Após alegar fraude eleitoral, dizer que havia vencido as eleições, entrar com processos judiciais em diversos Estados e incitar uma invasão ao Congresso, o republicano Donald Trump finalmente deixa a presidência dos EUA nesta quarta-feira (20/01) e será sucedido pelo democrata Joe Biden.
A saída do empresário (supostamente) bilionário não foi menos conturbada do que os quatro anos em que ocupou a Casa Branca. A tônica intimidadora, espalhafatosa, racista e xenófoba de Trump o acompanhou até os momentos finais de sua presidência. Além dos diversos temas que o republicano já tratava de forma preconceituosa e ultraconservadora como imigração, racismo, direitos das mulheres e política externa e a pandemia do novo coronavírus, que tem os Estados Unidos como país líder em número de casos e mortes, o presidente apostou nas alegações de fraudes eleitorais para desestabilizar a transição e atrapalhar os primeiros passos de Biden.
Protagonizando diversos episódios de desestabilização geopolítica, desde a guerra comercial com a China até os ataques que mataram o general iraniano Qassim Soleimani, desde as sanções contra Cuba até o envolvimento com deputados opositores venezuelanos que tentaram golpes de Estado, ou mesmo na política interna de negligência da pandemia e adoção de um discurso sedicioso, Trump será lembrado, de muitas formas, como o presidente que deixou um legado de caos nos EUA.
Acompanhe: Eleições Presidenciais dos EUA 2020
Invasão ao Capitólio e rumo ao impeachment
O período de transição entre governos de 2020 foi um dos mais conturbados que os EUA já enfrentaram. Desde que perdeu as eleições, Trump se recusou a reconhecer os resultados, alegou fraude eleitoral e incitou uma invasão ao Capitólio durante a sessão que certificou a vitória de Biden.
No dia 16 de janeiro, no dia em que o Congresso deveria certificar a eleição do democrata, Trump convocou uma manifestação em frente ao Capitólio e chegou a discursar aos manifestantes. O presidente incitou que os integrantes do ato marchassem até o Legislativo, para, segundo ele, "encorajar" senadores e deputados a rejeitar a vitória de Biden nas eleições.
Minutos depois, os extremistas se dirigiram ao Capitólio e as primeiras invasões foram registradas. Eles quebraram vidraças e portas para entrar no prédio. O Senado teve que suspender a sessão, e deputados e senadores começaram a ser evacuados do local utilizando máscaras de gás.
A invasão ao Capitólio fechou a estratégia adotada pelo republicano para atrapalhar a transição de mando, que começou com os processos judiciais pedindo recontagem em Estados que deram vitória aos democratas.
Um áudio revelado pelo jornal norte-americano The Washington Post no dia 3 de janeiro mostrou Trump pressionando o secretário de Estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, para que ele "encontrasse" votos que pudessem mudar o resultado das eleições de 3 de novembro localmente.
Durante a conversa, Trump citou as teorias da conspiração que vem repercutindo desde que perdeu em novembro - e que foram rechaçadas por diversas vezes pela Justiça por falta de provas.
"Você sabe, nós ganhamos o estado. Se você pegou, esses são os números mais mínimos, os números que eu dei a você, esses são números que são certificados, seus votos de ausentes enviados para endereços vagos. Você sabe que quando você os soma, é muito mais vezes, é muitas vezes o número 11.779... Portanto, não podemos dar-lhes bênção. Porque, qual é a diferença entre vencer a eleição por dois votos e vencê-la por meio milhão de votos. Acho que provavelmente ganhei por meio milhão", disse o mandatário.
Fora da presidência, Trump ainda poderá incluir em seu legado presidencial um processo de impeachment concretizado na Câmara e no Senado. Isso porque, após ele incitar a invasão ao Congresso, os deputados aprovaram, pela segunda vez, um processo de impedimento do republicano, que chega ao Senado com grandes chances de ser aprovado, diferentemente do primeiro, em 2019.
Governo do caos
Os entraves na transição foram apenas o mais recente fator de desestabilização na condução da política interna do governo Trump. O avanço da covid-19, com agressividade especial nos EUA, fez com que o presidente norte-americano enfrentasse cada vez mais críticas e se apegasse ainda mais à tática das fake news como fator de ataque a adversários e comando da narrativa interna.
“O vírus chinês” e “a praga da China” são os termos que Trump usa constantemente para se referir ao Sars-Cov-2, vírus que inclusive já o contaminou no início do mês de outubro.
