse movimento não sofreu nenhuma resistência efetiva por parte dos setores da sociedade civil e paulatinamente foi sendo normalizado e naturalizado. Enquanto parcela dos atores políticos à esquerda acreditou no mito de que os militares brasileiros seriam nacionalistas ou estatistas, parcela dos atores políticos à direita reiterou a ideia de que os militares seriam politicamente imunes à corrupção e tecnicamente superiores em matéria de gestão. Ledo engano. Essa mitologia tem sua origem no reconhecido papel exercido pelos militares na formação do Estado e no desenvolvimento da industrialização ao longo do século XX.

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Os militares de hoje

Mas os militares de ontem não se equivalem aos de hoje. Desde a vitória liberal-conservadora ainda no período da ditadura, o que impera em matéria de geopolítica é a defesa do alinhamento automático ao governo norte-americano. Essa escolha desobrigou boa parte dos nossos militares de se empenhar na formulação de estratégias nacionais, liberando tempo e energia para que se concentrassem prioritariamente em interesses corporativos da caserna. Para além de “neoliberais” ou “neodesenvolvimentistas” os militares brasileiros tornaram-se corporativistas.

É com esse espírito que parte significativa dos militares têm avançado dentro do governo Bolsonaro. A atual Esplanada dos Ministérios tem sido ocupada por um número exorbitante de fardados no primeiro escalão do governo, são 11 dos 23 ministros.

Vejamos alguns dos problemas nos ministérios encabeçados por militares. Como é possível confiar na superioridade ética e moral de uma Casa Civil que conduz reuniões ministeriais tão desqualificadas quanto aquela que veio a público no último ano? Como crer na competência estratégica de um GSI que não identifica drogas em aviões da FAB e em um ministro que se deixa gravar em conversa particular pela imprensa? Como acreditar no espírito republicano de uma Secretaria de Governo que admite interferências na Polícia Federal ou em um ministro da Secretaria Geral que acolhe interesses pessoais da família presidencial? Como é possível sustentar a vocação nacional de uma pasta de Ciência e Tecnologia em desmonte acelerado e que se posiciona de maneira pouco estratégica em um tema crucial como o da tecnologia 5G? Como defender o espírito inovador de uma área de Minas e Energia impactada por desmontes e apagões? Como apostar em Transparência em um governo movido a fake news? Como admitir que a área de Infraestrutura tenha posições tão refratárias contra investimentos públicos? Como aceitar uma vice-presidência que se responsabiliza pelas relações com a China e pela Amazônia no período em que o país mais tem esgarçado o diálogo com o país asiático e tem batido recordes de desmatamento e queimadas?

Por todos esses motivos não é mais possível isentar as alas militares da responsabilidade e da cumplicidade com o desastre protagonizado por Bolsonaro. O caso do atual ministro da saúde, general Eduardo Pazuello, é dos mais emblemáticos na desmistificação da suposta aura de competência política, intelectual e administrativa dos militares.

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Pazuello entregou o comando da 12º Região Militar, mas se recusa a ir para a reserva, criando uma indesejável mistura entre Forças Armadas e Poder Executivo. O general não domina nem mesmo os saberes que deveriam compor seu repertório militar, não entende de geografia (ao tratar da propagação da pandemia, associou o inverno no hemisfério Norte do globo à região Nordeste do Brasil), não entende de Estado (afirmou que não conhecia o SUS), não entende de planejamento (deixou de coordenar as ações dos entes federativos), não entende de distribuição (deixou mais de 6,8 milhões de testes contra a COVID-19 vencerem em estoque) e não entende de logística (atrasou a definição sobre a compra de seringas, agulhas e insumos para a vacina).

O problema se agrava quando observamos os demais escalões do governo. Estima-se que haja mais de 8450 militares da reserva e 2930 militares da ativa atuando em diversas áreas e níveis hierárquicos do governo, com ênfase nos setores de planejamento, orçamento e logística dos ministérios. Algumas áreas sensíveis passam por intenso processo de militarização, na gestão socioambiental há mais de 90 militares alocados em áreas como Funai, Ibama, ICMBio, Sesai, Incra, Mapa, Funasa, FCP, além do Ministério do Meio-Ambiente e do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. No Ministério da Saúde apenas durante o período de pandemia, foram nomeados pelo menos 17 militares.

O quadro não é diferente nas empresas estatais e autarquias, há uma plêiade de militares nomeados em boa parte delas: Amazul, Caixa, Casa da Moeda, Chesf, Correios, CPRM, Dataprev, EBC, Ebserh, Eletrobras, Emgepron, EPL, Finep, Imbel, INB, Infraero, Nuclep, Petrobras, Serpro, Telebras, Valec. Em muitas dessas empresas a tônica segue na contramão da linha geral da política econômica do próprio governo, ao invés de desinvestimentos algumas foram brindadas com capitalização, ao invés de privatização se indica que algumas devem passar apenas por fusões.

Tal presença já garantiu aos militares importantes acordos internacionais de defesa, ratificando o alinhamento automático com os EUA, além da ampliação do orçamento do Ministério da Defesa e do fortalecimento de projetos e empresas a ele vinculadas. Mais ainda, não faltam ganhos corporativos para as armas: privilégios previdenciários, como aposentadoria integral e sem idade mínima, reajustes reais do soldo de cerca de 13%, o que não ocorreu com o salário mínimo, e aumento de adicionais, bonificações e gratificações diversas, em empresas estatais, por exemplo, o pagamento de jetons para militares subiu cerca de 9,7% em 2020, para não mencionar ganhos adicionais e cumulativos com cargos de confiança e adjacências. A amplitude dos ganhos corporativos e em proventos pessoais indica que os militares não retornarão para os quartéis de maneira automática ou voluntária, qualquer que seja o próximo governo.

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O quadro deveria causar preocupação, inclusive, dentro das próprias Forças Armadas. Pois a boa reputação e a confiança de que desfrutam os militares na opinião pública rivaliza a cada dia com as digitais impressas pelos fardados nos erros do governo. Além disso, ao aceitarem o desgoverno da atual política externa os militares se colocam em posição subalterna para a interlocução com EUA, China, União Européia e até mesmo com alguns países vizinhos.

Sendo assim, em tempos nos quais se debatem as possibilidades de construção de uma frente ampla ou popular, a defesa de um Legislativo “livre, independente e autônomo” e a reconstrução de um Estado que promova “a vida, a saúde, o trabalho e os direitos” estamos inteirasmente de acordo com a tese de Fiori de a consolidação de uma “democracia viva e forte” no Brasil passa por um pacto que assegure o retorno dos militares aos quartéis e às suas funções constitucionais. Este não é apenas um dos termos para a retomada da soberania popular e nacional do país, é, antes disso, a premissa fundamental de uma novo país que se assuma coletivamente em suas próprioas mãos dispensando a interveção salvadora de fardas, togas batinas ou pijams como diz o Fiori no final do seu artigo.

 

*William Nozaki é professor de Ciência Política e Economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Camila Maciel