"Quantas de nós vivemos com medo, diariamente, de ser quem nós somos? É uma coisa muito forte viver com medo de morrer, porque tem alguém que tem ódio de você ser quem você é". É assim que a modelo Maria Clara Daros sintetiza o aspecto emocional que mais amedronta uma pessoa transexual, feito ela.
Aos 26 anos, Daros vive uma trajetória profissional que ainda destoa da maioria das pessoas trans no Brasil. Com uma carreira internacional estabelecida e em ascensão, ela trabalha para importantes agências, participa de desfiles nas principais semanas de moda do planeta e já há algum tempo vive em Paris, de onde concedeu entrevista ao Brasil de Fato para contar sobre suas vivências como mulher trans e como ela encara os desafios que acabam por invisibilizar essa população.
"Eu sinto que as pessoas colocam a gente como pessoas anuladas de sentimento, de relação social, anuladas de uma vivência normal. Enquanto a gente tiver esse estigma, a gente não vai sair [da transfobia]. A gente tem que tratar as pessoas com humanidade e empatia. Se a gente conseguir fazer isso explodir assim, pra todo mundo enxergar que eu não sou a trans, eu sou a Maria Clara. E fulano não é o gay ou a lésbica. São pessoas", reflete.
:: Em 2019, 124 pessoas trans foram assassinadas no Brasil ::
Luta contra a transfobia
A descrição de Maria Clara encontra eco na triste realidade brasileira. O país lidera um vergonhoso ranking de países que mais matam pessoas trans no mundo. Em 2020, foram 175 travestis e mulheres transexuais assassinadas, uma alta de 41% em relação ao ano anterior, quando foram registrados 124 homicídios. Os dados são da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), baseados em notícias veiculadas na mídia.
Para marcar a luta contra essa realidade de sangue e barbárie, todo dia 29 de janeiro o país celebra o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A data foi instituída em 2004, no lançamento da primeira campanha contra a transfobia do Brasil. Para Maria Calara, este é um momento de expressar o orgulho trans, mas sem perder de vista a dura realidade dessas pessoas.
"Tem que haver a celebração, mas com respeito e com uma visão muito clara da realidade, senão a gente vai entrar no erro de viver uma utopia, um conto de fadas, algo que não é real. É importante celebrar as conquistas que a gente tem, mas é importante a gente ainda escancarar quantas de nós estamos morrendo, quantas de nós estamos sendo degoladas, abafadas e escondidas", aponta.
:: Assassinatos de pessoas trans aumentaram 41% em 2020 ::
Transfobia internacional
Apesar de ter deixado de viver no Brasil relativamente cedo, Maria Clara Daros conta que a transfobia não tem fronteiras. Ao chegar à Europa para tentar seus primeiros contatos profissionais como modelo, sua condição de mulher transexual foi um obstáculo para a carreira.
"Algumas agências tinham demonstrado muito interesse em mim [pelas fotos] e, depois que conheceram pessoalmente e souberam que eu era trans, mudaram de ideia, falaram que os clientes eram muito tradicionais", relata. Em países mais desenvolvidos, a realidade da violência física é menos evidente, mas o preconceito encontra outra formas de se manifestar.
"Depois de um ano e meio aqui, você vê uma outra realidade também, porque, quando o país é mais desenvolvido, o próprio preconceito também é mais desenvolvido. Ele é mais elaborado, mais sutil, mas ele existe e está aqui", acrescenta.
Trajetória
Nascida em Criciúma (SC), Maria Clara cresceu em uma família estruturada, com outras três irmãs, mas sempre se projetou na carreira em que ela viria a se consolidar. "Eu sempre quis ser modelo, e a minha identificação como pessoa transgênero veio tardia, aos 21 anos. Mas eu já sonhava em estar nas passarelas", conta.
A decisão de mudar de sexo realmente foi tomada já quando Maria Clara estava em São Paulo, cidade que lhe deu "abertura maior para a carreira e para a vida pessoal".
"A transição muda tudo na sua vida, não apenas os documentos. A sociedade vai te entender de uma maneira diferente, vai te ler de uma maneira diferente. Os seus relacionamentos, que você acreditava que eram uma coisa, vão mudar. Os seus amigos, às vezes a sua família. Pode mudar pra melhor ou pode mudar pra pior", pondera.
Depois de já estar registrada e mudar os documentos para Maria Clara oficialmente, ainda na capital paulista, Maria Clara finalmente tomou a decisão de sair do país em busca do sonho. Pensou inicialmente na Itália, mas a França acabou sendo uma opção mais viável, por causa dos contatos e das amigas que já tinha no país. Olhando de volta para a sua terra natal, ao menos na carreira de modelo, ela enxerga um ambiente de muito mais oportunidades e abertura para pessoas trans.
"Eu acredito que hoje o Brasil, de um tempo pra cá, possibilita uma visibilidade e um campo de trabalho muito bom e rico para modelo. Não rico de dinheiro, mas de diversidade, de pessoas que estão na moda, da mente aberta do mercado para o diferente. Quando eu comecei a minha transição em São Paulo, eu não conhecia muitas meninas trans trabalhando. Eu conhecia só as que eram celebridades, mas umas duas ou três", lembra.
Canal no YouTube
Como forma de compartilhar sua própria experiência e ajudar outras pessoas que, como ela, viviam processos semelhantes, Maria Clara mantém o canal "Vish, Maria", no YouTube, onde também dialoga sobre questões do universo trans e da carreira de modelo.
Edição: Camila Maciel