Além disso, trechos do mais novo livro do jornalista norte-americano Bob Woodward, divulgados no início de setembro, revelaram que o republicano sabia da gravidade do novo coronavírus desde fevereiro, poucos meses após os primeiros casos serem registrados em Wuhan em novembro de 2019. Em entrevista a Woodward, Trump disse que a covid-19 era algo “muito complicado” e “mais mortal” do que outros vírus que causam gripes, mas que resolveu minimizar os riscos da pandemia para “evitar pânico” entre a população.
O presidente ainda adotou por diversas vezes uma postura negacionista com relação ao uso de máscaras, chegando a dizer que usava o equipamento de proteção apenas quando achava que devia. Para completar o “pacote pandemia”, Trump encorajou o uso da hidroxicloroquina mesmo sem comprovação da eficácia do medicamento contra covid-19, criticou a prática do distanciamento social e a decisão de alguns governadores - a maioria deles do Partido Democrata - de decretar quarentena nos Estados, sob a justificativa de que isso travaria a economia norte-americana, além de sugerir a ingestão de água sanitária como um possível tratamento contra a doença.
Entretanto, a pandemia do novo coronavírus foi apenas um dos fatores de polêmicas do governo Trump. Nesses quatro anos, o mandatário protagonizou uma escalada de tensão na guerra comercial com a China, mudou a embaixada dos EUA em Israel para Jerusalém, sofreu dois processos de impeachment na Câmara, recusou-se a condenar supremacistas brancos, tentou criminalizar protestos antirracistas, ampliou as sanções contra nações consideradas por Washington integrantes do “eixo do mal”, principalmente Cuba e Venezuela e incitou uma invasão ao Capitólio.
Em seus primeiros anos de mandato, como prometido em campanha, reverteu diversas medidas tomadas pelo seu antecessor, o democrata Barack Obama. Deixou o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica, o Acordo de Paris, cancelou a reaproximação com Cuba e desferiu diversos golpes no chamado Obamacare e no programa de imigração Ação Diferida para Chegadas na Infância (Daca), também conhecido como "Dreamers".
Em janeiro de 2020, ordenou um ataque que matou o general iraniano Qassim Soleimani, fato que desencadeou uma escalada de tensão militar entre as duas nações. Trump ainda endureceu o bloqueio a Cuba, ampliou o apoio às forças golpistas na Venezuela e na Bolívia e continuou a realizar ataques xenófobos contra migrantes latinos vindos de países da América Central.
Além disso, uma revelação do New York Times indicou que o presidente, que tem fortuna avaliada em cerca de US$ 2 bilhões, pagou apenas US$ 750 (cerca de R$ 4,1 mil) em imposto de renda federal por ano em 2016 e 2017.
Mas, entre a agressividade no discurso e as hostilidades de seu governo, quem é Donald Trump?
Magnata, apresentador de TV e acusado de assédio
Nascido em 1946 no bairro do Queens, em Nova York, o em breve ex-presidente dos EUA é descendente de escoceses e alemães. Seu pai, Frederick Trump, foi um grande empresário que fez fortuna no ramo imobiliário e fundou a Trump Organization, empresa que Donald comandava até ser eleito.
Formado em economia, Trump foi responsável por expandir os negócios do pai e levar o capital da família para alguns ramos industriais e para o mundo dos hotéis e dos cassinos. Apesar das diversas crises financeiras durante os anos 1980 e 1990, o termo “magnata” foi e é constantemente utilizado para designar Donald, que sempre manteve uma postura excêntrica. Trump já foi dono de um programa de luta livre, do concurso Miss Universo, já apareceu em diversos filmes e séries de TV e chegou a comandar o reality show The Apprentice (O Aprendiz), fato que o tornou ainda mais famoso e levou seu nome à calçada da fama de Hollywood.
O republicano ultraconservador já foi casado três vezes, todas elas com modelos. Seu primeiro casamento foi em 1977, com a modelo tcheca Ivana Zelnickova, com quem teve três filhos: Donald Trump Jr, Ivanka Trump e Eric Trump. Em 1993, se casou pela segunda vez, com a modelo Marla Maples, com quem teve sua quarta filha, Tiffany Trump. Já em 2005, ele se casou com sua atual esposa e primeira-dama dos EUA, a modelo eslovena Melania Knauss, com quem teve seu quinto e último filho, Barron Trump.
Durante a campanha à presidência em 2016, Trump foi acusado por 15 mulheres de assédio sexual. As declarações vieram após o vazamento de um áudio registrado em 2005 em que ele afirma que, por causa da fama, poderia fazer o que quisesse com as mulheres, inclusive beijá-las e "pegar em suas bocetas" sem consentimento.
