Cerca de 3,94 milhões de hectares de terras no Brasil são controlados formalmente por pessoas físicas nascidas no exterior, empresas estrangeiras ou empresas brasileiras equiparadas, com sócios estrangeiros.
O número foi obtido pelo Brasil de Fato junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em dezembro de 2020, por meio da Lei de Acesso à Informação.
Do total registrado oficialmente pelo órgão, 2,2 milhões de hectares estão nas mãos de pessoas físicas e 1,72 milhões são controlados por pessoas jurídicas.
Subnotificação
Os dados que constam nesta matéria não contemplam as terras adquiridas por meio de fraudes ou artimanhas jurídicas como as que permitiram, por exemplo, a compra de 750 mil hectares por um fundo de pensão privado de professores dos Estados Unidos (TIAA-CREF, na sigla em inglês) e pelo fundo de investimentos da Universidade de Harvard.
Para burlar a legislação, desde 2008 os dois fundos usaram o nome de empresas brasileiras, como a Radar Propriedades Agrícolas, para efetivar a compra de terrenos. Práticas como essa, à margem da lei, dificultam o controle dos dados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Se fossem contabilizadas, só as terras do fundo de Harvard e do TIAA-CREF já significariam um aumento de quase 20% na área total controlada oficialmente por estrangeiros no Brasil.
Legislação vigente
A aquisição de terras por estrangeiros é regulada pela Lei nº 5.709, de 1971, que pode ser modificada em breve. Em dezembro de 2020, o Senado aprovou o PL 2.963/2019, que flexibiliza as regras e diminui as restrições. Entre outras medidas, a proposta que segue para votação na Câmara dos Deputados autoriza que estrangeiros comprem até 25% da área dos municípios brasileiros.
O autor do PL é o senador Irajá Abreu (PSD-TO), que integra a bancada ruralista e é filho da senadora e ex-ministra Katia Abreu (PDT-TO).
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A legislação atual só permite a aquisição de terras por estrangeiros residentes no Brasil, empresas já autorizadas a funcionar no país ou pessoas jurídicas brasileiras cuja maior parte do capital social pertença a estrangeiros. O texto aprovado no Senado propõe incluir pessoas físicas e empresas estabelecidas fora do território nacional, mesmo sem sede no Brasil.
Um dos principais argumentos contra o PL diz respeito à dinâmica de preços. Mais investimentos estrangeiros significa aumento da demanda por áreas no Brasil, o que puxaria os preços das terras – e dos alimentos – para cima. Ou seja, essa elevação do custo de produção seria repassada, em grande medida, aos consumidores.
Setores críticos à proposta, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), avaliam que a flexibilização traz riscos não só para a soberania nacional, mas para a segurança alimentar dos brasileiros. Hoje, o país tem 100 milhões de hectares de terras agriculturáveis e 4,5 milhões de sem-terra.
Localização e destinação
Portugueses e japoneses lideram a lista de estrangeiros detentores de terras no Brasil. Confira no mapa abaixo a distribuição regional dessas áreas:
O Sudeste encabeça a lista puxado por Minas Gerais, que concentra quase 25% da área controlada formalmente por pessoas físicas nascidas no exterior, empresas estrangeiras ou empresas brasileiras equiparadas.
Mato Grosso, São Paulo, Bahia, Paraná, Pará e Goiás aparecem na sequência do ranking. As demais unidades da federação possuem menos de 100 mil hectares sob controle estrangeiro. Alagoas, com 724 hectares, é a última da lista.
Considerando apenas os imóveis controlados por pessoa jurídica estrangeira ou empresa nacional equiparada, a destinação mais comum das terras, segundo o Incra, é reflorestamento (771 imóveis). Pecuária e agricultura, permanente ou temporária, somam 401 propriedades. Na sequência, aparece a mineração, com 49 áreas.
Veja a lista completa:
Quinta colocada no ranking, a mineração, sob controle de capital estrangeiro, foi responsável por três dos maiores crimes socioambientais da última década: os vazamentos da Samarco, em 2015, em Mariana (MG), da Hydro Alunorte, em 2018, em Barcarena (PA), e da Vale, em Brumadinho (MG), em 2019. Esta última, por exemplo, explorava naquele ano cerca de 4 milhões de hectares no Brasil, mas nenhuma das três consta na lista de aquisições e arrendamentos porque os contratos têm outra natureza – concessões, licenças e requerimentos para atividades de pesquisa, lavra e exploração.
Os 49 imóveis destinados à exploração mineral oficialmente informados ao Incra estão em nome de onze pessoas jurídicas diferentes, nos estados de Minas Gerais, Goiás, Bahia, Paraná e Santa Catarina. São elas:
- Anglo American Níquel Brasil, que controla cinco áreas, totalizando 8.281,26 mil hectares entre Barro Alto (GO), Niquelândia (GO) e Catalão (GO);
- Novelis do Brasil, empresa do grupo indiano Aditya Birla, que controla uma área de 2,3 mil hectares entre Mariana (MG), Alvinópolis (MG) e Santa Bárbara (MG);
- Cia De Ferro Ligas Da Bahia-Ferbasa, que controla quatro áreas, totalizando 951,3 hectares em Campo Formoso (BA) e Antônio Gonçalves (BA);
- Incepa Revestimentos Cerâmicos, que controla oito áreas, totalizando 827 hectares entre Balsa Nova (PR), São José dos Pinhais (PR), Castro (PR), Campo Alegre (SC), São Bento do Sul (SC), Corupá (SC) e Jaraguá do Sul (SC);
- Ecb Ardósias Ltda em Gouvêa (MG) controla duas áreas, totalizando 471,9 hectares em Felixlândia (MG);
- Ferrous Resources do Brasil AS, que controla 15 áreas, totalizando 319,3 hectares entre Congonhas (MG), Jeceaba (MG) e Brumadinho (MG);
- Anglo American Nióbio Brasil Ltda, que controla cinco áreas, totalizando 248,36 mil hectares em Ouvidor (GO);
- Niobras Mineração, empresa do grupo chinês CMOC International, que controla uma área de 209,34 hectares em Catalão (GO);
- Copebras, vinculada ao mesmo grupo chinês, que controla quatro áreas, totalizando 186,4 hectares em Ouvidor (GO);
- Von Roll do Brasil, que controla uma área de 93 hectares em Nova Palmeira (PB);
- Saint-Gobain do Brasil, que controla uma área de 8 hectares em Nazareno (MG).