Até sua ex-esposa Ivana Trump chegou a usar a palavra "estupro" para descrever uma briga que tiveram em 1989 — quando ainda eram casados —, em que Trump também puxou e arrancou seu cabelo. Já durante o mandato, em 2018, a modelo e atriz de filmes eróticos Stormy Daniels acusou o presidente de ter tentado comprar seu silêncio sobre um encontro sexual que ambos teriam tido em 2006.
Na política, o empresário, que trocou de partido repetidas vezes, tentou a presidência pela primeira vez nas eleições de 2000, uma das mais controversas da história dos EUA (e você pode conferir essa história aqui), quando concorreu nas primárias do inexpressivo Partido Reformista, só para desistir ainda durante o processo.
Porém foi só em 2016 que as chances de Trump se tornaram reais. Logo durante as primárias, etapa inicial das eleições norte-americanas em que pré-candidatos disputam a nomeação de seus respectivos partidos com outros aspirantes à presidência, o magnata provocou uma ruptura na legenda republicana. Suas declarações extremas e violentas foram rejeitadas por diversos membros e eleitores republicanos, que criaram até o movimento “Never Trump” (Nunca Trump).
Apesar das dissidências, Trump conseguiu obter o número necessário de delegados, superando Ted Cruz, Jeb Busch, Marco Rubio, John Kasich, entre outros. O que não significou, porém, a união do partido em torno do empresário. Conservadores de peso faltaram à Convenção Republicana que definiu o empresário como candidato republicano às eleições. Entre eles estavam os ex-presidentes George H.W. Bush e George W. Bush, o candidato de 2012, Mitt Romney, e o senador John McCain.
Durante a campanha, a relação de Trump com sua rival, Hillary Clinton, foi hostil. O republicano criou vários apelidos pejorativos para sua adversária democrata, sendo o mais conhecido “Crooked Hillary” (‘Hillary ladra’, em referência à proximidade dela com os empresários de Wall Street). Uma das declarações mais agressivas do empresário foi feita durante um comício na Carolina do Norte, quando afirmou que os defensores do direito ao porte de armas teriam o poder de deter Hillary.
Toda a hostilidade e conservadorismo levaram o magnata a se tornar o 45º presidente dos EUA. Trump conquistou 304 votos no Colégio Eleitoral e derrotou Clinton que, apesar de ter alcançado mais votos populares, conseguiu apenas 227 delegados.
Um vice 'cristão, conservador e republicano'
Não houve equilíbrio na chapa de Donald Trump. O vice-presidente dos EUA, Mike Pence, considerado uma peça fundamental para conquistar mais parcelas do eleitorado religioso e conservador, chega, por muitas vezes, a estar à direita do presidente. Ex-deputado e ex-governador do estado de Indiana, Pence é advogado e integra o chamado movimento Tea Party, ala interna do Partido Republicano notadamente reconhecida por posições ultraconservadoras e de extrema direita.
Entre os anos de 2003 e 2013, tempo que serviu como congressista na Câmara dos Representantes, Pence exerceu um dos mandatos mais conservadores da Casa, enfrentando por diversas vezes a própria direção do Partido Republicano. "Cristão, conservador e republicano", foi a definição que utilizou para si mesmo durante seu tempo como parlamentar. Em 2001, por exemplo, se opôs a um projeto de inclusão educacional apresentado pelo então presidente republicano George Bush.
Já em 2013, Pence foi eleito governador de Indiana e protagonizou uma das guinadas mais conservadoras no Estado. No terceiro ano de mandato, o republicano sancionou a Lei de Restauração da Liberdade Religiosa alegando proteção à liberdade de culto. Na prática, a lei permitia que comerciantes se recusassem a atender pessoas homossexuais e até que empresas se negassem a contratar gays sob a justificativa de "ferir sua crença religiosa". Após protestos, o então governador alterou o texto.
Em seu último ano como governador, antes de desistir da reeleição para compor a chapa presidencial com Trump, Pence ampliou restrições para a prática do aborto legal em Indiana, incluindo uma clausula absurda que exigia uma cerimônia de cremação ou enterro do feto, independentemente do tempo de gestação e mesmo em casos de abortos espontâneos. A lei foi considerada inconstitucional dois anos depois de o republicano deixar o governo do Estado.
Ao final do mandato na Casa Branca, Pence rompeu com Trump ao se recusar a dar um golpe em favor do presidente. Extremistas que invadiram o Capitólio chegaram a dizer que queriam enforcar o vice por "traição".