Serviços ambientais e mercado de carbono
A presença do reflorestamento no topo da lista pode estar relacionada à expansão do mercado de carbono – o que também explica o interesse crescente pela gestão de unidades de conservação.
O Código Florestal já autoriza a possibilidade de comercializar créditos de carbono e biodiversidade, permitindo às empresas “compensar” emissões de poluentes em outras regiões do planeta. Para além dessa brecha, Bolsonaro acaba de sancionar uma lei que pode garantir “acesso indireto” à terra pelo capital estrangeiro.
“Com esse PL [no dia da entrevista, a lei não havia sido sancionada], não será preciso adquirir nem arrendar: com um contrato de pagamento de serviços ambientais [aos brasileiros que hoje detém a terra], uma empresa transnacional teria acesso indireto à terra por um período de 30, até 50 anos, burlando de novo a lei de aquisição de terras por estrangeiros”, alertou a advogada socioambiental Larissa Packer em entrevista recente ao Brasil de Fato.
Maiores áreas
O maior imóvel registrado em nome de pessoa jurídica com participação estrangeira fica no município de São Desidério (BA). A área, descrita como “Fazenda Tabuleiro IV e outras”, está em nome da Agrícola Xingu S/A e tem 54,4 mil hectares.
Destinada à produção de grãos, segundo o Incra, a área é 100% controlada por capital estrangeiro.
A Agrícola Xingu pertence ao conglomerado japonês Mitsui, que produz alimentos, bebidas, biocombustíveis e eletrônicos, mas também atua na área de serviços financeiros e imobiliários.
Em 2018, a empresa foi multada em R$ 189 mil pelo Ministério Público do Estado da Bahia pelo armazenamento de agrotóxicos sem registro na Fazenda Tabuleiro V, também em São Desidério.
Na ocasião, foram interditados mil litros de benzoato de emamectina, produto de uso controlado, que não podia ser aplicado naquela propriedade.
Algumas das marcas mais conhecidas do grupo Mitsui no Brasil são Sharp e Café Brasileiro. O conglomerado também possui ações da mineradora Vale, com a qual planeja formar uma empresa para “fornecer soluções metálicas e siderúrgicas de baixo carbono.”
Entre as pessoas físicas, o maior imóvel unitário está em nome de Joseph Haraoui, investidor de origem libanesa conhecido como Zuza: 78,1 mil hectares em Itaituba (PA), em uma área conhecida como Fazenda Mato Velho, destinada à pecuária. Assim como no caso da Agrícola Xingu, o terreno é 100% controlado por capital estrangeiro.
Conforme relatório produzido pelo Incra, que aponta fraudes cometidas por Haraoui, “esse Senhor, segundo narrativas de várias pessoas, se diz dono de boa parte da região do Mato Velho.”
Joseph Haraoui está ligado à maior detenção ilegal de terra encontrada pelo Incra nos 149 mil hectares do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa, localizado entre as zonas rurais de Altamira e Novo Progresso.
De acordo com reportagem da Agência Pública, os problemas identificados naquela área vão da prática de garimpo ilegal e indícios de extração ilegal de madeira até desaparecimentos e pelo menos cinco assassinatos relacionados a conflitos agrários desde 2011.
O empresário e seus parentes teriam vendido autorizações para pesquisas minerárias na região para a multinacional de exploração de ouro Chapleau Exploração Mineral. Esta seria responsável por um projeto de mineração em terra pública, com impactos não só para os assentados do PDS Terra Nossa, mas para os indígenas Kayapó que vivem na Terra Indígena (TI) Baú, ao lado.
Ainda segundo a Pública, a área de Zuza é “virtualmente” fracionada em 35 protocolos de regularização fundiária. “Fica evidente a fraude tanto no fracionamento da área, quanto na formalização de processos no Incra para legitimar ‘posses’ inexistentes”, afirma o órgão sobre as terras de Haraoui, que também praticava garimpo ilegal em Área de Preservação Permanente (APP), o que é proibido por lei.
O Brasil de Fato não conseguiu contato com Joseph Haraoui para comentar o caso.
Perspectivas
Antes mesmo da apreciação da Câmara, Jair Bolsonaro (sem partido) já se posicionou contra o PL do senador Irajá Abreu. Por outro lado, o presidente sancionou, sem fazer alarde nas redes sociais, a lei que prevê pagamento por serviços ambientais.
A autorização para que reservas legais, áreas de proteção permanente (APP) e unidades de conservação que já existem gerarem crédito de carbono deve ser um dos temas em debate na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2021 (COP26), que será realizada no Reino Unido em novembro.
O Brasil, contrariando a posição histórica do Itamaraty, defende mecanismos de financeirização das florestas como alternativa à destruição do meio ambiente e à escassez de recursos naturais.
Edição: Leandro Melito